Já contei aqui que Língua – nosso amigo aluado – era um gênio. Ao ver com 10 anos de idade o seu pai ser brutalmente esfaqueado em plena feira da Divisa Alegre, o órfão nunca mais foi o mesmo. Diante da tragédia a sua família mudou-se para Belo Horizonte onde residiram por 8 anos e retornaram para Cândido Sales na década de 1970. Os amigos mais próximos dele neste retorno, era eu e o poeta Zelão. Testemunhamos incólume os temores, os desejos, a criatividade e todo o sofrimento da alma do jovem de 18 anos que escrevia em tempo integral, montava espetáculos teatral e entre uma partida ou outra de futebol fumava uma maconha lascada. Neste mesmo período também existia por aqui um caboclinho terrível. Ludovico dos Óculos quando rapazola era tão maldoso, mas tão maldoso que metia medo. Amarrava bombinhas nos rabos de cães e gatos, colocava um cururu com a boca costurada dentro de um saco plástico, amarrava o saco e ria de prazer vendo o bicho morrer asfixiado. Apesar de tudo isso, sua maldade preferida era a distribuição de choques elétricos na molecada da sua rua. O caboclo era mau, tocava terror nos amiguinhos!
No início dos anos 1980, eis que chega a “Candin” a nossa primeira agência bancária, inaugurada com pompa no espaço onde hoje é o Banco do Brasil. A indicação dos pretensos contratados saiu diretamente do Gabinete do Prefeito. Ludovico dos Óculos foi um dos que foram à cidade de “São Salvador” fazer a prova de admissão. Na verdade, o teste era apenas formalidade, na prática, todos os indicados já se encontravam contratados. Ludovico respondeu meia dúzia de perguntas pessoais e rabiscou uma folha em branco apenas para demonstrar que era uma pessoa “normal” e logo já fazia parte do seleto grupo de funcionários do Banco Real SA. Os dois dias de lazer em um luxuoso hotel de Soterópolis – tudo pago pelo Banco –, só não foram perfeitos porque o jovem míope deu um calundu lascado no jantar do segundo dia, quando cansado de comer lasanhas e outras iguarias finas, subiu na mesa e clamou: – Eu quero é arroz maranhão! – Para quem não sabe, o arroz maranhão era bem quebradinho e o mais vendido neste torrão (Taí Oriston que não me deixa mentir). Gritou e foi entusiasticamente aplaudido pelos 100 contratados que ali se reuniam – oriundos de cidades interioranas como a nossa. Diante do protesto o gerente cedeu e o hotel passou a servir feijoada, ovo frito com torresmo e o solicitado arroz quebradinho. Quando Ludô recebeu o primeiro pagamento, torrou mais da metade pagando bebidas para os funcionários – do gerente ao zelador. No seu assentamento de era, convidou metade da cidade. Na época ele alugara uma casinha na rua do Corte onde morava junto com a sua querida genitora que por “questões emocionais” se separara – incondicionalmente – do seu velho e querido pai que de próspero comerciante se transformou em um pobre e irreconhecível idoso, mal tendo onde morar. Não foi que de uma hora para outra o rebelde, astuto e bem empregado deu de traçar a sua vizinha Damiana? Sim, a esposa de Joãozinho Lambe-Lambe que morava parede-meia da sua casa. Pois foi. Damiana era daquelas senhoras fogosas e insaciáveis, aproveitando que o marido só andava “medicado” (negando-se a cumprir o seu papel de varão), bastou “butucar os zóios” em Ludô, para perceber que ali se encontrava a solução para todos os seus problemas. Uma rápida troca de olhar e logo o muro que separava as duas casas deixou de ser empecilho para a fogosa senhora navegar nas carnes tenras do bancário. Damiana – apesar da idade – ainda dava um caldo até grosso e a facilidade que tinha em pular muros confirmava isso. E assim, à medida que o tempo passava, religiosamente, todo final de semana à fogosa esposa que tinha quase o dobro da idade de Ludovico, esperava o seu marido ir com os amigos pro mato mode caçar tatu, e, quando Dona Luzia – mãe de Ludô – saía para o culto semanal com a bíblia debaixo do braço, sorrateiramente ela pulava o muro e se emaranhava nos braços e nos lençóis de cambraia que serviam de cenário para o amor voraz dos amantes. Eram quatro horas ininterruptas de beijos, mordidas, arranhões, gritos, gemidos e de um indescritível prazer… além de constranger toda a vizinhança, faltavam quebrar literalmente a cama.
Com o passar do tempo, Joãozinho Lambe-Lambe que era bêbado, mas não era besta, começou a desconfiar da sua “querida senhora” que, se antes reclamava da falta de interesse do marido, colocando a culpa no excesso de cana que ele tomava diariamente, agora o ignorava solenemente. Desconfiado, o retratista começou a imaginar a mãe dos seus dois filhos “pintando e bordando pra fora” … A dúvida o fez ficar sóbrio por uma semana. Neste ínterim perdeu completamente o sono e passou a seguir sorrateiramente a esposa pela cidade… desconfiou da renca de elogios gratuitos que a esposa fazia ao primogênito de dona Luzia. Seria ele o amante da sua doce esposa? Não é que ele estava certo? Bastava Dona Luzia sair para o malandro do bancário entrar em ação, utilizando por cima do muro uma longa vara com um lenço branco amarrado na ponta, informando à “prestativa” vizinha que o caminho estava livre. Assim, uma “rapidinha” era dada com um enorme prazer.
Encucado, Joãozinho Lambe-lambe chegou a simular uma caçada de tatu para ver se os flagravam com as bocas na “botija”. Pegou os bornais e a espingarda e saiu, meia hora depois entrou casa adentro e constatou a ausência da sua senhora. Furioso, bateu na porta da casa vizinha chamando Damiana aos berros, foi atendido depois de alguns minutos por um descabelado e ofegante Ludô que mal tivera tempo de colocar os óculos no lugar. – Quero falar com minha esposa? – Falou um bravo e desconfiado marido, armado de facão e espingarda!
– Ôxe, moço! Quem falou que ela está aqui? – Desconversou Ludovico. – Se uma hora destas ela não está em casa, só pode estar aí. – Insistiu o retratista. – Eu estou aqui sozinho, cheguei agora do banco. – Gaguejou Ludovico. – Apôis eu quero entrar pra ver! – Ao tentar entrar, Ludovico tomou-lhe a frente, foi quando Damiana apareceu do lado de fora da casa toda descabelada. – Oxente, amorzinho, chegou cedo hoje, foi? – A astuta Damiana aproveitou a encheção de linguiça de Ludô para saltar o muro e aparecer na frente da casa abraçando e dengando o traído. Após convencê-lo que estava na rua deu uma piscada safada para Ludovico e saíram abraçados. A partir daquele dia, o bancário resolveu botar as “barbas de molho” e ser mais cuidadoso. O medo de levar galhas serviu para que Lambe-Lambe parasse definitivamente de beber e voltasse a trabalhar como retratista.
Eis que chega a festa de Ludovico, a pequena residência se entope de convidados… colegas do banco, da escola, da infância e uma renca de lindas garotas com suas vestes coloridas… e tome salgadinhos, batida de limão e tubaína – das grandes. O pobre do Lambe-Lambe que se encontrava abstêmio, ao ver a esposa toda sexy usando uma mini sainha de quando eles namoravam, entrou em parafuso e bebeu em um só gole meio litro de conhaque, passando a tropicar nas próprias pernas e a se segurar nas paredes para não cair. Ao perceber a excitação e as insinuações de Damiana para o seu lado, Ludô sentiu que mesmo bêbado, Lambe-Lambe percebera que naquele angu tinha caroço e aquela festa não iria acabar bem. Encurralado, correu e contou tudo para o seu amigo Crispim que era quem o defendia nas brigas de ruas. Crispim condicionou a sua ida à presença do seu amigo do peito, Zelão Poeta. Forçado, Ludovico ouviu de Zelão que só iria se o seu inseparável amigo Língua (ele, mesmo, “o doido”) fosse junto. Constrangido, porém, sem muitas alternativas, o jeito foi aceitar os desafetos tendo ainda que assistir, os amigos gastarem um caminhão de argumentos para convencer Língua. – Vô porra nenhuma, meu… festa de burgueses, passo longe! – Após algumas horas, lá estava o trio curtindo a “festa de arromba” de Ludovico. Mal acabaram de chegar e já foram saudados pela voz fanhosa e arrastada do bêbado Lambe-Lambe: – Chegaram os maconheiros, Dona Luzia! O “fí” da senhora só anda com maloqueiros. Tá vendo essa renca aí? Tudo “fumadô” de maconha, seu “fí tombém” é! – Crispim olhou para Zelão que segurou no braço de Língua que já estava querendo dar no pé! – Não falei! Só tem burguês nesta festa! – Disse contrariado. O Poeta o segurou pelo braço: – Calma, irmão, calma. Deixa os babacas falarem. Vai dar tudo certo. A gente toma umas biritas, mastiga uns salgados e cai fora! É só pra fazer uma média com este otário do banco. Afinal o cara é amigo de Crispim que é nosso irmão camarada.
– Duro vai ser aguentar este bêbado, aí! – Falou Crispim apontando pra Lambe-Lambe que não tirava o olho de Ludovico! Tropeçando nas próprias pernas, o bêbado botava as mãos no bolso, se encostava em Ludovico e detonava: – Sua mãe é gente fina, mas você é safado! – Falava baixinho e Ludovico fingia não ouvir. Quando Joãozinho aumentava a voz, lá vinha a saltitante Damiana a pegá-lo pela orelha.
– Quer que eu lhe leve pra casa, quer? Fica quieto ou vou lhe deixar trancado lá em casa, seu bêbado safado, falei pra você não beber, não foi?!
Quando Damiana falava Lambe-Lambe ficava quietinho! Já pensou ficar trancado enquanto ela se divertia com Ludovico? Nem em sonho! Empolgado, Ludovico gritou para os atendentes: – Sirva tudo quanto há para os meus amigos! – E foi chegando copos e mais copos de bebidas, bandejas repletas de pastéis, coxinhas, enroladinhos, canapés… “Língua” enchia as duas mãos e descarregava nos bolsos da jaqueta militar que usava, isso quando não enchia a boca propositalmente e falava cuspindo só pra irritar os convidados. Gostava de cuspir literalmente na “burguesia” que ele tanto ojerizava. Obrigado a ficar quieto, Lambe-Lambe passou a ficar rodeando Ludovico com cara de poucos amigos, quando Damiana se distraia ele soprava no ouvido do anfitrião: – Tá pensando que eu não sei? Este é irmão deste, ó (mostrava os olhos)! Se eu pegar eu mato os dois, estou avisando… – Falava baixinho, Ludovico fingia não ouvir. As garotas dançando efusivamente, as músicas da moda tocadas em volume máximo e eis que entediado, Língua sopra alguma coisa no ouvido de Zelão que pergunta onde é o banheiro e o conduz porta adentro. A dupla se tranca dentro e Lambe-Lambe fica de pé perto da porta. Passam-se 5 minutos e um fedor terrível de mato queimado toma o ambiente. O banheiro novinho em folha (construído para o evento) era no meio da sala e tinha meia parede, logo um fumacê começou a sair por cima infestando completamente o ambiente, eis que “Língua” resolve vir pra sala fumando um charuto de todo tamanho. Só de sacanagem resolveu achincalhar a festa social de Ludovico. A sala apertadinha, todo mundo dançando com todo mundo, aquela fumaça toda no meio do povo e um fedor desgraçado de mato queimado, Crispim e Zelão tentavam puxar Língua e ele só sobrando a fumaça na cara de Lambe-Lambe. Ao sentir o fedor que ele conhecia bem, feito um aluado o bêbado abriu o berreiro no meio da sala: – Eu não disse? Estes maloqueiros estão fumando maconha é aqui dentro… Manda aí dona Luzia, um menino chamar a polícia! Chama João Delegado! – Percebendo a situação, Damiana tentou tampar a boca do marido que passou a gritar ainda mais alto: – Rebanho de Maconheiros! Vão fumar nas suas casas, safados, maloqueiros dos “zinfernos”! Bando de filas da puta! – Ludovico ainda tentou argumentar, porém, nem dona Luzia lhe deu razão, Crispim e Zelão babataram Língua à força e o puxaram porta afora, enquanto ele morria de dar risadas o trio caía na “lapa do mundo” ouvindo ao longe os gritos embriagados do retratista, que bêbado feito um gambá, ainda os seguiu até o meio da rua:
– A polícia está vindo seus maconheiros! Bando de maloqueiros! Vão fumar na casa do cacete, seus safados! Alguém chama a polícia, prendam eles, prendam…
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Quadras de Março de 2024
Crescente de Outono.