Desde que o mundo é mundo que o complexo sentimento do amor vem atormentando o ser humano. O sujeito é pego pela paixão quando menos espera. Um olhar escabreado, uma piscada marota, uma carícia ocasional e logo, eis ali o caboclo com os quatro pneus arriados. Ali nos anos 1950, o vilarejo do Porto da Santa Cruz era o principal território deste nosso torrão. O rio Pardo cortava o povoado ao meio com residentes em ambos os lados. O lado que viria pertencer à Cândido Sales era o que tinha a Igreja do Bom Jesus e, portanto, era muito mais movimentado. Nesta época, quem mais chamava a atenção no vilarejo era a professora Loura, uma moça lindíssima de 22 anos de idade. Finíssima, meiguíssima, educadíssima, simpaticíssima e com um corpo de fazer defunto pular fora da cova. A donzela adorava andar descalça pelas estreitas ruas do lugarejo, quando isso acontecia os corações dos varões portuenses faltavam sair boca afora. Loura tinha os seios fartos e carnudos, cabelos loiros à altura dos ombros, combinava a sensualidade do seu corpo com uma blusa de decote generoso e uma saia longa transparente, que diante dos raios do sol, fazia a alegria da renca de marmanjos. A cintura era tão delineada que se assemelhava a um pilão. A meiguice do seu rosto lhe dava uma característica europeia e os olhos azuis eram de um brilho estonteante. Apesar de tímida e de pouca conversa, Loura era extremamente competente no seu ofício, ensinava o “beabá” para os filhos dos moradores do povoado com uma invejável determinação. A garota chamava tanto a atenção, que religiosamente vinham retratistas de outras paragens apenas para tirar o retrato dela. – Dona Loura, a senhora permite “nóis” tirar uma chapa? É pra enfeitar a tenda de retrato da Vila dos Montes Claros! – Antes que a moça pudesse responder, chegava Tenório, seu pai (que tinha a fama de ignorante e mal-educado), puxando violentamente a garota pelo braço. – Sai da minha porta, bando de rapinas! Vá tirar chapa da avó de vosmeceis! – Mesmo assim, pipocavam flashes com as fotografias sendo tiradas sem o devido consentimento. Entre os pretensos pretendentes da linda professora, dois eram extremantes respeitados no vilarejo, não por serem bons, mas, por se fazerem respeitar pelo medo. Zelão e Quelemente era dois brutos que se diziam apaixonados pela garota, embora, jamais tivessem trocados, sequer, um ou dois dedos de prosa com ela!
Zelão era um garimpeiro rude feito a peste que além de mal educado e com fama de não levar desaforo para casa, só andava bebendo e arrotando pelas ruas do povoado. Rezava a lenda que este o moço havia arrancado no seu garimpo uma pepita de ouro de dois quilos e tanto. Apesar de ninguém confirmar o sucedido, o “lavrista” em seu rompante diário de prepotência, elegeu Loura –sem o devido consentimento da moça – como a sua futura noiva e a história caiu como um raio no ouvido de “Quelemente”, outro fanfarrão que possuía um pequeno rancho nas imediações do lugarejo e que era famoso por ser metido a valentão e acabador de feira. Quelemente era outro que vivia alardeando pelos quatro cantos que se aquela donzela não fosse dele, não seria de mais ninguém.
Em um dia de feira, depois de tomar suas duas talagadas de canjebrina no boteco de João Saracura, Zelão gritou em alto e bom som para quem quisesse ouvir que iria pedir Loura em casamento e que se ela não fosse dele não seria de mais ninguém, nem que para isso ele tivesse que morrer levando-a como prenda. – Ué, Zelão… Dizem que ela está compromissada com Quelemente! – falava os babões que viviam escorados diariamente no balcão do bar de Saracura. – Com aquele sujismundo? Duvido. Minha galega gosta de homem asseado, aquele fedorento nem banho direito gosta de tomar. Quando eu me encontrar com ele “vamo acertá” esta contenda.
Quelemente era também chamado de “Dentão”, por ter dado durante um tumba uma bela de uma mordida na cara de Durvalino Guarda, fazendo que o infeliz pegasse 40 pontos, sendo (é bom que se diga) costurados sem anestesia e com uma agulha apropriada para coser saco de linhagem. Também era muito famoso por não enjeitar uma boa briga, inclusive, já duelara com uma onça pintada que deixou o seu corpo mais furado que tábua de pirulito. Quelemente quando bebia saía às ruas gritando o nome da moça. O tempo passou e um belo dia, após ter enviado para a garota meia dúzia de maus traçadas linhas sem obter sucesso, o valentão deu uma bistunta e concluiu que ela preferia o garimpeiro à ele, já que Zelão andava arrotando aos quatro ventos ter achado a pepita de dois quilos. Assim, a peleja entre Quelemente e Zelão passou a ser inevitável!
Joãozim Beija-Flor era o poeta do Porto. Ágil e oportunista, antes mesmo da consubstanciação do sucedido, prevera o embate e escreveu o cordel da “PELEJA DE ZELÃO VALENTÃO CONTRA O CRUEL QUELEMENTE PELO AMOR DE LOURA, A DONZELA!”. Foi um sucesso de vendas na feira. Vendeu mais que farinha com torresmo. Alas que em um dia feira, não é que Zelão estava pechinchando o preço das tripas de porco na banca de Mundim Açougueiro quando Nonato Boca de Fole, “amarrou a notícia na manga da camisa” e foi falar pra ele o que o seu desafeto dizia? Nervoso como era, Zelão ao ouvir a notícia, quase quebrou a pedra de amolar de Mundim amolando furiosamente (espumando de raiva os cantos da boca) as suas peixeiras de estimação de 12 polegadas. Após testar o fio de corte de uma delas arrancando uma renca de pelos do próprio braço, o garimpeiro partiu em direção à venda de Saracura. Queria testar a valentia do seu oponente. Boca de Fole seguiu-o a distância, torcendo para ver o sangue jorrar. Mas, como diz o ditado, nada vem de graça, notícia ruim corre mais que redemoinho. Nego Tiziu, um neguinho pé duro de cabeça seca, que vivia vendo e ouvindo diariamente o que era e, principalmente, o que não era da sua conta, assim, meio que sem querer, acabou “captando” em um só ouvido a fofoca e chispou na frente contando tudo para Quelemente!
– Moço, se pica que o homem tá vindo lhe matar! Tá com duas lascas de viana deste tamanho! – Bastou Quelemente sair à porta e já deu de frente com Zelão com uma faca em cada mão. – Vou lhe sangrar, tomador de “muié” alheia! – Falou tentando acertar o coração do garimpeiro que mesmo bêbado, conseguiu se esquivar… Após se equilibrar, deu logo dois cangas fugindo da linha de ação do oponente e já foi sacando o seu velho facão de aço fundido. Os dois eram exímios lutadores, experientes e devotados na arte dos embates corpo a corpo. Matar ou morrer para eles era irrisório. Recuperado da surpresa, Quelemente se manteve afastado do raio de alcance do ofegante adversário, olhou bem dentro dos olhos do oponente e se preparou para o embate ao tempo em que foi se formando uma roda de curiosos em torno dos brigões. Antes mesmo do “trincar dos ferros”, alguém trouxe um lenço de cabelo que foi literalmente abocanhado por ambos os duelistas. Estas pelejas tinham algumas regras básicas, matador que não as cumpria perdia o respeito da classe e poderia ser morto sem “honra”. Cada lutador mordia a ponta do lenço que ficava esticado entre os dois contendores. Era declarado vencedor aquele que ferisse mortalmente o seu adversário, ou, na pior das hipóteses, levasse o oponente a soltar o lenço preso nos dentes. Muitos preferiam morrer a soltar o lenço. Assim, com o lenço preso à boca os homens travaram um duelo que ficou registrado por muito tempo nos anais poéticos de Joãozim Beija-Flor, como um embate apoteótico.
Quelemente era um negão parrudo muito mais forte que Zelão, que também não era fraco, embora fosse bem mais baixo que seu oponente. Mas, se Quelemente era mais forte, Zelão era mais ligeiro. A peleja começou onze da manhã e foi até nove da noite. Nenhum dos dois soltou o lenço. O trincar dos ferros eram tão forte que se ouvia do outro lado do rio. Os homens saíram trocando golpes do Boteco de Saracura que ficava na entrada do Porto, bem no início da feira e foram parar na esquina do cemitério, na saída do povoado. O que tinha de obstáculos no caminho, a dupla foi desmantelando. Barracas, bruaças, bancas de carne, panincus, potes, gamelas, moringas, matulões, panelas de barros… tudo destruído. E o povo, tal qual um bando de urubus na carniça, ali, olhando, torcendo, gritando, querendo ver sangue. Nas primeiras duas horas, com um grau maior de resistência de ambos os lados, o estrago pareceu enorme com a dupla lavada de sangue. Zelão tinha os braços cortados, um rasgão no meio da testa, um olho roxo e perdera a ponta do dedo indicador da mão esquerda. Quelemente tinha um talho feio em cima do olho direito, a ponta da orelha esquerda balançando, cortada, esticada e segura por um fiozinho de pele, enquanto a sua barriga estava mais retalhada que o toucinho vendido por Mundim Açougueiro.
Depois de dez horas de luta, os golpes já não eram tão certeiros, nem a mobilidade de ambos tinha a destreza inicial. Percebia-se que a força dos golpes já começava a ficar previsível. Embora seja importante relatar que nenhum dos dois contendores, nem Zelão e nem Quelemente, largou, sequer por um segundo o lenço preso nos dentes, mesmo com todo tempo de contenda. Quase onze da noite, o povoado foi surpreendido por um barulhão infernal de sirenes, anunciando a entrada de um jipão cheio até os beiços de “praças” fardados e fortemente armados. Já chegaram pulando do veículo e moendo os brigões de porrada. Bateram tanto nos dois miseráveis que eles ficaram sangrando (mais do que já estavam) e cheios de hematomas pelo corpo. Zelão e Quelemente foram amarrados e jogados entrelaçados na caçamba do veículo militar e conduzidos para os Gerais.
A chegada da policia se deu graças à providencial intervenção do velho Tenório, genitor de Loura, que, temendo uma tragédia, montou na mula Catarina e chispou até o distrito de Águas Vermelhas nas Minas Gerais, dando parte do sucedido. Loura morreu muito tempo depois, sem se casar e virgem, quanto aos brigões, se escafederam, sumindo definitivamente da região.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
CSales, Bahia. Quadras de Janeiro de 2023. Lua Nova de Verão.