O CAPETINHA DA GARRAFA.
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O CAPETINHA DA GARRAFA.

O Capetinha da garrafa ficou famoso em todo este sertão por – segundo a lenda – trazer riqueza para quem o possuía. Claro que havia a contrapartida. Em troca dos bens materiais adquiridos em vida, o infeliz tinha que dar a sua alma através de um contrato previamente assinado em sangue. Esta história aconteceu em meados dos anos 1950 quando a primeira família de quilombolas deu por este torrão. Josefino Braúna, o mais novo e mais esperto desta família, era apenas um “meninote” e testemunhou in loco, os “Braúnas” capitaneado pelo velho Zacarias, apossarem de alguns alqueires de terra sem dono lá pelas bandas de Sossiveno – na época pertencente ao município de Encruzilhada – e teve uma infância pobre, porém, divertida. Quando tinha uns doze para treze anos, ao brincar de “cair no poço” com os amiguinhos da vizinhança, o negão tropicou e caiu literalmente dentro de uma cisterna extremamente profunda e ficou mais quebrado que xerém. Os familiares fizeram um mutirão para retirá-lo todo muchilado do buraco. Braços quebrados, costelas trincadas, pernas retorcidas, rosto esfacelado, o negro ficou entre a vida e a morte. Os familiares desesperados colocaram a jovem Braúna em uma cama de varas e o encheram de emplastos, garrafadas e orações. Segundo as más línguas, após passar três dias e três noites agonizando com uma febre altíssima, Braúna só sobreviveu porque na ânsia da morte, fechou às pressas uma combinação com o “Tinhoso”. Em sonhos ficou combinado que ele faria qualquer coisa para continuar vivendo. A contrapartida exigida pelo Demo era ele achar e chocar debaixo do sovaco um ovo de urubu-de-cabeça-preta e após a eclosão, criar o  filhote como se fosse seu filho legítimo. Quem viu o sucedido, confirma que o negro foi retirado do buraco praticamente aos pedaços – com múltiplas fraturas expostas – e agonizando, levou vela na mão por mais de três vezes. Dois ou três dias depois, lá estava ele literalmente pulando as cercas das fazendas circunvizinhas, vadiado com a meninada, completamente recuperado. Os vizinhos ficaram boquiabertos sem entenderem bulhufas. Os arengueiros sustentam que após completar seus treze anos, em plena quaresma, em uma noite de lua cheia, Braúna adentrou a mata bruta e, após ficar cerca de três dias e três noites recluso, retornou na noite da Sexta-Feira da Paixão trazendo debaixo do “sobaco” um ovo de urubu roubado. O ovinho surrupiado por Braúna era do tamanho de um ovo de passarinho e foi fecundado debaixo do sovaco do negão por sete dias e sete noites.  Enquanto ele chocava o ovinho, delirava em febre, tanto que seus irmãos, temendo a sua partida prematura, buscaram quase que a força a presença do Padre Anphilófio (responsável pela igreja do Porto de Santa Cruz) na tentativa de lhe salvar a vida.

– Pádi, pelo amor de nosso senhor Jesus Cristo, venha conosco, nosso irmão está entre a vida e a morte, o senhor precisa encomendar a alma dele, dizem que ele fez um pacto com o Tinhoso! – Contrariado, porém, determinado no cumprimento da sua missão, o Vigário montou na sua jeguinha Madalena e acompanhou a família dos Braúna por mais de dez léguas, até a localidade de Sossiveno.  – Ele está lá dentro, Pádi. Está falando com o Demo, o senhor precisa salvar a alma dele. – O Padre Anfilóphio era muito famoso por já ter efetuado uma renca de milagres no Sertão da Ressaca, atônito adentrou o pequeno quarto do casebre topando com o rapazola, vermelho feito brasa, gemendo feito um condenado e levitando da sua cama de varas. Mal deu tempo do vigário pegar o crucifico e o rosário, antes mesmo de começar a rezar, Braúna butucou os “zóios” no padre, entrou em desespero e após babatar o pobre vigário pela batina e jogá-lo violentamente contra a parede por três vezes encarreadas, o escorraçou quarto afora na base do cabo de vassoura, inclusive, quebrando todas as cabaças de água benta que o padre trazia no bornal.

– Sai daqui pádi fedorento, quem chamou você aqui? Cai fora excomungado, suma, escafedeça de vez e não apareça nunca mais, desaparece daqui! – Diante da ferocidade do garoto, o pobre do Anfilhófio mal acertou apear na jeguinha Madalena e diante dos olhares atônitos e impotentes da família, desembestou na lapa do mundo, perdendo pelo caminho o seu legítimo cordão de São Francisco. Passados os sete dias, em uma noite de chuvas e trovões, o ovinho chocou e nasceu um diabinho deste tamaninho. Feinho de fazer dó! Dois chifrinhos na cabeça, um par de asinhas amarrotadas, dois pezinhos mutilados, um rabinho espinhado e vermelho feito um albino em dia de sol. O bicho, apesar de ter apenas uns quinze ou vinte centímetros de altura, já tinha uma corcunda a lhe curvar a cacunda, que o fazia só andar mancando, apoiado em um graveto de quiabento. Pra piorar o infeliz já nasceu falando e com um apetite de meter medo! – Ahhhh! Comida, preciso de comida. Fome, fome, fome… – Gritava o pobre diabo atormentando de vez a cabeça do jovem Braúna. Sem muitas alternativas, o negão o levou às escondidas ao poleiro do Coronel Onofre e o bicho fez uma devassa lascada, matando e dilacerando meia dúzia de penosas, priorizando as mais rechonchudas. A matança fez o coronel contratar uma renca de jagunços e sair armados até os dentes à procura de uma suçuarana que nunca foi achada. Assim que Braúna teve um contato mais próximo com o cramunhão, se arrependeu amargamente do que fizera, perdendo completamente o sono e passando as suas noites em claro, perplexo diante daquela coisa “zoiúda” de dedos enrugados, cujas unhas pareciam afiadas navalhas, o jovem deu uma bistunta e garguelou o diabinho, o empurrando à força dentro de uma garrafa cheia até os beiços de álcool canforado tampada por uma rolha. A primeira coisa que lhe veio à mente foi se livrar do pé redondo sacudindo violentamente o conteúdo da garrafa, quando estava próximo a concretizar a “consubstanciação” viu uma lágrima de sangue escorrer dos “zoiões” do infeliz, o que o fez desistir da ideia. Tinha que haver um meio menos trágico de se livrar daquela criatura. Ao fazer o pacto, o negro (malandro como era) pediu sabedoria, sabia que com a esperteza adquirida ele jamais precisaria de dinheiro e no seu íntimo, nutria a esperança de no fim da vida dar um “chapéu” no diabinho. Assim, enquanto criava o pé redondo dentro da garrafa escondida debaixo da sua cama, ele ia articulando um jeito de se safar do combinado. Eis que ao acordar em um dia qualquer morrendo de vontade de comer um pirão de galinha, o negro resolveu visitar o poleiro do coronel Onofre. Assim, resolveu fazer o que sabia de melhor, ou seja, roubar uma rechonchuda penosa do poleiro que ele conhecia como ninguém. Após entrar sorrateiro no quintal do temido vizinho, o malandro colocou um caroço de milho em um anzol atado a uma linha de pipa e com uma vara de marmelo jogou dentro do galinheiro. Ao sentir a fisgada na isca, por engano, Braúna fisgou a famosa poedeira, de estimação do coronel. A ave pesava quase cinco quilos e era admirada em toda a região pela quantidade de ovos que botava. Quando o coronel tomava umas e outras, alardeava aos quatro ventos os infinitos predicados da poedeira. Bradava para quem quisesse ouvir. – Jamais irei me desfazer de Belinha, minha galinha de estimação! – falava enquanto virava de um só gole um destes copinhos de pinga que existia antigamente!  Neste dia a coitada da galinha  deu o maior azar da sua vida. Como não suportava ver um caroço de milho dando sopa, a danada não resolveu pegar no ar o caroço de milho que voava diante dos seus olhos? Só percebeu a furada em que se metera quando já estava sendo puxada à força pelo gogó. Não houve nem tempo de gritar, teve logo o pescoço quebrado pela perícia assassina de Braúna! Fazer o que? Ali jazia em suas mãos, “mortinha da silva” com o pescoço quebrado e a linguinha pra fora do bico, prestes a ser temperada e cozida no “panelão” de barro dos quilombolas, a decantanda poedeira do coronel.

Meio quilo de toucinho refogado ao alho, sal e pimenta devidamente misturados ao urucum deram a cor e o sabor que a ave precisava. Uma ou duas chaleiras de água fervente e lá jazia a finada na panela de barro a borbulhar, enchendo o casebre de Braúna e todo o seu entorno de um cheiro delicioso.

Dona Rosalina esposa de Tibúrcio, uma senhora reluzente e arengueira sabia que de quando em vez  o negão aliviava a sua fome com uma ou outra penosa devidamente subtraída do poleiro do coronel Onofre. Diante do inebriante cheiro de frango cozido que chegou as suas narinas, a velha Rosalina não pensou duas vezes em vir chantagear o negro em busca de um bom pedaço do frango roubado. Já foi adentrando a casa dos Braúna em grande estilo.

– Ahãããã… Lhe peguei, seu ladrão de galinha do coronel Onofre! – Surpreso, Braúna tentou desconversar mas a velha já foi intimando. – Quero os melhores pedaços ou vou agora mesmo falar com o coronel! – Diante da pressão, Braúna ainda tentou negociar. – Deixa de ser besta Rosalina, eu lá “sô home” de subtrair coisa dos “otros”? Este frango eu comprei lá em Sossiveno.  – Ah, então vou perguntar ao “coroné”  se sumiu alguma galinha dele! – Antes de sair foi segura por Braúna. – Pera lá, vou lhe dar um pedaço de asa, um pescoço e uma coxa. – A velha senhora soltou uma bela de uma gaitada e sabendo que o negão estava na sua mão foi logo exigindo: – Quero o peito, duas coxas e o sobrecu. E pode deixar que eu mesmo escolho, já trouxe até minha cuia. – Correu em direção ao panelão de barro. Pra que? Assim que destampou a panela deu de cara com o capetinha de estimação sentado com as pernas cruzadas dentro da panela borbulhante, todo lambuzado de corante, mastigando gulosamente os ossos da poedeira, enquanto butucava os seus imensos “zoiões” pra fora! Ao ver Rosalina o bicho que estava mastigando a coxa da rechonchuda, botou os dentes pra fora, rosnando igual um morcego: Quiiiicchchchchchchchiiiii!

– Valei-me nossa senhora? Que diabo é isso, gente?!!! Socorro! Sai de mim, sai diabo, xô, xô, xô!!! – Gritou a pobre senhora largando a sua cuia de cabaça no chão, correndo desesperada com o diabinho voando e lhe mordendo o cangote a torto e a direito! Atarantada, a velha senhora pulou umas duas ou três cercas incarreadas até se ver livre do demônio. Depois deste dia, a velha nunca mais apareceu na porta da casa dos Braúna, mudou-se de mala e cuia para bem longe dali! Segundo as más línguas, Braúna morreu muito tempo depois, embora, reze a lenda que o seu corpo desaparecera misteriosamente em plena noite em que era velado!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Agosto de 2023. Minguante de Inverno.