– Morra, “féla” de uma égua! – 1967, estrada real que liga Nova Conquista à cidade de Encruzilhada, o mais famoso coronel da região salta atabalhoadamente do seu cavalo branco, saca o seu revólver 38 e descarrega nos peitos do Véi Braúna, que morto de bêbado, dá alguns passos pra trás e após sentir que a arma não tem mais munição, mete a mão na algibeira, retira todas as balas mochiladas, mostra para coronel e solta uma gargalhada tenebrosa: – Rá, rá, rá, rá….
O Velho “Braúna” era um negro alto e magrelo, conhecido como mandingueiro profissional. Descendente dos quilombos do sul da Bahia, o caboclo andava sempre moqueado, trajando sua velha e rasgada calça meio-coronha, a barba por fazer, a camisa suja (faltando botões), revelava o dorso esquálido e a barriga murcha turbinando os fios de costelas. Certa feita, pegou um gripe violenta e após uma semana acamado, levantou-se doido para comer um pirão de galinha gorda, e, como não tinha nenhuma criação no terreiro, invadiu as terras do coronel Onofre que confinava com as suas. Este coronel era muito rico e valente feito o diabo, nunca enjeitara uma boa briga na vida e tinha no currículo o duelo com duas ou três suçuaranas. Rezava a lenda que este fazendeiro já encomendara uma dúzia de almas, sutilmente despachadas por seus jagunços. Com a fome lhe comendo as entranhas, Braúna cismou de afanar uma penosa e optou por pular a cerca que dividia as terras. Aliás (pensou), que mal faria? Ele tinha tantas galinhas que nem daria fé. Verdade seja dita: se tinha uma coisa em que o negro era mestre, era na artimanha de subtrair um poleiro. Quando amanhecia invocado, colocava um caroço de milho em um anzol de piabanha, atado a uma linha urso e com uma vara de marmelo jogava a isca no quintal do vizinho e trazia tudo o que podia. Em tarde de sorte, o negão pescava uma dúzia de galinhas gordas. Quando a “penosa” mordia a isca, a vara de marmelo dobrava e a forte linha urso trazia a galinha até os braços de Braúna que com uma perícia invejável, quebrava o pescoço da coitada antes mesmo que tivesse tempo de dar com a língua no bico. Neste dia, escorregou feito casca de banana por baixo dos arames farpados e da moita de quiabento, pescando com uma incrível habilidade o primeiro galináceo que mordeu a isca. No escuro da madrugada, assim que babatou o “pescado”, quebrou-lhe logo o pescoço. Pra seu azar, não era o famoso galo Jeremias? Sim. Jeremias o pai do terreiro que o coronel gostava de arrotar que não o vendia por nenhum dinheiro. – Meu galo é tão tarado que as galinhas fazem filas para ficarem com ele. Ô galo macho da gota serena! – Quando tomava sua canjebrinas o velho Onofre ficava horas enchendo Jeremias de predicados! Gostava tanto do bicho que saía com ele na garupa do cavalo e quando entravam em algum boteco botava uma talagada pra ele e outra pro galo. – Dá uma bicada aí, velho macho! – Para não fazer desfeita, o galo dava uma ou duas bicadas no copo do coronel. – Esse caboclo é macho… este haverá de morrer de “veísse”! – Bradava o velho para quem quisesse escutar. Neste dia, querendo mostrar serviço, assim que viu a isca Jeremias não foi o primeiro a abocanhá-la? Só percebeu a furada em que entrou quando já estava sendo içado à força pela goela. Não houve nem tempo de gritar, teve logo o pescoço dilacerado pela perícia assassina de “Braúna” que só queria mesmo era roubar uma galinha gorda, mas já que veio o galo… fazer o que? O jeito agora era botar no bucho. Ali, diante do incrédulo Braúna, jazia, “mortinho da silva”, com o pescoço dilacerado e a linguinha pra fora do bico, prestes a ser temperado e cozido a grande paixão do coronel. As más línguas diziam que ele gostava mais do galo que da esposa. Como o galo tinha batido as botas, o jeito foi o quilombola voltar na ponta dos pés, saltar novamente a cerca, encher o famoso “panelão” com água fervente, botar mais lenha no fogão e deixar o morto borbulhar. Com uma invejável perícia, retirou cada pena do falecido, tendo o cuidado de enterrar uma por uma em buraco de três palmos de fundura.
Meio quilo de toucinho refogado com alho, sal e pimenta misturados ao urucum deram a cor e o sabor que o galo precisava. Mais alguns copos de água e lá jazia o finado a borbulhar na panela de barro, enchendo a casa de um aroma prazeroso e convidativo. Tão convidativo que Luzia de Antenor, sua vizinha bisbilhoteira, entrou casa adentro bradando: – Hum… Que “cherim bão” … – Sem cerimônias, foi logo destampando a panela e olhando dentro. – Galo?!! Obá, arrumou “aonde”?
– Arrumou “aonde”? – Falou Braúna tampando novamente a panela. – “Ocê já uviu dizê” que pru aqui alguém dá nada pra ninguém? Comprei, ué, comprei… “Num” posso “comprá” não? “Sô pió” que os “otros”?
– “Derne quando ocê compra arguma coisa”, coisa ruim? Fala a verdade, “ocê afanô”, num foi? Quiá, quiá, quiá… – Ria a velha com a boca desdentada e rodopiando em cima do corpanzil gordo e mal estruturado. – Oia, vá “percurá o qui fazê”! – Falou Braúna irritado, enxotando a vizinha. – Oxente, num vai me dá um “taquin” não? – Indagou a velha senhora sendo empurrada porta afora. – Se pique daqui “qué cumê”? Vá “trabaiá”, “num tô aqui pra dá cumida” pra “ismolé” não! – Braúna já ia voltando para dentro da sua casa pensando no banquete que teria naquele dia, quando ouviu Luzia ironizar lá no meio do terreiro. – É… muita coincidência. O galo do “coroné sumi no instantin qui ancê” aparece cozinhando um bitelo deste tamanho. Quando o “coroné” Onofre “dé pru fé” que o galo dele sumiu, “nun” vai “dexá” uma “peda” no “lugá”. Vai saí “batêno” de porta em porta! – Falou e já ia saíndo quando Braúna gritou: – Ei… “vorte” aqui, “qué mermo” um pedaço? – A velha Luzia, abriu um sorrisão desdentado e falou: – Eu sabia. “Nun” é que é Jeremia “mermo” que tá “borbuiano” dentro daquela panela? – Preocupado, Braúna abraçou a velha senhora e a foi puxando pra dentro do casebre. – Oia “cumade”, venha cá, venha cá, não precisa falar nada não, leve um “pedacim” da coxa pra “sinhora fazê” um pirão, tá bom? – Falou todo delicado, em uma gentileza de meter medo. – Só vai ficá bom se eu “levá tombém” a asa… – espertamente a senhora foi pegando os pedaços e colocando dentro de uma lata velha de goiabada. -… O “figo”, a “muela” … – Ué, assim “ocê” leva o meu galo “todím” … – “Mermo” assim “inda é mió” eu “levá”, que o “coroné sabê” … – Esperta como o diabo, Luzia de Antenor foi tirando proveito da situação, confiscando os melhores pedaços.
No dia seguinte, Braúna foi subitamente acordado pelos murros violentos dados na porta do seu casebre. – Braúna, seu bosta! Abra esta porcaria de porta agora ou eu a boto no chão! – Gritava o coronel com o seu impecável terno branco e o seu chapéu panamá. Sorrateiramente o quilombola destramelou a poeta e fingiu surpresa. – Oia, o senhor aqui, coronel, que surpresa boa! – Falou todo saltitante tentando engambelar o coronel. – A que devo esta visita, meu “coroné”?
– “Ancê” viu o Jeremias “pru” aí? – Perguntou o ofegante coronel, vermelho igual pimenta! – “Jeremia, Jeremia” … o seu pai de terreiro? – Disfarçou o astuto negão. – Sim, seu imbecil, qual outro Jeremias você conhece? Estou falando do meu galo premiado e macho! Cadê ele? – Perguntou o coronel. – Ué, eu lá “vô sabê”! Deve de tá lá no seu “puleiro”, ué? “Ancê” vem “priguntá” pra mim? – Furioso o coronel, pegou Braúna pela gola, o encostou na parede, olhou bem dentro dos seus olhos e falou mastigando a dentadura: – Oia “cabra”, num pense que me engana não, ouviu? Conheço gente da sua “laia”! Meu galo Jeremias sumiu! Tanto eu “cunheço” o meu galo, como a sua fama de ladrão de galinha! Se tu “pru” acaso comeu o meu galo de estimação eu juro por tudo quanto há que haverei de “cumê” o seu figo “freventado cum um lito” de pinga de alambique, “intendeu”? – Estava tão furioso que babava os cantos da boca.
– Por acaso “ancê tá insinuando que eu, o Véi “Braúna” roubei o seu galo? – Já perguntou soltando os bichos pra cima do coronel: – “Ancê” me “arrespeita, coroné”? O sinhô e sua” famia” gozam de todo o meu apreço, e o senhor tem a petulância de vir na minha porta me acusar de “robá” o galo Jeremias que eu conheço deste que era “pintim”? Me economize! O senhor deveria ter vergonha nesta sua cara lambida. Quando senhor “achá” o seu galo o senhor vai voltar aqui com o rabo entre as pernas pra pedir “disculpa” … – Ao sentir a fraqueza do coronel, o astuto abriu o seu vasto dicionário de impropérios e passou uma descompostura tão lascada que o coronel mal acertou a porta de saída! Atônito, após cruzar a cancela, ainda gritou: – Se foi você eu vou descobrir! E aí… adeus “Braúna”!
– Vá se “lascá” seu “cumbuco véi”! Oia pra minha cara e me respeita. “Num sô” ladrão de galinha não! Vá “precurá” com gente da sua láia! – E assim foi. O tempo passou e a saudade de Jeremias fez que o coronel ficasse acamado, queimou em febre por duas semanas. Alguns catimbós, banhos de cheiro e algumas garrafadas depois, o coronel já estava até aceitando a ideia do seu galo ter sido comido por alguma raposa, quando deu de cruzar o terreiro da tapera de Braúna e topou com uma pena do rabo de Jeremias, voando delicadamente. Curioso, a seguiu e deu com uma cova repleta de penas em pleno quintal do vizinho. Para azar de Braúna, a cachorra Bastiana da véa Luzia, farejou e cavou o buraco feito pelo negão. Ah, menino, Quando o coronel viu aquilo, foi tomado por uma raiva tão violenta que mal se aguentou de pé. Deu logo uma suadeira lascada, o coração disparou, o sangue foi subindo para o seu rosto e logo lá estava ele com um pilunga na mão quebrando tudo o que Braúna possuía. Tudo, neste caso, é força de expressão. O negro tinha uma cama de varas, um fogão a lenha feito de barro, um pote pequeno, uma velha moringa de boca quebrada, duas cabaças penduradas na parede e meia dúzia de panelas de barro. Não sobrou um caco. O Coronel Onofre moeu tudo no pau.
Depois disso Braúna escafedeu-se. Sumiu que não deu nem notícias. Neste interim, o coronel e os seus cabras procuraram até cansar. – Quando eu encontrar aquele “nego” “felá” de uma égua, “vô inchê” a boca dele de bala que ele vai “ficá” mais furado que “táuba” de pirulito! – Quem conhecia o coronel sabia muito bem que o homem cumpria o que prometia. O cara atirava mais que artista de faroeste italiano, era mais bravo que Rock Brabo de Leo Canhoto e Robertinho e mais famoso que Waldick Soriano. O que o velho Onofre não sabia era que eles se cruzavam todos os dias. Quando Braúna via o coronel se “envultava”, virando toco, pedra, cachorro, gato, galinha… sendo que o coronel chegou ao ponto de urinar em uma árvore em que ele se transformara. Eis que em um dia de feira o negão resolveu descarregar sua angústia bebendo uma cabaça inteirinha de canjebrina. Ao cair da noite, lá vinha ele tropicando, calça caindo, morto de bêbado, quando deu de frente com Onofre montado no alazão. Menino, quando este coronel enxergou aqueles quase dois metros de negro, bêbado feito um gambá, o homem saiu do prumo, desceu deste cavalo, sacou o seu 38 e descarregou à queima roupa nos peitos do negão.
– Morra féla de uma égua! – Foram seis tirambaços dados com raiva… Cada bala que pipocava no peito de Braúna o fazia dar dois passos para trás e o coronel tome, bala… Depois dos seis tiros, Onofre apertou o gatilho mais umas duas ou três vezes e as balas tinham acabado. – Mas, que diabo é isso? – Perguntou para si mesmo. Apesar dos disparos à queima-roupa, Braúna continuava de pé na sua frente. Nervoso, sapecou o revólver na cara do negão que se esquivou habilmente e pós dar uma olhada desconcertante para o velho, Braúna meteu a mão na algibeira e mostrou gargalhando as seis balas mochiladas que saíram do seu 38. – O “quí”, ó, bestão! Meu corpo é fechado. – Falou, puxou o facão e partiu para cima do coronel. Olha, eu não vi, é verdade, mas, dizem as más línguas que a surra de facão que Braúna deu no coronel foi de dá dó. Imagine um homem de mais de 100 kilos, desembestado na frente de um negão furioso, lhe descendo o rei? Pois foi. Levou tanta lapada de facão que tentou montar às pressas no alazão e atarantado, caiu de cara no chão do lado oposto da cela. Braúna até que deixou barato, cortou apenas o lóbulo da orelha do coronel e o seu currião, o fazendo correr segurando as calças. A partir deste dia, Onofre ficou desmoralizado, virou piada na região. Perdeu completamente o respeito, passando a ser conhecido como o coronel que levou uma pêa do véi Braúna. Dizem as más línguas que Braúna morreu de morte morrida com mais de oitenta anos de idade, desapareceu em pleno velório, recusando-se assim a ser enterrado.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de novembro 2024
Lua cheia de Primavera.
P.S. Nesta semana da Consciência Negra, nossa homenagem à Braúna, um dos mais importantes negros que viveu neste torrão.