O ARTISTA MAMBEMBE!
Artigos Opinião

O ARTISTA MAMBEMBE!

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

– Aquele tempo é que era bom!

Cresci com esta frase ressoando em meus tímpanos. Nunca consegui entender o porquê das pessoas sempre acharem que “os tempos idos” foram melhores que os atuais.  Pois é. Durante estes dois anos de covid-19 eu percebi que a pandemia foi um prato cheio para as Fake News, que se alimentando das Redes Sociais e da santa inocência da maioria do povo, encontrou um terreno fértil para consolidar as famosas teorias da conspiração. Diante das baboseiras surreais e rancorosas que imperam no meio, eu senti uma imensa saudade do passado. Sim.  A mentira e a fofoca existem desde que este mundo é mundo. Hoje, com o advento da globalização das Redes Sociais, ela encontrou uma maneira de se propagar na velocidade de uma pandemia. Longe estão os tempos em que a fofoca rolava de janela em janela. As “Marocas” se divertiam “atualizando as notícias” nas portas das suas casas e até quando quaravam as suas roupas nas fontes.

Até os meados dos 1970 as pessoas tinham mais tempo umas para as outras, havia um respeito maior, se cumprimentavam mais efusivamente, batiam papos longos, cada uma em sua janela e valorizavam mais a vida. Pequenas cidades como Nova Conquista carecia da chegada de um Circo ou outro, de um ou outro Parque de Diversão para as pessoas poderem externar mais fisicamente os seus desejos.  Além da diversão em si que estes “Centros de Diversões” traziam (inclusive luz elétrica, que a meninada sabia que existia por ter ouvido falar), os indivíduos podiam se socializar em grupos, inclusive, externando através dos “estúdios de locuções”, os seus desejos mais secretos, ao tempo em que podiam ouvir as músicas que eram exaustivamente tocadas nas ondas médias das rádios que atravessavam de ponta a ponta o território nacional, levando um pouco de alegria para quem moravam no interior do país.

Naquele tempo tudo era novidade. Quem aí se lembra do “Homem da Cruz”?… No início da década de 1960 um peregrino, barbudo e cabeludo – após dar uma bistunta -, saiu lá dos confins do nordeste carregando uma pesada cruz. Entrou na BR-116 arrastando esta cruz de madeira e veio dar aqui em Nova Conquista. Foi uma comoção! Pediu guarida, foi lavado, alimentado e bem tratado. Muita gente ofereceu até o que não tinha. Este homem fez questão de afirmar que ele não era Jesus reencarnado. Era apenas um pecador que queria passar pelas mazelas que Cristo havia passado, assim, rasgara o sertão nordestino, caminhando lentamente, descalço, com os pés sangrando, arrastando a pesada cruz. Tinha por objetivo chegar ao santuário de Nossa Senhora Aparecida em São Paulo. Claro que o cinema já tinha mostrado esta façanha no Filme “O Pagador de Promessas” adaptado de uma peça de Dias Gomes e dirigido por Anselmo Duarte. Ganhou a palma de ouro em Cannes há exatamente meio século.

No dia da partida do peregrino, me lembro de que metade da população de Cândido Sales o seguiu pela rodagem até a cabeceira da ponte, muitos chorando copiosamente. Dias depois chegou a noticia que um motorista enlouquecido passara por cima do pobre homem o atropelando com cruz e tudo. Até hoje não sabemos como surgiu esta história, se era mentira ou verdade, só sabemos que naquele tempo o fake News já existia.

Nesta época o que mais dava por estas bandas era o artista mambembe. Andarilho, solitário, carismático e de boa lábia (muitas vezes nem cheirava tão bem assim já que ficavam dias com a mesma roupa)… Eles chegavam sempre dizendo que estavam indo se apresentar nos programas de tevês como Bolinha, Chacrinha ou Silvio Santos. Estes caras se apresentavam de cidade em cidade, correndo o chapéu e seguindo o seu destino. Em 1971 tinha um andarilho que sempre dava as caras por aqui… Era um sujeito alto, magérrimo, maltrapilho, sujo, esquálido e tinha apenas três dentes na boca (dois deles cariados). Ao chegar pegava logo um velho megafone (logo depois de esparramar as suas coisas no meio da rua) e gritava em alto e bom som: – Quem vai querer ver um homem sem dentes descascar um legítimo coco da Bahia com a boca banguela? – Imagina aí a quantidade de pessoas que apareciam para ver? Era gente feito o diabo! Formava-se logo uma rodinha em torno do sujeito.

– Tá vendo este coco aqui? – Perguntava para todos e muitos confirmavam com um leve aceno de cabeça. – Pra se descascar este tipo de coco muita gente leva quase meia hora usado facas afiadas, peixeiras de esfolar peixes, facão de cortar cana e, inclusive, tem gente que utiliza até cutelo. Eu não. Eu descasco na boca banguela. Veja aqui os meus dentes. – Abria a bocarra e saía frente aos curiosos mostrando os dentes. – Pega aqui nos meus dentes! Está mole ou não está? – O curioso não se contentava só em tocar nos dentes cariados, sacudia violentamente o dente mole deixando ainda mais murcha a boca do infeliz.  – Pois é. Querem me ver descascar este coco da Bahia em apenas 30 segundos?  – Sim! – Gritava em uníssono os presentes, morrendo de curiosidade. Com a plateia dominada, era hora de vir a “ferroada”! – Pois bem, como vocês sabem, eu vivo disto. Qual dos filhos de Deus vai dar uma pequena colaboração para que eu possa chegar até o próximo destino? Estou indo me apresentar na Televisão Tupi no Rio de Janeiro e preciso do adjutório de quem puder contribuir. – Falava e já ia correndo o chapéu. Saía dinheiro a torto e a direito. Com a grana na mão, o cara pegava o coco e após dar uma ou duas lambidas no bicho com sua enorme e fétida língua, puxava a casca grotescamente com a boca banguela, deixando o fruto completamente descascado para em seguida arrotar a água na cara dos presentes. Quando este número perdia a força, ele mudava a apresentação e passava a colocar pregos enormes nos braços, pernas, nariz e ouvidos. Cada pregão deste tamanho. Empurrava no nariz, no ouvido e em tudo que eram buracos que entravam até o talo. O mais admirável era que não saía, sequer, uma gota de sangue do corpo do indivíduo.

Depois de um bom tempo, eis que retorna à nossa cidade, acompanhado de uma linda mulher, o famoso descascador de cocos. Malandramente, escolheu um dia de feira para estrear seu novo número. Logo, lá estava o “nosso herói” munido de seu inseparável megafone no meio da feira:

– Atenção, muita atenção! Logo mais às 10 horas da manhã, grande apresentação do homem que rodou todo o continente americano se apresentando no Chile, na Argentina, no Uruguai e nas principais capitais do Brasil. Ele que foi ovacionado no Programa Flávio Cavalcanti na TV Tupi no Rio de Janeiro estará aqui em Nova Conquista. Ele que suportará sobre o seu frágil corpo dois paralelepípedos, um sobre o outro e que serão quebrados à marretadas… E mais… Permitirá que 50 ciclistas passem sobre o seu corpo. Aqui mesmo, na Praça da Feira. Pegue a sua bicicleta e participe deste show de talento e força. – Assim que as pessoas foram se aglutinando em torno do “artista”, ele começou a fazer algumas mungangas, se ajoelhou, olhou para o céu, fez o sinal da cruz, se deitando em seguida sobre uma tábua cheia de chuliadeiras (parecendo até um Faquir) com todas as pontas viradas para as suas costas. – Este é só um aquecimento para o meu marido. Passe a mão sobre os pregos para ver se fura! – Pediu a linda e exuberante loira vestindo apenas um collant azul sensualíssimo ao tempo que quase uma dezena de curiosos apertava de todas as maneiras os pregos, alguns chegando, inclusive, a furar um ou outro dedo.

– Viram aí? Prego puro! Agora, busquem o homem mais forte da cidade para quebrar estas pedras na marreta! – Dois paralelepípedos foram colocados sobre o peito do homem. Em seguida a linda esposa pediu para que o homem quebrasse a pedra à marretadas.

– Cadê o fortão? Traga aí ele aí? – Trouxeram quase que a força um sujeito chamado “Pão” (sabe Deus porque tinha este apelido) que era um negão que tinha cada lapa de braço que metia até medo. Pão, na verdade, era um “remendador” de lonas. Tinha o hábito de carregar nas costas, sozinho, sem esforço, um encerado ou outro de caminhão. O cara quando dobrava o braço o seu muque arrebentava a manga da camisa.  Pós-autorização Pão desceu a marreta. O golpe atingiu a pedra espalhando cacos para tudo que foi lado e o homem nem tchum! Surpresa geral para quem assistia ao número. Levantou-se de um salto e ficou pulando e acenando para a plateia como aqueles lutadores quando entra no ringue! Todo mundo aplaudiu. – E agora, senhoras e senhores… Que as bicicletas fiquem em fila. Vamos começar o número! Que rufem os tambores! – Falou a esposa batendo uma tampa de caçarola na outra. Nem precisou pedir duas vezes e logo se juntaram mais de 50 ciclistas (e olha que se tinha uma coisa neste tempo em nossa cidade, era a tal da bicicleta) e após pedir a sua “doce senhora” para correr o chapéu arrecadando uma bela de uma grana, os ciclistas entraram na fila para passar sobre o corpo do homem. Metade da cidade estava ali… Geraldo do Cinema, Tãozinho, Jair Porto, Miranda, Conrado, Toinho da Primavera, Valdinho, Tita, Ninão e mais uma renca de conhecidos. O que se viu a seguir foi um festival de voos e aterrissagens com todo mundo passando várias vezes por cima do infeliz. Teve gente que passou quatro cinco vezes e o cara nem tchum! Parecia até estar dormindo.

Existia aqui na época um cara chamado Branco, todo metido a sebo. Pelo fato de ter               passado alguns meses em São Paulo, voltou todo arrogante. Trouxe da “Pauliceia” uma bicicleta “Olé 70” (novinha em folha) cheia de fitas coloridas enroladas no quadro e no guidão. Esta Bike se destacava por ter uma renca de buzinas com diferentes sonoridades combinando com a dezena de retrovisores – estrategicamente colocados – que reluzia até o que não era luz. Indignado por ver que um feioso como o “mambembe” tinha uma mulher linda daquelas, Branco não resolveu apelar? Pois foi. Encheu o bagageiro da sua bicicleta de pedras para ficar pra lá de pesada e passou umas cinco ou seis vezes sobre o homem. Após perceber que o artista ignorara solenemente a sua atitude, desconsiderou a rampa de madeira colocada sobre a barriga do “artista” e passou propositalmente sobre o seu peito! Ah, pra que? Quando o “mambembe” descobriu que aquilo foi intencional, se levantou de um pulo e moeu o “pleibói” na pancada! Começou dando um murro na cara de Branco que o fez cuspir uns dois ou três dentes. Incontrolável, jogou um paralelepípedo violentamente sobre a “magrela” que virou ferro retorcido. Ao ver o estado da sua bicicleta Branco partiu com tudo para cima do “artista” que se esquivou do ataque  e o faz cair em cima de um galão de óleo queimado. Ao ver o oponente desorientado este homem pegou um pedaço de pau e sapecou Branco de pancadas diante de todo mundo. Olha, nunca tinha visto uma surra daquelas. Apesar de cheia, ninguém da praça fez questão de apartar a briga que só parou quando o “pleibói” correu, saltando a primeira cerca que encontrou, rasgando a calça novinha em folha que tinha acabado de comprar, deixando pelo caminho o seu famoso tamanco de estimação. Foi à coisa mais feia do mundo. Apanhou e correu, ficando completamente desmoralizado na cidade!

Ninguém falou absolutamente nada quando o “mambembe” juntou as suas tralhas, jogou sobre as costas e acompanhado da sua esposa desceu lentamente a rodagem em direção à Vitória da Conquista. Depois deste dia nunca mais deu as caras por aqui. Branco virou piada na cidade, deixando de montar bicicleta pelo resto da sua vida. A partir deste dia, aprendeu uma lição: Jamais mexer com quem não conhece!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, Ba. Quadras de Maio de 2022 – Nova de Outono.