Em meados dos anos 1970, a principal diversão deste pequeno torrão eram as apoteóticas partidas de futebol realizadas no campinho de terra batida, Augusto Flores. Quase todas as semanas recebíamos a vista de algum time visitante, a maioria absoluta vindo de Vitória da Conquista. Ali no início dos anos 1980, a grande números de atletas da cidade fez que promovêssemos o primeiro campeonato local com quatro times. Nos sentamos, dividimos os jogadores pelo nível técnico e logo tínhamos quatro times extremamente equilibrados, disputando a primeira taça Cândido-Salense. Os times eram os seguintes: Palmeirinhas (Badim, Pedrinho, Edigar, Idelfonso, o locutor que vos fala e outros), Portuguesa (Edmilson, Quinquinha, Doutor Osvaldo, “Jojim” e outros), Rio Negro (Wilson, Assis, Zequinha, Gessi e outros) e um fenômeno chamado Cruzeirinho (Pio, Isaac Pires, Vandela, Miuzim, Zé Dedão e Celson entre outros). Este campeonato atiçou a rivalidade entre as equipes lotando o campo todo domingo. Cada time tinha o direito de contratar dois jogadores de outras cidades, o Palmeirinhas trouxe Gilmar – (um zagueiro baixinho que jogava muito) e Zico que era a cara do Galinho de Quintino que vivia o seu auge no Flamengo. Vários jogadores de fora passaram a disputar este campeonato, entre os quais, Juracy do Bairro Jurema. Centroavante famoso de Vitória da Conquista. O Cruzeirinho de Pio tinha uma meninada que jogava pra cacete. Celson, Miuzinho, Piau, Vandela e Isaac Pires. Isaac fazia gols de todos os tipos, tinha um canhão nos pés que metia medo. Quando esta molecada – todos na faixa de 15, 16 anos – entrava em campo a goleada era garantida. O Cruzeirinho ganhou o primeiro título da cidade com as mãos nas costas, no segundo campeonato, insatisfeito com o Palmeirinhas, saí e montei o meu próprio time chamado Mackenzie. Era um time formado só com os “refugos” dos demais. Assim, Luiz filho de seu Ademar da Padaria (extremamente encrenqueiro, era o goleiro), Ivon – Gerente do Banco Real (grosso que fazia dó e que batia até na sombra dele) era titular na zaga, Língua – doido de pedra – era o ponta de lança, Mirandinha (irmão de Nerinho era o centroavante e artilheiro) Getúlio de Quaraçu – já falecido – era o cabeça de área, eu jogava ao lado de Ivon e o grande craque do time era Giba, um “porralouca” que tomava uma cachaça lascada e jogava de ponta direita. O cara era uma espécie de rejeitado da cidade e tinha uma prosa tão ruim que nem os amigos aguentavam, assim que começou a jogar no Mackenzie (as vezes driblava o time adversário inteirinho e rolava para Mirandinha marcar) passou a ser respeitado na sociedade local.
Era um caboclinho magrelo, cabelo duro, altura mediana e filho adotivo de um casal muito respeitado na comunidade, que desenvolvia o ofício de hoteleiros. Assim que assumiu a titularidade na ponta direita no Mackenzie, o jogador mediano virou um craque. Driblava, dava assistências, fazia ótimos cruzamentos e marcava gols. Só que este moço tinha um problema que o tirava completamente da zona de conforto, apesar dos 18 anos de idade, o cara era extremamente donzelo. Sim. Nunca tinha visto uma garota pelada pela frente. Não era por falta de tentativas que ele nunca tinha tido uma mulher, tentar, ele até que tentava, o problema era que quando começava a conversar imitando os cariocas – chiando igual uma chaleira – a garota dava no pé! Ninguém resistia àquela prosa. Isso fazia que o pobre coitado, cotidianamente, fosse zoado pelos amigos, que – entre outros apelidos – o chamavam de “Virgem Maria” Quando alguém o chamava assim, o cara virava o capeta, tinha uma crise de infezação tão grande que para acalmá-lo só com muita oração! – Me respeita, rapá! Eu já namorei foi duas mulheres na mesma noite. Quer que eu prove? Eu tenho provas, quer que eu mostre?
Eis que um belo dia, a família do jovem Agnaldo, um comerciário muito popular na cidade, resolveu fazer uma festa, recebendo uma renca de convidados, oficializando assim o noivado do filho com a jovem Marília. A moça era gata, de uma morenês estonteante, de uma beleza surreal e toda torneada, com os cabelos negros, longos e encaracolados, se encaixando em uns traços indígenas de olhos asiáticos. E só pra deixar o caboclo sem fôlego, quando esta moça saía às ruas toda alegre e rebolativa, fechava literalmente o trânsito. O problema de Marília era que ela – digamos assim – estava longe de ser “santa”. Já namorara metade dos rapazes da cidade. E a mulherada com inveja, se reunia para difamá-la. Sensualíssima e com um incomparável par de coxas, nem precisou fazer força para fisgar o coração do pobre Agnaldo que se invocou de casar em menos de duas semanas de namoro. Neste dia a beldade compareceu à festa trajando uma mini sainha jeans deste tamanhinho, dada com carinho pelo noivo apaixonado apenas para atiçar a libido dos amigos. Quando Marília apareceu com uma blusinha decotada, mostrando o umbiguinho e com aquele par roliço de coxas, Giba que (não tinha muita intimidade com a coisa) endoidou de vez, “butucou os zoiões” pra fora e (se esquecendo completamente de beber e comer) passou a babar literalmente na roupa. Onde a moça ia, Giba seguia com o olhar. Estava vidrado nas pernas roliças da jovem, que para o azar dele era comprometida. Os amigos de Agnaldo – apesar de saber que Marília não nascera para um homem só – ficaram torcendo para que o casamento desse certo enquanto a família fazia um banquete histórico para os convidados. Um pouco antes do almoço, Agnaldo pediu a palavra e após ficar vinte minutos elogiando os atributos da garota, colocou a aliança no seu dedo e confirmou o que todos já sabiam, que queria passar o resto da sua vida ao lado dela. Aplausos, abraços, choros, confraternização. A família radiante e Marília que – apesar de namoradeira, morria de medo de não encontrar uma marido pra chamar de seu – se empolgou e bebeu umas conenas além da conta ficando completamente embriagada, caída nos braços do noivo. Ah, a coisa saiu do script. – Eu te amo, Agnaldo, eu te amo. Você é o amor da minha vida! – Gritava a garota com a voz embolada na frente de todo mundo. – Nunca terei outro homem em minha vida. Juro perante Deus que você será o meu único e definitivo amor! Vou lhe fazer muito feliz! – E tome beijos, abraços, cheiros, mordidas e os cambaus.
– Eu sei, meu amor, eu sei… – Dizia o paciente noivo. – Mas agora é hora de você dar uma dormidinha para passar o efeito da cachaça, né? Ajuda aqui mãe. Vamos colocá-la no quarto pra ela melhorar! – A mãe e duas de suas irmãs conduziram a garota completamente embriagada até o quarto oficial da matriarca, acompanhada pelos olhos atentos de Giba que procurava ver se conseguia enxergar um pouquinho mais do que existia dentro daquela sainha curtinha. Ao ficar sozinho na sala, o malandro do Giba se encostou na porta do quarto e ouviu a voz sensual e embriagada da garota desesperada por um beijo: – Ah, Agnaldo, meu amor. Vem aqui, vem. Beija sua noiva, beija! Vamos fazer amor gostoso, vem cá, vem! – Quando Giba viu a linda morena naquele estado etílico, abrindo as coxas pra lá e pra cá, astuciou um plano mirabolante, estava ali diante dos seus olhos a oportunidade perder de vez a famosa “donzelice”. Marília estava bêbada, mal sabia o que estava fazendo, o noivo ocupado e se ele aproveitasse um pouquinho, quem ficaria sabendo? Assim, sorrateiramente, constatou que ninguém o via e invadiu o quarto da matriarca se jogando nos braços da noiva embriagada… – Agnaldo, meu amor, você está diferente, o que houve com a sua barba? – perguntou com voz trôpega, a noiva embriagada. Antes que Giba falasse alguma ela já foi se enroscando no caboclo e gritou – Beije-me todinha, vá! – Falou se agarrando ao donzelo. Com a maior cara de pau, Giba se enroscou de vez nas coxas grossas da embriagada.
– Me abrace forte, me morde, me beije, me aperte, me amasse, me belisque e me faz flutuar! Quero ser sua, somente sua. Me beija, me beija… – Pediu carinhosamente e, antes mesmo de repetir, lá estava Giba em cima da moça dando o maior “amasso”. Mão naquilo, boca naquilo, morde aqui, belisca ali, arranha acolá e antes mesmo da consubstanciação, eis que entra na alcova uma das irmãs de Agnaldo e flagra a cena, corre imediatamente para o quintal e conta tudo aos berros para o irmão… – Agnaldo, Agnaldo, Giba está lá no quarto de mãe fazendo severgonhice com Marília, se enroscou todinho com ela e está dando até beijo de língua! – Ôxe! Deixa de lambança Leidinha! Está louca, menina? Quem lhe contou isso? Está delirando agora, é? – Eu vi com estes olhos que a terra há de comer! Ele está lá no quarto de mainha em cima dela querendo fazer ousadia! – Nem precisou repetir. Agnaldo que estava tomando uma batida de limão sapecou este copo no chão e desembestou em direção ao quarto seguido por todos os convidados. E quando chegou à alcova quase que caiu de costas diante da cena: Ali à frente de todo mundo, lá estava Giba, com as calças arriadas, em cima da sua noiva, beijando tudo o que encontrava pela frente. – Giba, seu fila da puta! O que você tá fazendo? – Perguntou Agnaldo sem creditar no que os seus olhos teimavam em mostrar! – Ao ser surpreendido, o malandro pulou da cama e apontou para a garota quase desfalecida: – Foi ela que me agarrou. Eu nem queria! – Falou Giba tentando se justificar enquanto tentava vestir a roupa. Agnaldo olhou para Marília semidespida, o sangue subiu, babatou um chicote que estava pendurado na parede ao lado da porta e moeu Giba na pancada. – Fila da puta, ingrato, era pra você fazer isso com a gente, seu canalha? Ela estava bêbada, seu aproveitador de uma figa! – Era xingando e descendo o chicote em Giba que saltava mais que uma pulga adestrada. – Fila da puta, safado! Toma, toma, toma! Quando Giba conseguiu achar uma brechinha, saiu voando do quarto e caiu bem nos braços dos amigos e da família que assistiam perplexa o sucedido. – Me acode gente! Ele quer me matar! – Gritou Giba procurando proteção. Hipotecando solidariedade ao traído, a galera desceu a ripa no ponteiro direito. Bateram com tudo o que tinha nas mãos. Copos, garrafas, pratos, talheres… Eram batendo e Giba pulando. E tome pancada e tome pulo. E tome sopapo e tome queda! Honestamente, nunca vi alguém apanhar tanto na vida. Foram mais de 15 pessoas batendo de todas as formas. A surra durou mais ou menos uns dez minutos… Cascudos, bofetes, chutes na bunda, cuspe, água gelada, bordoadas… Assim que achou uma brechinha no meio daquele monte de amigos enfurecidos, Giba passou sebo nas canelas e desembestou porta afora correndo mais que filhote de nhambu quando perseguido por cobra. Nesta hora demonstrou todo o seu talento como “ponta-direita driblador e velocista”. Da casa de Agnaldo até a rodagem da BR-116 eram mais de um quilometro de distância e Giba, perseguido por todos os convidados da festa, correu saltando todos os obstáculos que encontrou pelo caminho. Imagine só a cena, um dos principais jogadores da Taça Cândido-Salense correndo quase pelado rua acima com um monte de ex-amigos lhe descendo a rei enquanto ele gritava mais que bacuri sendo castrado. Atravessou a Rio-Bahia em tempo recorde – onde, por motivo de força maior, houve uma desistência da maioria dos perseguidores. Do outro lado da pista, morto de cansado, sentou-se e conseguiu respirar aliviado, afinal de contas, conseguira escapar com vida (embora, cheio de hematomas). Após limpar o suor e lamber as feridas, levantou a cabeça, e… Quem vinha correndo trôpega e quase despida na sua direção? Ela, a noiva, claro!
– Agnaldo, meu amor! Volte aqui. Vem casar mais eu, vem! – Claro que a vergonha fez que Agnaldo desfizesse o noivado no dia seguinte. Quanto à Giba, deve estar correndo até agora!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor.
CSales, Bahia. Quadra de Junho de 2023. Crescente de Inverno.