O IMBATÍVEL GALO DE JOÃO SARACURA!
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O IMBATÍVEL GALO DE JOÃO SARACURA!

Desde que o mundo é mundo que o pão e o circo andam atrelados. Gil e Caetano compuseram nos anos 1970 a canção “Panis Et Circenses” (gravada com relativo sucesso pelos Mutantes) o título é uma alusão aos sucedidos do ano 100 a.C. quando os líderes romanos atinaram que a população demonstrava uma tremenda ignorância em relação à política, e passaram a disponibilizar para o povo comida e diversão.

Com a sua gradual expansão, o Império Romano tornou-se um estado rico, cosmopolita, e sua capital Roma, no seu apogeu, tornou-se o centro de praticamente todos os acontecimentos sociais, políticos e culturais da época. Desde então, governante que se preza sempre procura entreter o seu povo, tendo o cuidado de mantê-lo homeopaticamente alimentado. O cantador Rosemberg Oliveira bota ainda mais óleo nesta fervura, quando traça um paralelo do antigo coliseu romano com os atuais estados de futebol.

Aqui nessa região nunca foi diferente. Em 1948, o nível de diversão no Vilarejo do Porto era limitadíssimo, além das quermesses promovidas pela Paróquia de Nossa Senhora das Vitórias, um baba ou outro com os times das cidades vizinhas era o que se tinha de entretenimento. Quando as instituições oficiais falhavam, era hora de entrar em campo a criatividade do povo, sempre procurando tirar alguma vantagem. Nos finais de semana, João Saracura (um negão de dois metros de altura, dos braços desta grossura e que era dono do boteco mais sortido do povoado) arranjou um jeito de divertir o povo. Além da variedade de aguardente que ele mesmo fazia questão de produzir no seu improvisado alambique, o negão tinha no fundo do seu quintal uma bela de uma rinha. Naquele “coliseu” improvisado aconteciam apostas altíssimas nos embates dos galos assassinos. As lutas atraiam apostadores dos mais longínquos lugares.

Neste tempo era comum os “jornalistas” saírem pelo sertão em busca de notícias. Coincidiu que na época, o Jornal A Tribuna do Café de Vitória da Conquista enviasse para o vilarejo um “correspondente” exclusivo. No primeiro domingo (imediatamente após a sua chegada), o repórter Fenelon da Silva, meio sem ter o que fazer, descobriu que nos fundos do bar de João Saracura existia esta “rinha” com uma enorme arquibancada. Todo domingo chegavam galos de todos os lugares em busca da premiação – um porcão rosa, deste tamanho, abatido!

Assim, enquanto preparava a reportagem para a “Tribuna”, Fenelon acompanhava a única atividade dos “domingos portuenses”, chegando, inclusive, a apostar uma vez no galo “Severino”, legítimo representante da Vila dos Belos Campos! Este galo (ligeiro e raivoso) depois de vencer todos os oponentes bateu de frente com o famoso campeão do Porto, o inclassificável “Esporão de Ouro” e não passou da primeira fase.

Campeão da sua região, Severino, acostumado a ganhar todas as suas lutas, neste dia (diante da fama do campeão) entrou na “rinha” tremendo, completamente pressionado pela torcida adversária. Ao perceber que não tinha nenhuma chance de derrotar o oponente, tentou correr, porém, foi violentamente seguro pelas asas (por um apostador) e jogado com nojo de volta ao cercado. Mal aterrissou, já foi recebido na base da ferroada. O primeiro golpe (na cabeça) o deixou zonzo, a terrível bicada no olho esquerdo o deixou meio cego, culminando com uma espetada certeira, cujo afiado esporão rasgou-lhe o peito de fora a fora, o fazendo correr igual uma galinha!

Olha gente, para um galo que se preza, uma atitude destas não era uma coisa das mais bonitas de se ver. Imagine aí um galo campeão (com enorme tradição) correr feito galinha na frente de outro galo, é horrível! Mas, diante de uma situação daquelas e sem muitas opções (já que, no auge da sua ferocidade, Esporão de Ouro parecia pesar uns 30 kilos), o jeito foi o coitado dar no pé!

Neste dia Severino – o galo -, virou chacota, deixando ainda mais famoso o boteco de “João Saracura”. Por estas e outras era que o famoso “Esporão de Ouro” se consagrava cada vez mais como o indiscutível campeão do torneio! O bicho era enorme, grande que parecia um peru, forte igual a um gavião, ágil como um beija-flor e gostava mais de sangue que morcego! Para ele, quanto mais sangue melhor! As esporas eram afiadíssimas e cortavam mais que navalha, tinha no currículo a incrível marca de 25 vitórias em 25 lutas (todas por nocaute – ou fuga). Estava invicto há dois anos e os adversários tremiam só de vê-lo!

Houve, inclusive, a história de um pobre galo que ao ser jogado dentro do ringue, desmaiou de medo, mas, mesmo assim, foi “estraçalhado”. Tradicionalmente, todo galo derrotado virava canja. “Severino” foi salvo pela bondade do jornalista que pagou a quantia exigida e o doou para uma linda mulata chamada Rosalinda, que passou a criá-lo nos fundos do hotel onde trabalhava. “Severino” morreu de morte “morrida”, 15 dias depois, cego e coxo, embora algumas pessoas jurassem de mãos juntas que o infeliz morrera mesmo foi de tristeza!

Nas frequentes “visitas” de Fenelon ao bar de João Saracura, o excesso de predicados atribuídos ao “campeão” – pelo dono e pelos babões que queriam beber de graça -, começou a irritar o jornalista!

– Meu irmão, vai nascer o galo que vai dar neste aqui, ó! – Falava Saracura passando talco e água gelada no campeão, quanto mais ele falava, os bajuladores doidos para tomar uma, confirmavam:

– Ô, dó! Quem é que aguenta com Esporão de Ouro? O bicho é bom de briga! Quando este galo fica enfezado vira uma fera! Oia, Saracura, pode acreditar como existe Deus no céu. Este galo seu vai lhe deixar podre de rico. Pode apostar alto que esse não perde pra nenhum desses meio-tigelas que aparecem aqui na rinha.

– É “mermo, rapá”? “Cê” acha isso? Pois vou “botá” uma talagada de graça “prucê”. Toma aí, vá! É por minha conta, pode virá goela abaixo! – Sorria João Saracura, feliz da vida com o puxa-saquismo!

Um dia enquanto fazia uma reportagem o jornalista descobriu (em pleno domingo) um galinho garnisé medindo mais ou menos um palmo de altura. Apesar de pequenininho, o bicho era de uma arrogância inacreditável. Diante de toda aquela valentia, Fenelon resolveu comprar o bicho e levá-lo escondido em um dos bolsos do paletó até a rinha de Saracura.

Neste dia, ao chegar atrasado Fenelon ficou perplexo com aquela renca de galos desconstruídos, espalhados pelos quatro cantos da rinha. Tufos de penas de um lado, pedaços de bicos de outro, alguns peitos rasgados e muito sangue escorrendo das cristas. Precavido, o jornalista escondeu instintivamente o seu garnisé. Mas, nada é tão ruim que não possa piorar. Reza a lenda que aqui no sertão “o tal do baixinho é pra lá de invocado”.

Não foi que o garnisé, pequeninho daquele jeito, não deu um pulo mortal de dentro do bolso de Fenelon e caiu de pé bem no meio da rinha? Caiu e já começou a “cantar” igual a um galo de verdade, olhando de soslaio para o campeão, que, ignorando solenemente o baixinho, era paparicado no colo de João Saracura!

Ao ver o ímpeto do galinho, o dono do boteco falou com aquela voz de trovão que fazia muita gente tremer:

– Essa coisinha aí está desafiando o meu campeão, é?

– Não. Não é isso, não! É só um galinho que comprei pra eu criar no quintal do hotel! – Disfarçou o jornalista, tentando esconder o garnisé que surpreendentemente, deu um “voo mortal” atingindo em cheio o campeão em pleno colo de “Saracura”.

Ah! Se tinha uma coisa que “Saracura” detestava, era “desfeita”. Diante do sucedido, o “negão” se sentiu humilhado pelo “tampa de binga”. Segurou firmemente o campeão para que ele não estraçalhasse ali mesmo o protótipo de galo e com a sua voz de tenor, falou alto para que todo mundo ouvisse:

– Solte o bicho na rinha agora. Quem desafia o meu galo ou vira defunto… ou vira doutor… – Ordenou o negrão de quase 2 metros de altura!

– Mas seu “Saracura”, olhe só o “tamanhinho” dele. O coitadinho nem sabe o que está fazendo… Ele deve de tá maluco da cabeça…– Tentou argumentar o jornalista.

– Aqui é assim: Se o galo não brigar quem briga é o dono. Ou ele briga ou nós dois vamos nos acabar na porrada. – Diante da ameaça (avesso à violência, principalmente enfrentando um “negão” daquela tamanho), Fenelon viu-se obrigado a soltar o garnisé!

As apostas rolaram em uma velocidade estonteante. A maioria dos apostadores acreditava que o galinho não suportaria, sequer, 20 segundos. Apostaram 10 por 1.

O pior era que apesar de baixinho, o garnisé era pra lá de encrenqueiro! Sem ninguém mandar, ele próprio se dirigiu para o centro do ringue e começou a dar pequenos pulos, gralhando furiosamente para o campeão, que, depois de tratado com talco, molhado com canjebrina soprada gentilmente pelo dono, foi solto dentro do ringue e antes mesmo de soar o gongo, partiu feito um “louco” para cima do garnisé. Vocês estão pensando que o galinho se apertou? Qual nada! Saiu foi de baixo e o campeão bateu a cara no alambrado e ficou meio zonzo. Só Fenelon vibrou, mas teve que se recompor rapidamente diante do olhar de reprovação de “Saracura”. De repente, eis que todos veem o campeão se levantar e dar “uma voadora” (parecendo até um ninja) na direção do garnisé que mais uma vez se esquivou e o “matador” bateu a cabeça em um velho toco que se encontrava dentro da rinha. Foi necessária a providencial ajuda de João Saracura para colocá-lo novamente de pé.

A briga mal tinha começado e “Esporão de Ouro” já tinha beijado a lona por duas vezes sem sequer tocar o galinho baixote. Saracura pegou delicadamente o seu galo e após cochichar uns dois ou três “ípsilones” nas “oreia” do infeliz, com cara de poucos amigos o empurrou para cima do garnisé. “Escaldado”, desta vez o Esporão de Ouro não quis partir atabalhoado, não. Ficou de longe, estudando os movimentos do garnisé, tentando achar algum ponto fraco no “tampa de binga” … Ficaram (ambos) rodopiando no centro do ringue. O garnisé com as penas do pescoço arrepiadas e o campeão, ainda meio tonto, procurando dar seu “golpe fatal”! Depois de uns dois minutos se estudando, Esporão voou pra cima do galinho, tropicou e caiu, inacreditavelmente, de cara no chão.  Assim, o impossível aconteceu – quem viu conta até hoje – o garnisé subiu nas costas do campeão e lhe bicou tanto o cangote que o “gigante”, sem saber o que fazer, correu desorientado e tome bico, e tome esporões e tome porrada…

Boquiabertos, os apostadores vibraram com a inacreditável cena! O grande campeão perdera para um galinho que tinha um terço do seu tamanho! Fenelon recolheu imediatamente o “apurado das apostas”, e, ao colocar (com muita dificuldade, já que o “danado do galinho” insistia em continuar a briga) o seu campeão debaixo do “sovaco” ainda viu com um rabo de olho, Saracura sair do bar transtornado, munido de uma espingarda dois canos, mandando chumbo a torto e a direito na direção do pobre infeliz!

Atirou e o galo pulou, atirou novamente e o galo “surveteu, caxingando” mato adentro, enquanto o “negão” gritava desesperado recarregando a espingarda:

– Volta aqui, “féla d’uma puta”! Eu “vô” lhe “dexá” mais furado que “táuba” de pirulito! Eu lhe mato, seu galo “mufino”! Eu vou arrancar a sua crista! Volta aqui corno, “cê né home” não? Apareça…

Você apareceu? Assim foi o galo! Escafedeu-se.

Nunca mais ninguém deu notícia de “Esporão de Ouro”. Desapareceu sem deixar vestígios, deixando João Saracura deprimido e os babões, órfãos da cachacinha de graça.

O ex-campeão é procurado até hoje…

Saracura aposentou de vez a sua rinha, nunca mais quis saber de brigas de galo.

Depois de um tempo passou até a agenciar brigas de passarinho, que é muito mais tranquila… Mas… aí vai ser outra história…

 

FIM

 

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e poeta

Cândido Sales – Bahia. Quadras de Fevereiro de 2025

Lua cheia de Verão.