Nos anos 1970, a maioria da nossa população morava na zona rural e ralavam semanalmente no cabo da enxada, deixando os sábados para tomarem suas talagadas e (no caso dos solteiros) darem suas “furunfada”. Ao chegar de São Paulo (com tino para os negócios), Honorino de Joaquim montou um buteco atrelado a um puxadinho. Botou logo três candeeiros enrolados em papeis celofanes coloridos para “alumiar” o ambiente, emprestou uma bateria velha de um baqueleleixo e após acoplar a radiola que trouxera da pauliceia a um velho amplificador, tirou um som lascado, tocando fitas cassetes previamente gravadas – com os sucessos do momento – na cidade de Conquista. Em pouco tempo o “Puxadinho do Joaquim” virou uma febre. Nos finais de semana chegavam dezenas de matutos apeados em cavalos, engarrafando a porta do boteco.
Alas que um belo dia, deu por aqui cheio de marra, Maneca Beiçudo, filho de Analina Raizeira, um negão forte e bruto feito uma cancela. Assim que butucou os olhos em Madalena, arriou os quatro pneus. Madá era a animadora do fuá, dançava a noite inteirinha com gatos e sapatos. Quando o samba terminava, ela arrastava o escolhido para a beira do rio e ali mesmo no lajedo, faziam suas servegonhice! Onde tem farra, cachaça e mulher… geralmente tem tumba. Foi se enroscar nas coxas carnudas da moça pra Maneca perder completamente o tino…
– Ôxe, tá doido, é? Não preciso de homem não, meu filho. Eu gosto de diversão, não nasci pra ser mulher de um homem só, não. Se quiser deste jeito pra mim tá tudo bem… – Naquela noite, Madalena dançou com todo mundo e no final do baile deu de se enrabichar pros lados de Bastião Lapada, um fazendeiro bonachão que existia lá pelos lados do Boqueirão. Quando viu sua paixão dependurada nos beiços de Bastião, Maneca virou a porra e após um curto bate boca, trocaram facãozada bem no meio do terreiro. Maneca era mais forte e Bastião mais hábil, bastaram 5 minutos para Bastião abrir um buraco de todo tamanho no cocuruto do negão, que sangrou feito gado. – Vou lhe matar, fila da puta! Isso não vai ficar assim não. Você é um homem morto, pode acreditar!
Eis que neste tempo, aqui em Nova Conquista, nomearam para delegado Luizão Casca Grossa, encrenqueiro feito o diabo. Na prática o moço era pedreiro, de tanto bajular o intendente, foi nomeado para o cargo derrotando uma dúzia de pretendentes. Em menos de um ano, Casca descobriu que podia turbinar seus ganhos, montando uma milícia e em nome da lei, sair extorquindo os matutos.
Quando percebeu que a coisa dava certo, se empolgou ainda mais e proibiu o uso de cabelos longos no vilarejo. Enquanto João Fala Mansa e Gregório do Açougue tocavam terror na zona rural, na sede, Luizão virava a porra. Mandava a guarda municipal caçar e prender os cabeludos. Foi um fuzuê… enquanto os pais escondiam seus filhos, um carro de som saía às ruas tocando em volume máximo a música de Luiz Gonzaga (Xote dos Cabeludos) … Não, não, não…cabeludo tem vez não!… Aí a coisa ficou preta, se na sede era assim, imagine na zona rural? Bastavam os matutos passarem das 10 da noite dançando coladinho para o ambiente ser grotescamente invadido por Fala Mansa e Gregório, homens de Luizão. Já chegavam armados de tudo quanto há. Escopetas, revólveres, punhais e descia o cacete em quem estivesse na frente.
– É a polícia, nós somos a lei. Todo mundo de mãos levantadas e de cara na parede. – Gritava Gregório, mastigando literalmente sua dentadura. O açougueiro era alto, ganancioso e violento, sonhava em suceder a Luizão, embora, fosse analfabeto de pai e mãe. – Todo mundo de cara na parede, estou mandando!… dá uma geral em todo mundo Fala Mansa, quem tiver arma ou drogas meta a mão… Pega pesado!
– Abre as pernas, abre as pernas… Todo mundo de pernas abertas. – Gritava Fala Mansa, metendo a mão por dentro das calçolas das moças. Fala Mansa era um negrinho baixinho e “taradim”. Enquanto Gregório só se preocupava com a arrecadação, ele se divertia enfiando a mão dentro das calcinhas das moças. – Abre a porra as pernas, abre logo! – Enfiava os dedos nas moças e só se ouviam gritos e pulos. Quando estava muito tarado chegava ao ponto de rasgar as calçolas das meninas.
– Olha um pacote aqui. Deve ser droga. Aqui tem droga, aqui tem… – Rasgava a calcinha e se deparava com um absorvente. – Merda, que nojo! – Falava jogando o tampão sujo em cima do balcão. – Joga fora esta porra, não suporto sangue!… Todo mundo com os documentos na mão! – Quem estava desprovido da identificação levava uns cascudos e era aliviado da grana que tinha no bolso. O último a ser extorquido era o dono do boteco.
– Passa o apurado, passa o apurado. Seu baile é ilegal, se não pagar vai preso! – Ameaçava Gregório cheio de autoridade. De tanto ser perseguido pela dupla, Honorino se queixou para o seu pai Joaquim que era cabo eleitoral do vereador Juvenal que se queixou com o intendente.
– Você está protegendo um monte de ladrões. Se você não der um jeito nisso vou transferir os meus votos pro MDB. – Quando ouviu a ameaça, o mandatário tremeu na base. Prometeu que daria um jeito na milícia de Casca Grossa. Apesar de morrer de medo do nomeado, não queria perder aquele apoio. Enquanto o interior sofria com a prepotência da dupla, na sede, o delegado capturava aquela renca de cabeludos, os faziam dormir no xadrez (com as mães chorando na porta), para no dia seguinte protagonizar um show de horrores.
– Sai pra fora, renca de criminosos. Cabeludo é tudo da mesma laia… ladrão, maconheiro e safado!… – Gritava forçando o infeliz se sentar na cadeira na porta da delegacia onde tinha os cabelos tosados com requinte de crueldade. – Pronto, agora está parecendo homem. O próximo! – Enquanto os garotos eram conduzidos à força para a tosa, as mães soluçavam em desespero. Assim, em pouco tempo não restou um cabeludo na cidade. Quando o cabelo começava a crescer, nego corria logo e raspava. O medo turbinou o serviço de barbeiros da região, tinham até filas para raspar a cabeça. Rezava a lenda que a raiva de Luizão se devia ao fato dele ter nascido careca e nunca ter usado um pente!
Alas que um belo dia, deram parte na delegacia do sumiço do fazendeiro Bastião Lapada. O intendente, pressionado pelos malfeitos da milícia, viu-se obrigado a dar um ultimato ao Casca Grossa:
– Ou você descobre o que aconteceu com Bastião ou eu lhe exonero. – Ao ouvir a ameaça, Luizão baixou de mala e cuia na zona rural, não podia, em hipótese nenhuma, perder aquela mamata. Assim, tinha que descobrir imediatamente o paradeiro do desaparecido. Após dois dias investigando, descobriu que a última vez que Bastião fora visto, foi na noite em que duelou com Maneca Beiçudo. Ao saber que o negão ameaçara o fazendeiro, o delegado entrou de sola:
– Maneca, fala a verdade. Cadê Bastião? – Eu lá vou saber da vida dele? – A última vez que ele foi visto foi quando brigou com você. Fala aí o que você fez? – Eu não fiz nada. Troquei facãozada com ele, levei um corte na cabeça e fui sangrando pra casa.
– Você é um mentiroso! – Gritava Luizão furioso. – Se não falar por bem, vai falar por mal!… Fala Mansa, Gregório, traz este safado aqui pro terreiro. – Eu não fiz nada não, me solte, me solte… – Os “Quebra-Facas” do delegado pegaram o negão, jogaram no meio do terreiro e ali à vista de uma renca de curiosos moeram o infeliz de pancadas. Tapas, chutes, pauladas, socos… – Fala fí de um quenga!… Cadê Bastião? – Berrava Gregório, vermelho feito um peru! – Pelo amor de Deus, eu não sei não. Para de me bater! – Foram duas horas de pêa, quando o negão estava completamente lambuzado de sangue, Luizão se aproximou, agarrou seus cabelos, levantou sua cabeça e olhando nos seus olhos, falou rangendo a dentadura:
– Vou perguntar pela última vez… o que você fez com Bastião?
– Pelo amor de Deus, eu não fiz nada! – Gritou o homem desesperado! – Fala Mansa, tire as calças deste imundo, vou arrancar os ovos dele! – Os Quebra-Facas rasgaram a calça do nego de fora a fora com uma faca, deixando o caboclo pelado e desesperado. – Vou lhe capar, safado! – Gritou. – Abram as pernas dele! – Quando Maneca viu o delegado vir com a faca na mão na sua direção… abriu o berreiro:
– Eu falo, eu falo! Eu o matei naquela mesma noite. Tocaiei e dei um tiro na cabeça dele. Está ali na cisterna há quase um mês!
– Fila da puta! – Gritou Luizão dando um bofetão no negão! – Arranja uma corda grossa, este safado vai entrar lá e tirar o corpo. – Assim foi feito, completamente pelado, Maneca foi obrigado a descer na cisterna, amarrar o corpo em decomposição ao seu e trazê-lo pra fora. Quando o corpo do morto foi içado, todo arroxeado, com a pele se soltando igual casca de manga madura, o fedor tomou conta da região, uma catinga lascada! Casca Grossa e a milícia amarraram Maneca atrelado ao defunto, corpo com corpo, um por cima do outro, dando uma renca de voltas na corda, os deixando cara com cara. Jogou o fardo em cima da picape e os conduziram para Conquista. Durante a viagem, Maneca foi espremido embaixo do defunto em decomposição soltando pus e sangue na sua cara! Chegou ao destino em estado de choque! quando desamarrado, agradeceu ao delegado de joelhos. – Me prende, por favor, me prende logo! – Gritava sorrindo, satisfeito.
Maneca ficou 8 anos, preso, quando solto, fugiu para bem longe deste torrão. Quanto ao Casca Grossa, foi substituído assim que surgiu a lei que exigia curso superior para o desenvolvimento do cargo. Os cabeludos, aliviados, agradecem até hoje!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Dos confins do sertão da Ressaca.
Cândido Sales, Bahia. Quadras de julho de 2025.
Crescente de inverno.