Alzira de João “Cangaia” foi uma moradora deste torrão que foi engravidada sabe Deus por quem e quando os pais descobriram, o bebê estava nascendo. Dizem que devido ao tempo em que a barriga da moça ficou amarrada (escondendo a gravidez) o bebê nasceu morto e todo deformado. Neste tempo, “Candin” era apenas um protótipo de cidade, duas ou três ruelas, a BR-116 rasgava ao meio as suas “entranhas” e uma renca de trabalhadores corriam atrás dos “Paus-de-arara”. A água que chegava aos potes e moringas das casas era conduzida em frotas de jumentos, trazida em latas de flandres diretamente do Rio Pardo. O comércio de portas abertas era formando por pequenos barracos que a população chamavam “tiosque” e o movimento era disputado no grito e no tapa. Estamos em 1960 (dois anos depois estaríamos emancipados) e o lugarejo fervilhava de aventureiros buscando oportunidades, quase todos oriundos do norte/nordeste.
Na época o velho cemitério da Rua Ruy Barbosa era recém-fundado e eis que na calada da noite de uma Sexta-Feira da Paixão, diante de um breu aterrador, surge uma alma viva saltando sorrateiramente o cercado que delimitava o Campo Santo. A dificuldade de movimentos e os passos diminutos denunciavam que o profanador era um idoso escondido atrás dos grossíssimos óculos de graus, usando um boné a lhe cobrir a careca e um velho saco de estopa na cacunda. O caboclo cumpria a devoção de naquela fatídica noite, trazer de uma cova rasa do cemitério, um osso de braço de um recém-nascido, prematuramente falecido e em um adiantado estado de putrefação. Era o osso do famoso bebê de Alzira de João “Cangaia” que nascera morto e, segundo as más línguas, com cara de bode, duas asinhas nas costas e dois chifrinhos pontudos na cabecinha deformada sendo enterrado às pressas e às escondidas para fugir da língua do povo. Até hoje ninguém se arrisca a dizer quem era o pai do feto deformado.
Andando sorrateiramente, o “profanador de túmulos” se agachou perante uma cova e após ler o nome escrito na cruz – utilizando pra isso uma lanterna – cavou ofegante a terra preta utilizando as próprias mãos. Após tocar na pequena urna funerária, o idoso quebrou a tampa com uma martelada certeira e arrancou violentamente o braço do bebê já em decomposição. Munido da parte que precisava, jogou terra em cima do que restara do corpo e caxingando, com imensa dificuldade voltou a saltar o cercado do cemitério, levando o bracinho de anjo como prêmio. Se alguém contemplasse aquela cena não teria dúvidas de que o “ladrão da pata do anjo” era ninguém mais, ninguém menos que o velho “Onofre Vendedor de Loteria”, o comerciante mais conhecido, mais próspero e mais sovina (e usurento) deste torrão. Onofre deu por estas bandas ao lado a sua esposa Luzia e dos três filhos pequenos em 1953. Era um moço baixinho, careca, fala mansa, óculos fundo de garrafa e andava com a calça meio-coronha amarrada no meio da barriga chocha e esquálida por um velho currião de sola. Tímido, andava lentamente arrastando a velha alpercata de couro cru – que ele não tirava nem para tomar banho. “Desapiou” por aqui com uma mão na frente e a outra atrás, dizendo ser oriundo das bandas das Alagoas. Gostou tanto deste torrão que foi logo (literalmente) armando o barraco. Após passar uma noite e um dia martelando tábuas que encontrara no monturo, construiu o seu primeiro “tiosque” e com isto (como quase todos os moradores) passou a ganhar a vida às margens BR-116. Apesar da aparente tranquilidade demonstrada, nas entrelinhas, o velho era mais astuto que raposa. Trabalhava de sol a sol vendendo tudo quanto há. Enquanto dona Luzia suava fazendo buchada, feijoada, sarapatel, tripas de porco, cuscuz, arroz doce e mingau no fogão à lenha, Onofre astuciava um jeito de passar a perna em Gaspar o seu concorrente direto. O homem tinha uma inveja lascada do comerciante.
Estes oponentes utilizavam tudo o que podia para passar a perna um no outro. Onofre era obcecado pela fiel freguesia do evangélico que vendia um mungunzá delicioso. Querido e conceituado no povoado, Gaspar era um líder nato. Na época o seu quiosque vendia tanto que deixava os concorrentes boquiabertos, buscavam a todo custo entender qual seria o seu segredo. O cheiro do seu mungunzá parava literalmente o trânsito. Nas primeiras horas da manhã, a brisa levava lentamente aquele cheiro inebriante e delicioso para as margens da BR-116, fazendo que uma renca de motoristas freasse bruscamente os seus veículos e embicasse em direção ao “tiosque”, degustando repetidas vezes a famosa iguaria feita de milho verde com leite de coco fresco. Os olhos usurentos do velho Onofre faltavam matá-lo de inveja… queria derrubar o concorrente a qualquer custo, aquela freguesia precisava ser dele. Após passar várias noites em claro, o astuto Onofre resolveu bater abaixo da linha de cintura do concorrente, na surdina contratou um bando de moleques de rua para cagarem na porta do concorrente no auge do movimento. Apesar do fedor que adentrava o recinto, os clientes nem tchum. Indiferentes, continuavam comendo… Algum tempo depois, Gaspar descobriu a história dos “cagões”, pagou o dobro para a molecada fazer o mesmo na porta do velho Onofre. Ao começar perder clientes, desesperado, o sovina se propôs a vender a sua alma para o Tinhoso para derrubar o concorrente…
Alas que em uma noite de chuva o avarento foi subitamente acordado por um bode preto com cara de bebê, de um tamanho descomunal dentro do seu quarto. O bicho fedia mais que a peste, tinha a cara toda carcomida, os dentes tudo podre, os chifres retorcidos, uma barba de meter medo e os olhos pareciam duas brasas. O diabo se equilibrava nas patas traseiras e batia com os cascos dianteiros nas paredes do barraco. Com o coração querendo sair pela boca, o velho Onofre ouviu da boca torta do bode preto uma voz tenebrosa: – Você quer mesmo ter os fregueses de Gaspar? Eu posso lhe dar! – Atônito, Onofre ainda tentou negar quando foi fulminado pelo olhar faiscante do bode preto! – Você quer ou não quer, seu infeliz? Me invocou aqui pra que? Está achando que isso aqui é brincadeira?
– Não, não… quero sim! O que você quer em troca? – Indagou o sovina gaguejando com um fio de voz! – Quero a sua alma. Vou lhe dar o que quer, porém, quando chegar a sua hora eu levo a sua alma comigo. Combinado? – Com os olhos esbugalhados o velho Onofre ouviu as orientações do bode preto: – Está enterrado neste cemitério um dos meus filhos. Nasceu das entranhas de Alzira de João Cangaia que o matou sufocado. É chegado o tempo da quaresma. Sexta-Feira da Paixão, depois do canto do bacurau vá sozinho ao cemitério, arranque o braço do meu bebê e utilize o osso para mexer o seu mingau. Você vai tomar tudo o que o crente possui. Não se esqueça que a sua alma agora é minha. Entendeu? – O medo era tanto que o máximo que o velho conseguiu foi acenar com a cabeça, concordando com o bode. – Assim foi e assim será! – Bradou o bicho fedorento furando o polegar do avarento e chupando uma gota de sangue, depois deu um pipoco e sumiu em meio à fumaça de enxofre. Atormentado, Onofre olhou para dona Luzia roncando, foi até a sala e constatou os seus filhos dormindo na esteira, todos pareciam bem. Voltou pra cama e passou a noite inteirinha em claro. Assim que chegou o fatídico dia, o velho coletou o osso do bebê da cara de bode e após ferventá-lo em um caldeirão, descartou a pele e com o osso branquinho passou a mexer o seu mingau.
Onofre não botou muita fé no que ouvira do bode barbudo, porém, em menos de uma semana, enquanto o mingau fervia e ele mexia com a pata de anjo,
o cheiro inebriava todo mundo. E assim, entre araras, nativos e até os concorrentes, o mingau não dava para quem queria. Diante do movimento o velho Onofre chegou a contratar às pressas umas duas ou três cozinheiras para ajudar a sua querida esposa. No início se fazia um caldeirão – grandão, daqueles vendidos por ciganos –, e sempre acabava logo, depois de duas ou três semanas, a coisa foi duplicado e logo depois teve que treplicar, tão grande era o seu consumo. Quanto mais se fazia, mas se vendia. Diante da concorrência desleal que o mingau da “Pata de Anjo” impunha aos demais comerciantes, alguns concorrentes (liderados pelo crente Gaspar) se reuniram e passaram a usar o mesmo artifício usado pelo velho Onofre, os moleques (não eram poucos os que corriam atrás de alguns trocados) foram contratados para saírem espalhando aos quatro ventos a história do bracinho afanado do cemitério. Falavam, falavam, falavam e o povo nem tchum! Quanto mais o “inacreditável sucedido” era relatado (parecia até uma praga) a freguesia de Onofre parecia quadruplicar. Depois de um tempo, o coitado do Gaspar, desolado e impotente, mudou-se de “mala e cuia” da cidade. Com a concorrência fora de combate, o velho Onofre em pouco tempo construiu o primeiro restaurante de alvenaria do município. Os atônitos moradores testemunhavam incrédulos um movimento surreal com centenas de clientes diários.
O tempo passou, o velho avarento se esqueceu completamente do pacto que tinha com o Demo e enquanto tudo corria às mil maravilhas ele não sabia onde colocar tanto dinheiro. Eis que em uma noite fria e chuvosa, quando as mesas se encontravam abarrotadas e com dezenas de carros (e até algumas marinetes) parados na porta, as garçonetes funcionando a todo vapor (neste tempo já tinha até garçonetes) … – Buchada pra mesa 7. – Dizia uma. – Frango assado para a mesa 2… – Dizia outra, enquanto Onofre se descabelava na máquina registradora, se esbaldando com o tilintar do dinheiro entrando. De repente, uma rajada fria de vento invade o ambiente e quando o velho levanta a cabeça adivinhe quem se encontrava parado na porta? Sim, ele. O Bode barbudo e mal cheiroso com a sua cara carcomida de bebê. Onofre entrou em pânico e só se viu um redemoinho adentrar o recinto virando mesa, fazendo voar os pratos, fregueses gritando, talheres caindo, a caixa registradora derramando dinheiro para tudo que era lado e aquele redemoinho rodando dentro do ambiente, destruindo tudo o que tinha pela frente. Prateleiras despedaçadas, móveis amassados, litros de bebidas jogados contra as paredes e uma gritaria danada, muita tensão, aquele desassossego todo dentro do restaurante… diante de todo este caos, parado na porta o bode preto barbudo parecia sorrir para o avarento. Venta aqui, quebra ali, tudo voando pelos ares e quem aparece furiosamente dentro do redemoinho, berrando feito um aluado? O bebê de Alzira de João “Cangaia”, dando o maior calundu, preso no funil do redemoinho de chuva, derrubando tudo o que achava pela frente com a sua carinha de bode, suas asinhas amarrotadas e seus chifrinhos pontudos na cabecinha deformada gritando com a sua voz de bode: – Devolva meu braço, Onofre avarento! “Miserável véi”! Chegou a hora de pagar o que deve, seu sovina desgraçado! – Era o feto deformado, ensandecido, sapateando dentro do redemoinho com um dos braços faltando. Quanto mais sapateava, mais forte o vento ficava. Eu não vi, mas me contaram que quem presenciou o fato ficou todo “arrupiado”. Foi uma lambança disgramada… Gente correndo, gritando, chorando, pulando das janelas, caindo no telhado e tome vento e tome chuva. O pior foi a explosão! O estouro foi tão violento que o fedor de enxofre ficou impregnado no ar por mais de duas horas. Quem estava dentro o hotel desembestaram porta afora, inclusive dona Luzia e suas crianças. Depois de uma crise terrível de tremedeira o prédio de alvenaria veio a baixo com tudo o que tinha dentro dele, inclusive, soterrando violentamente o velho avarento que se negou a sair. Foi uma tragédia!
O mais estranho foi que após dias de trabalho retirando os escombros, nenhum corpo foi encontrado. Até hoje não se sabe onde misteriosamente foi parar o corpo do velho Onofre, o velhinho dos óculos fundo-de-garrafa que fez um pacto com o Tinhoso.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Ba. Quadras de Março de 2024. Crescente de Verão.