– Eia, eia, eia… – Gritava o turco puxando a sua mula-guia atrelada a outros três animais, conduzindo bruacas cheias até os beiços de tudo quanto há. Tecidos, panelas, grãos, bebidas, artefatos essenciais para a sobrevivência no sertão da Ressaca. – Ligeiro, precisamos passar agora, a chuva está vindo, avia, ligeiro. – Gritava meio que desesperado o caixeiro-viajante, se equilibrando ao lado dos seus animais na frágil “Pinguela da Mula Manca”. Diante do empacamento dos bichos que temiam pela própria vida na frágil travessia, ao tentar correr o turco Salim recebeu um sopapo violento dado pelo mundão de água desabando sobre a sua cabeça, o jogando – juntamente com os animais e as mercadorias – a dezenas de metros de distância. Caiu, afundou, gritou, voltou à tona e meio desorientado se viu arrastado pelo Rio Pardo, cheio até os beiços, urrando valente… Sim, estamos no século XIX em pleno Sertão da Ressaca, nos arredores da Fazenda Bela Vista, embrião do Povoado do Porto de Santa Cruz. Salim, o caixeiro-viajante, era muito conhecido na região e o principal fornecedor de mercadorias da época. Apesar da língua enrolada, tinha uma destreza impressionante. Entendia o que se falava e se fazia entender, conseguindo assim, vender tudo o que tinha, com extrema facilidade. Só que a vida destes velhos mercadores não era um “mar de rosas” como muitos imaginavam. Cotidianamente eles tinham que sobreviver aos jagunços valentões, aos matadores de aluguel, aos ataques da gata suçuarana e até de uma ou outra cobra sucuri que atacava os animais fazendo que toda a mercadoria fosse perdida.
O turco era um bom moço, alto, magrelo, detentor de uma imensa barba negra – sempre bem aparada -, e gostava de andar sempre bem alinhado com roupas descoloridas e que combinasse com o seu indefectível colete preto. Na cabeça de cabelos negros, longos e enrolados, usava uma espécie de boina (que os judeus chamam kipá). Alegre e esperto, o mascate vendia e calculava com uma perícia invejável.
Eis que em meados de novembro do ano da graça de 1922, após atender à clientela do lugarejo onde futuramente seria a cidade mineira de Itamarati, picou – literalmente – a mula, precisava atender os clientes do Porto e ainda no mesmo dia rumar para São Jorge dos Ilhéus, de onde voltaria de navio para o Rio de Janeiro, indo de lá para o Líbano (sua terrinha natal) onde renovaria o seu estoque de mercadorias. Assim, entregou bem “ligerinha” (como gostava de dizer), as mercadorias, arrecadou os trocados e se despediu da clientela, caindo na lapa do mundo, tangendo rapidamente as suas mulas carregadas. O tempo, meio que nublado, fazia a tarde parecer noite. Salim, experiente viajante, tinha pavor do mês das águas. Temeroso, picou a mula estrada adentro sempre observando o horizonte redesenhado pelos raios, cujos trovões se faziam ouvir a quilômetros de distância. Agoniado, imaginando que algo ruim pudesse vir a acontecer, o mascate fincou as esporas no “subaco do vazio” da mula guia, forçando-a a aumentar a marcha. Depois percorrer algumas léguas, se preparou para atravessar a “Pinguela da Mula Manca”, uma espécie de ponte que era o terror dos viajantes (devido à fragilidade em que fisicamente as madeiras da construção se encontravam). Ao tentar atravessar a estreita passagem, concentrado para não perder nenhum animal, o turco foi surpreendido por um barulho infernal que ele já conhecia por já tê-lo ouvido outras vezes. Começou baixinho e foi aumentando de intensidade aos poucos, até ficar ensurdecedor. Experiente, o mascate ainda tentou salvar a sua carga. De soslaio, viu alguns pássaros voarem desesperadamente, ouviu o barulho das árvores serem retorcidas e o cheiro de terra molhada se espalhar no ar… Quando tentou correr “enxotando” a mula-guia, foi surpreendido pelo estrondo das águas que lhe deu um terrível sopapo, parecendo até a mão de Deus punindo os pecadores!
Era o estouro das águas do Rio Pardo, que enfurecido, descia violentamente carregando o que estivesse no caminho. Devido à chuva torrencial que desaguara na região, o velho rio subira mais de seis metros nas últimas horas. O turco foi atingido em cheio com toda a sua tropa, sendo atropelado em cima da pinguela à mais de três metros de altura. Foi um impacto tão forte que carregou tudo o que havia no entorno. Currais, casas, bodes, carneiros. gado, porcos, árvores, gente, aves e uma renca de carros-de-boi. Salim foi levado rio abaixo atrelado aos seus animais e ao que restara da ponte destruída.
A força das águas deixara o turco desorientado, a pancada foi tão violenta que ele ficou inconsciente por um bom tempo, boiando sem rumo. Depois afundou, subiu, afundou novamente… Primeiro sentiu uma paz maravilhosa, depois um frio intenso e por fim, sentiu-se levado pela forte correnteza rio abaixo, ao tempo em que a sua vida se projetava diante dos seus olhos. Em minutos viu-se ainda menino vivendo no Líbano. O avarento mascate diante da morte, rememorou a sua vida de quando menino de calça curta, sempre desembestado pelas ruas do seu amado país… As vezes marretando os colegas no jogo de cobres, as vezes tangendo ovelhas montanha acima… Sentia que nunca tivera infância. Enquanto os colegas estudavam, ele preferia trabalhar para ganhar e enterrar sua graninha. Diante da aflição da morte, o turco submergia e emergia nas barrentas águas do rio. Algumas horas envolto ao turbilhão das águas agressivas, chocou-se violentamente com a copa de uma árvore submersa e no auge do desespero, pode constatar, após abrir os olhos, que descia desembestado rio abaixo.
Salim, entre a vida e a morte, em poucos segundos avistou toda a sua infância, lembrando que enquanto trabalhava pesado, seus coleguinhas estudavam e se divertiam. Enquanto seus colegas nadavam no pequeno riacho perto da sua casa, ele guardava os cobres adquiridos transportando sacos de trigo na cacunda. O turco, mesmo quando pequeno, era obcecado por dinheiro. Queria ter um futuro brilhante, assim, enterrava em velhos potes tudo o que ganhava, queria progredir de qualquer maneira. Renunciou aos prazeres da infância para seguir poupando visando construir o seu futuro negócio. Com apenas 15 anos, pegou o primeiro navio e veio dar por estas bandas. Logo descobriu o ofício de Caixeiro-Viajante, e saiu vendendo mercadorias sertão adentro, seguindo a trilha recém-descoberta deixada pelos Bandeirantes.
Agonizando com a violência das águas que impiedosamente o arrastava, o fazendo submergir de vez em quando na aflição da morte, Salim se arrependeu amargamente por não ter aprendido a nadar quando tivera a oportunidade. Diante da morte e engolindo dezenas de litros de água, ele sabia que a sua vida estava por um fio. Pensava nos seus últimos momentos. Que ironia, ali jazia ele, impotente, levado pela morte, longe da sua terra. Afogando por não ter aprendido a nadar. Morrendo aos 47 anos de idade, com muito dinheiro, porém… sem esposa, sem filho, sem parentes e sem aderentes, sem choro e sem vela… Entregou sua alma a Maomé e já se preparava para o pior, quando sentiu alguma coisa lhe pegar violentamente pelo cangote e lhe arrastar nadando contra a forte correnteza que o levava rio abaixo.
Salim sentiu o gosto de sangue misturado à água. Abriu os olhos e se viu agarrado fortemente pela mula-guia, que a trancos e barrancos o segurava pelo cangote com os dentes, nadando furiosamente contra a corrente e salvando-lhe a vida. Depois de muito lutar contra a correnteza, a mula o puxou até a margem oposta, desabando exausta a vários quilômetros abaixo do ponto que caíram. Salim, sangrando copiosamente, estava vivo por um milagre. Olhou o seu animal caído às margens do rio, juntou força, arrastou-se com muita dificuldade até ela e após deitar-se ao seu lado, lhe deu um afetuoso abraço e tascou-lhe um beijo na boca, caindo, na sequência, desfalecido.
O Caixeiro-Viajante não soube quando tempo ficou desacordado. Recobrou a consciência quando já se encontrava medicado na casa de Dona Anja, a benzedeira da região. Custou a acreditar que dormiu por três dias e três noites, “incarreadas”. Ficou mais perplexo ainda quando viu que boa parte da sua mercadoria estava salva. Molhada, é verdade, porém, em perfeito estado de conservação. As pessoas pobres e simples da Santa Cruz do Santo Porto, além de salvarem a sua vida, resgataram também, o que o motivara a viver (até aquele momento)… suas mercadorias.
Naquele dia, o caixeiro-viajante, ao ter suas feridas curadas, ser alimentado na boca e sentir todo o calor humano das pessoas carentes, que, sequer, ele conhecia, sentiu na pele que tinha perdido 47 anos da sua vida. Tudo o que aprendera até aquele momento estava errado. A vida era muito mais que aquilo que vivera. No dia seguinte, levantou-se bem cedinho, jogou as suas mercadorias na cacunda e saiu de casebre em casebre distribuindo tudo o que possuía para a pobreza. A partir daquele dia, após ficar apenas com a roupa do próprio corpo, passou a andar sem destino pelo sertão, puxando a sua fiel mula, ajudando os “precisados”. E disseminando a palavra de Deus.
Construiu casas para os carentes de teto, ajudou os incapazes a plantarem e a colherem, e curou os doentes com medicamentos colhidos na própria terra. Passou a guiar os cegos e conduzir os “coxos”.
Foi então que o sertão passou a conhecer – e respeitar – o melhor ser humano que já existira neste torrão, Salim da Mula-Guia, o ajudador dos necessitados.
Ah, sim: Uma das primeiras providências que o novo Salim tomou foi… Aprender a nadar!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e poeta
Minguante de Inverno
Cândido Sales, Bahia. Quadra de Setembro de 2023.