Autor: Luiz Carlos Figueiredo
Se este bicho existir eu vou capturá-lo! Escreva aí: Cabo Natalino vai capturar e matar o Bicho de Pedra Azul! – Estamos no ano de 1980, Cândido Sales vivia os seus tempos de “glória” exportando para o sul do país milhares de achas de madeira nobre como aroeira, baraúna e jurema e enquanto nossa terra era dizimada pelo desmatamento inconsciente, enriquecendo alguns poucos e empobrecendo o meio ambiente, o famoso Bicho de Pedra Azul tocava terror nos quatro cantos da cidade. Vire e mexe botava um ou outro pinguço pra correr.
Na época, a nossa “força policial” era composta por apenas um ou dois “praças” – daqueles juramentados que cantavam o hino nacional e juravam a bandeira, o resto eram conceituados moradores que caíam na graça dos intendentes e eram cooptados para exercerem a função de guardas municipais. Quando esta curriola saíam às ruas com as suas fardas estalando de novas, andando desengonçados, levando os seus cassetetes à tiracolo, tudo virava uma imensa arrelia. Dava gosto ver Dodô, Geraldinho Flores (primo do nosso amigo Geraldo Mal Morrido), Derotides, Deó, Pelado, Deusdete e seu Pedro ao lado dos dois “praças juramentados”, marchando e batendo continência à torto e a direito para o comandante-em-chefe, no caso, João Delegado que na prática era apenas um relojoeiro de ofício, desenvolvendo precariamente nas horas vagas a função de delegado do município. Enquanto eles perseguiam a meninada que jogava futebol descontraidamente no meio da rodagem, o bicho fazia as paredes das casas Cândido-Salenses tremerem na base.
Reza a lenda que este bicho existiu na região de Pedra Azul (nos Gerais) nos confins no ano de 1799 da era cristã. Joaquim Antunes de Oliveira era um rico fazendeiro que campeava o seu rebanho com a ajuda de uma mula. Certo dia, a mulinha estava mais pra lá do que pra cá e o bruto do Joaquim insistiu em selar o pobre animal. Sua mãe, revoltada com a atitude, tirou a sela da bichinha e a prendeu no curral. Joaquim ficou furioso, pegou a sela, colocou na pobre velhinha e, após montá-la com requintes de crueldade foi açoitando a infeliz até o centro do comércio local. Pouco tempo depois, Joaquim morreria misteriosamente. Passou-se alguns meses e por conta de disputas políticas, os restos mortais foram removidos da sua fazenda para o cemitério local e o povo começou a perceber que alguma coisa estranha estava acontecendo, não só na tumba de Joaquim, mas em outros pontos da cidade. A nova sepultura rachou de forma estranha aparecendo uma renca de cabelos de animal entre as fendas. Por mais que a sepultura fosse consertada, as rachaduras voltavam a surgir e os cabelos continuavam saindo pra fora. Ao mesmo tempo, na fazenda Gameleira, local onde o fazendeiro morava, todos os porcos foram misteriosamente devorados, restando apenas as carcaças e, para piorar, muitos dos moradores da região deram fé de terem visto uma espécie de lobisomem vagando durante a lua cheia pelas redondezas. Logo se confirmou que Joaquim Antunes de Oliveira fugiu da tumba para tocar o terror pela região. Surgia sempre como um cão preto de um tamanho descomunal para em seguida se transformar em jumento, cavalo, mula, barrão e até em bacurau. Quando estava meio avexado, só de birra se transformava em homem, sempre trajando um pesado casacão, cuja diversão era chegar aos restaurantes e comer por dez pessoas, deixando um bilhete com a sua digital impressa para que a sua família efetuasse o pagamento.
O Cabo Natalino era todo metido a valentão, quando foi destacado para servir aqui em Candin e ficou sabendo das estripulias deste bicho, se sentiu na obrigação de se transformar no grande herói da cidade, assim, reuniu toda a população em um velho galpão e jurou sob a bíblia que se este bicho existisse, ele e o seu “bravo destacamento” o capturaria. Munido de cordas, revólveres, facões e baionetas, resolveu acabar de vez com o mito que aterrorizava toda a região.
Foi exatamente aí que Mundim Relento entupido até a tampa de “poca-ôi”, voltava para casa após ficar “vampirando” até altas horas, dançando com uma renca de “damas-da-noite” na Toca da Onça. O malandro andava cambaleante e satisfeito, seguido para a sua casa que ficava lá no Bairro Célio Alves. Enquanto caminhava admirando a lua cheia, se viu acuado por um lobo preto de todo tamanho, saindo sabe-se de onde. De nada adiantou puxar o seu inseparável punhal e jogar alguns golpes de capoeira de Angola, o bicho soltou um tenebroso esturro e após um magnífico salto, deu um sopapo magistral em Mundim jogando violentamente o infeliz contra um muro chapiscado. O malandro que estava pra lá de embriagado, diante do pavor, sarou imediatamente, sentindo-se em perigo largou o punhal, passou sebo nas canelas e foi perseguido pelo lobo furioso até a porta da sua casa quando em um pulo cinematográfico entrou todo cagado janela adentro, quase matando sua querida mãezinha do coração. Os gritos de desespero do pobre coitado acordou metade da população do bairro. Assustado, a primeira coisa que Mundim fez quando acordou no dia seguinte foi entrar de mala e cuia para a lei dos crentes, nunca mais voltou ao cabaré.
Dão Quiabento, era um afamado ladrão da cidade. Adorava entrar nas casas dos pobres pelo telhado. Roubava o que encontrava pela frente e saía arrotando em toda a cidade que era o gatuno mais temido deste torrão. Certa noite ao descer da casa de Margarida de Tenório trazendo em um saco todos os pratos e xícaras da pobre coitada, foi violentamente atacado por um jumento descomunal, todo preto e com os olhos da cor de brasa que lhe deu uma sova de patadas e mordidas tão grande que deixou o infeliz acamado por quase três meses. Dão nunca mais quis roubar na vida. Passou a pregar pelas esquinas que o crime não compensava de jeito maneira. Virou uma das referências morais da cidade.
Zé Bufão – que ainda vive nos dias de hoje – era um chapa pra lá de trabalhador. Na Cocebe (Atacado de propriedade de Tãozim onde trabalhei por 10 anos da minha vida) era o principal descarregador das cargas que chegavam diariamente, chegando a levar na cabeça com enorme facilidade, dois sacos de 60 kilos cada. O negão que trabalhava feito o diabo, quando recebia seu pagamento torrava todinho em canjebrina. Bêbado feito a peste descia cambaleando até a sua casa onde já entrava descendo os cacetes e quebrando todos os móveis que existiam na casa da sua pobre mãe. Quando tinha a sua crise de infezação, era necessário dois ou três homens fortes para amarrar o infeliz que assim que sarava da cachaça, se ajoelhava e pedia perdão em prantos para a sua pobre mãezinha pelo estrago. Certa feita, depois de um indescritível tumba onde quebrou até as telhas da casa – incluindo-se aí os potes, moringas e gamelas – Bufão, bêbado feito um gambá, corria sem camisa e completamente aluado pelas ruas de Candin em plena madrugada enluarada, quando levou uma bela de uma rasteira de um desconhecido trajando um capotão cor de carvão. Como não levava desaforo para casa, Zé Bufão fundou dentro do desconhecido. Após se enroscarem trocando sopapos por mais de uma hora de relógio, desceram rolando ladeira abaixo. Zé, apesar de forte feito um touro, levou uma surra tão lascada que no desespero levou a porta da sua casa nos peitos e passou o resto da noite chorando feito uma criança, rezando e segurando desesperadamente na barra da saia da sua pobre mãezinha, pedindo perdão por tudo que tinha feito e até pelo que viria a fazer.
– Me acode, mãe! É o bicho, é bicho, é o bicho… ele vai me comer, não deixa não! Eu paro de beber, juro! Nunca mais boto um gole de cachaça na boca! – A partir desta data Zé virou o melhor filho que a sua pobre mãe poderia ter. Passou a gastar o seu dinheiro em feiras enormes e nunca mais quis saber de canjebrina. Hoje, já velhinho, caminha tranquilamente pela cidade e quando indagado sobre o famoso bicho, dá uma risadinha sem graça e vai caindo fora.
– Eu lá quero meia com este bicho? – Diz já saindo à francesa.
Mas, voltando ao Cabo Natalino e seus comandados… ao receber uma denúncia que o bicho botara pra correr um casal que fazia um calamengau no meio de uma pilha de baraúna, a “Força-Tarefa” armada até os dentes cercaram o local, e, sob o comando do “praça”, foram estrategicamente distribuídos. Dodô para um lado, Deó para o outro, João Delegado junto com Deusdete, Seu Pedro protegendo o Cabo Natalino e Derotides e Geraldinho incumbidos de darem o alarme munidos de estridentes apitos e laços de couro reforçado. Apita aqui, sopra ali, cerca acolá… e nada do bicho aparecer. Enquanto os homens procuravam, a lua cheia, linda, riscava o céu deixando a noite com aspectos de dia. Eis que ao chegar ao descampado onde se construiria a praça da Lagoinha, avistaram um bitelo de um cachorro que de tão preto chegava ser azul, com os pelos reluzindo o clarão da lua, parecendo até um manto de seda. No desespero, Geraldinho e Derotides sopraram os apitos com todas as forças que possuíam. Ao ouvir, a “Força-Tarefa” desembestou em direção ao local de onde soaram os apitos. Ao chegarem, o Cabo Natalino e seus comandados depararam com aquele bicho enorme, se equilibrando nas duas pata traseiras e urrando ao tempo em que uma baba fétida e espessa escorria pelos seus dentes.
– Deus do céu, é ele, é ele, é ele… – Gritava Deó morrendo de medo. Mantendo a tranquilidade que só os matadores possuem, o famoso cabo deu as ordens: – Atenção homens… carregar… apontar… fogo! – Cada uma atirava com o que tinha ao alcance da mão… revólveres, pistolas, espingarda e afins… Sentaram o dedo, o chumbo pipocou e o bicho nem tchum! Atônitos os homens viram o bailado sensual do cachorrão agora com cara de gozador, tirando sarro das balas perdidas. – Ai, meu Deus! Vá “simbora” coisa ruim” – Falou seu Pedro puxando um rosário e mostrando um crucifixo. – Estamos com Deus e São Cipriano! Se afaste, se afaste… – De nada adiantou. Depois de uma gargalhada estrondosa o cachorrão virou uma enorme suçuarana preta e após dar um belo de um arroto abriu a boca cheia de dentes e cuspiu bem na cara do Cabo Natalino pedaços de um monte de cadáveres. Só de onda ameaçou engolir o cabo arrogante que paralisado de medo foi puxado por seu Pedro: – “Vamo” dá no pé gente, se a gente “infrentá” vai “morrê” todo mundo! – Nem precisou repetir. O que se ouviu em seguida foi uma gritaria lascada! Cada um correndo para um lado. O mais gordo era Deusdete que foi o primeiro a chegar à delegacia. Passaram a noite tremendo de medo, escondidos debaixo da beliche e no dia seguinte botaram uma pedra enorme sobre o sucedido. Nunca mais voltaram a tocar no nome do Bicho de Pedra Azul, proibindo qualquer um de perguntar sobre o caso.
Fim
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Ba. Quadras de Janeiro, 2013. Lua Cheia de Verão.