“O DOUTÔ ORTORIDADE”.
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“O DOUTÔ ORTORIDADE”.

Há alguns meses publiquei aqui mesmo neste espaço, a história de Pedro Guarda. Para minha surpresa, várias pessoas me procuraram para  narrar novas histórias do guarda mais folclórico da nossa cidade. Pedro morreu esfaqueado em meados dos anos 1980. Pedrão era um honrado vaqueiro que após perceber que não tinha mais idade para correr atrás de gado, mato-cipó adentro, resolveu aceitar um convite do relojoeiro João Delegado para reforçar o quadro da nossa Guarda Municipal, isso lá no final dos anos 1970.

Homem de confiança de João Delegado, Pedro se destacava por obedecer cegamente a qualquer ordem, mesmo as mais esdrúxulas. Quando João Delegado viajava quem o substituía era Pedrão. Chegava pela manhã, se sentava na cadeira de delegado, colocava os pés sobre a mesa e gritava para os companheiros: – Todo mundo trabalhando, quem manda aqui agora sou eu, o “Dotô Ortoridade”, muito respeito comigo. – Os colegas Derotides, Pelado, Deusdete e Geraldinho Flores morriam de rir. Diariamente era zoado de “Dotô Ortoridade”. Em meados dos anos 1980, o garoto Tonton (Tem hoje uma lanchonete no Bairro da Lagoinha e na época tinha 13 anos de idade), que sempre foi esperto e trabalhador, foi contratado pra vender sacolé (geladinho) para a falecida Dona Irene, mãe do locutor Gereba. Dona Irene mandou comprar um isopor novinho em folha,  colocou dentro uns 30 geladinhos de sabores variados e pediu para que o garoto saísse vendendo. Bom de prosa e esforçado, vendeu quase tudo em menos de duas horas, quase no final, resolveu passar em um barzinho no Bairro da Usina e um malandro, vendo a fragilidade física do garoto, resolveu se aproveitar. Após degustar os cinco geladinhos que restavam, o caboclo deu a testa,  se recusando a pagar. Tonton, pra lá de esperto, começou a fazer pressão; – Moço, me paga aí que eu tenho que prestar contas para Dona Irene.- Vem aqui amanhã, hoje eu não tenho dinheiro não. – Moço, eu não vendo fiado não. Você sabe que não é meu. Me paga logo que tenho que ir embora. Por favor, não me enrole não. – Por mim você vai, não estou lhe impedindo. Estou lhe dizendo que não tenho dinheiro agora. Passe aqui amanhã no mesmo horário que eu lhe dou o dinheiro.

– Não posso ir sem receber, não. Deixa de lambança que tenho que pegar mais geladinho pra eu vender e já está quase anoitecendo. Paga logo aí, moço! – Já lhe disse que não tenho dinheiro.

– Então porque você chupou meus geladinhos? – Ué, todo mundo vende fiado, por que você não? – Se eu nem lhe conheço. Paga logo que eu vou embora. – Por mais que Tonton insistisse, o malandro não estava nem aí. Sem alternativa, o garoto começou a falar alto chamando a atenção dos fregueses do bar que pegaram no pé do cliente velhaco.

– Paga o garoto, se ele está vendendo é porque precisa. Se aproveitando de um garotinho deste tamanho, devia ter vergonha na cara. – Diante de tanta reclamação, o velhaco, furioso, abriu a carteira e jogou o dinheiro no meio da rua. – Toma esta merda, vá pegar lá! – Ao tentar pegar, o vento o levou pra longe e Tonton saiu correndo atrás, assim que voltou percebeu que a tampa novinha da sua caixa de isopor estava quebrada. Ao olhar o risinho irônico do malandro, Tonton se enfezou.

– Rapaz, você quebrou minha caixa novinha? Dona Irene comprou hoje, vai ter que pagar. Ou paga ou vou chamar a polícia.

– Sai daqui agora ou vou lhe dar uma surra e quebrar o que sobrou deste isopor. – Desolado, o garoto saiu chorando e no meio da estrada resolveu ir à delegacia prestar uma queixa. Ao entrar, bateu de frente com Ibiapino – (o sucessor de João Delegado) e  entre uma lágrima e outra relatou todo o sucedido. – Onde fica este bar, menino? – Perguntou Ibiapino. – É pertinho daqui. O senhor vai lá mas eu?

– Eu não, mas Pedro vai. Pedrão, vá lá e traga aqui este valentão que gosta de ameaçar adolescentes. Traga agora e se resistir meta a madeira. Entendeu? – Inhô Sim, Delegado. – Respondeu Pedro Guarda pegando a sua famosa “Fanta” (um pedaço de madeira lavrada e polida). – Vamo lá “minino”, vamo “resolvê” este problema. – Assim, saiu andando lentamente com o menino o acompanhando. Ao chegar ao bar Tonton já foi indicando o velhaco. – É aquele lá, seu Pedro, o de camisa preta. – O guarda chegou perto e acenou para o “meliante”.

– Ei moço, “ancê mermo”, vem aqui. – Mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta, o caboclo se aproximou. – O que foi seu Pedro? Se for o negócio da caixa de isopor eu pago, sem problemas. – Experiente, o guarda falou baixinho no ouvido do velhaco. – O delegado pediu pra “ancê” dá um pulinho lá na delegacia. – Ah, eu quebrei a caixa sem querer. Vou dar agora o dinheiro pra ele comprar outra. – Não senhor. – Falou Pedrão -. Estas coisas não se acerta assim não. Tem que ser lá. – Falou já intimando o mal pagador! – “Vamo” dá um pulinho lá pra vê o que o delegado “qué”, depois “ancê” volta!  – Já falou segurando no braço do velhaco. – Mas agora estou ocupado, depois eu vou lá. – Ele mandou eu “levá ocê pru” bem ou “pru” mal, o que “ocê” prefere? – Ao ver o tamanho do cacete que o guarda levava na mão, o malandro achou melhor não resistir. Ao chegar diante do Delegado faltou chorar de medo.

– Você devia ter vergonha, um garoto de 13 anos, correndo atrás do pão de cada dia e um vagabundo da sua laia se negando a pagar o geladinho que consumiu? Paga o isopor, agora, vá! – Cabisbaixo o velhaco perguntou ao garoto: – Quanto foi? – Vinte Cruzeiros. Respondeu Tonton. – Assim que meteu a mão no bolso, o delegado gritou. – Pague 30 pra aprender! – Diante da pressão o caboclo pagou sem questionar. Feliz, Tonton botou o dinheiro no bolso, agradeceu cada um dos policiais e saiu correndo para comprar um novo isopor. Na delegacia o velhaco perguntou ao delegado:

– Já posso ir?  – Agora não. Respondeu Ibiapino. – Mas eu paguei, o que mais vocês querem? – Perguntou o caboclo trêmulo. O delegado olhou para o velhaco e com a cara mais limpa do mundo, ordenou:

– Pedrão, tranque este moleque no xilindró, só solta amanhã. De noite faça uma visitinha a ele com a sua Fanta e bote ele amanhã pela manhã, para lavar a delegacia todinha. Entendeu? – Inhô sim, Delegado. – Tonton soube depois que o caboclo levou uma pisa lascada de Pedro Guarda. Apanhou tanto que as mãos ficaram inchadas, mal conseguiu fazer a faxina.

Algum tempo depois, uma renca de lavadeiras procuraram o delegado para reclamar da meninada que nadavam pelados no “Rio da Areiada” humilhando as respeitáveis senhoras. Diante da pressão, o delegado incumbiu o “Dotô Ortoridade” para coibir esta falta de vergonha. Se pegasse algum moleque pelado era pra prender e meter o cacete. Toda tarde, lá estava Pedro patrulhando as margens do rio,  doido para pegar algum para dar um corretivo. Entre estes garotos existiam um, extremamente direito. Os pais eram frequentadores assíduos de uma igreja evangélica e de moral inatacável. Não por acaso, este personagem que hoje mora fora de “Candin”, é um dos mais importantes filhos deste torrão e é parente do nosso grande amigo, Almir (Mimi Gatão). Na época era só um garoto doido para se divertir, até porque o Rio Pardo era a única distração da molecada. Assim que aprendeu a nadar, se empolgou e toda tarde reunia a molecada para irem escondidos dos pais até a “Areiada”  onde tinham cascatas, “árvores sombreiras” e uma areia cristalina de tirar o fôlego. Neste dia, nosso amigo chegou com os amigos à beira do rio e para não molhar as roupas – para que os pais não descobrissem a mutreta – esconderam debaixo de uma loca e nus como vieram ao mundo, caíram na cachoeira. O sol rachando, a água fresquinha e a turma nadando. Competiam para ver quem conseguia ficar mais tempo debaixo da água, quem conseguia dar canga (mergulhar e bater o pé no oponente) e por aí ia. Eis que quando a molecada deu por fé, quem estava na beira do rio munido da sua indefectível Fanta? Pedro Guarda, enfurecido.

– “Ancês” saem todos daí, ordem do delegado. – Foi falar e no desespero, a molecada atravessou o rio, nadando em uma velocidade estonteante. Se sentido seguros do outro lado, passaram a pirraçar o guarda que não sabia nadar. – Vem pegar a gente, Pedro. Entra na água, vai? Ah, agora percebi, Ele não sabe nadar não. Vem aqui, Guarda, seja homem! – Gritavam os malinos, despertando uma incontrolável fúria no “Dotô Ortoridade”. Sem alternativa, Pedrão confiscou todas as roupas que achou debaixo da loca e ainda teve a decência de dizer: – Manda o pai de “ocêis” ir na delegacia pegar suas roupas. – Falou e picou a mula levando todas as vestes, deixando todo mundo pelado. Gente, pense aí no estrupício que foi? Completamente pelados eles tiveram que esperar anoitecer para saírem sorrateiramente pelas ruas, se escondendo para não serem vistos. Depois de vários obstáculos, conseguiram chegar enrolados em papelão. A maioria entrou pelos fundos das casas, escondidos dos pais.

Pedro Guarda morreria esfaqueado algum tempo depois ao tentar prender um doido que só queria seguir o seu destino. Esta morte fez que eu mudasse o meu conceito sobre doidos. Certa feita,  lá estava eu na feirinha do Bairro Brasil (em Conquista), quando vejo aquela algazarra danada, aquele barulhão, gente gritando, correndo e um doido quebrando tudo. Derrubava barracas, sacos de farinha, peixe salgado, laranjas, bananas, melancia, em uma fúria devastadora. No auge da infezação surge no meio da feira um veículo da polícia CAESG, que sabe Deus como, aparecera naquele justo momento. Ao ver o veículo com cinco policiais armados de tudo quanto há na caçamba do veículo, o doido que era doido mas não era besta, ficou imóvel na posição de sentido e quando o carro passou diante dele, fez aquela característica saudação nazista. Ergueu o braço direito e gritou: – Salve a gloriosa polícia baiana… – Um dos policiais até respondeu o gesto com um leve aceno de cabeça, assim que a CAESG passou, e na certeza que não seria ouvido o doido gritou:  – … Rebanho de Filas da Puta! – Voltando a meter os cacetes nos feirantes. Resumindo: até que o caboclo era doido, só que estava longe de ser besta!

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e poeta.

Cândido Sales, Ba. Quadra de Outubro de 2023. Crescente de Primavera chuvosa.