O APELIDO DEMOLIDOR.
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O APELIDO DEMOLIDOR.

Rapaz, o tal do apelido quando pega é de lascar… Zé Salomão foi um dos grandes boleiros deste torrão, jogava uma bola lascada, o problema de Zé quando pequenininho, foi ser batizado com um apelido que quando dito, tirava o pobre infeliz completamente do sério. Filho de seu Osmarino e dona Felícia, Zé, o mais velho dos dois irmãos foi levado quase que a força para São Paulo na década de 1970. A seca devastadora detonou os 9 estados nordestinos e seu Osmarino embarcou juntos aos retirantes que fugiam para um lugar melhor e foi desaguar lá na Pauliceia. Zé Salomão e seu irmão mais novo, Juventino (sete e seis anos respectivamente) embarcaram também nesta empreitada. Ao chegar ao famoso “roçadão”, seu Osmarino foi trabalhar na construção civil e dona Felicia foi aventurar um emprego em que pudesse ficar ao lado dos filhos. Depois de dias tentando, conseguiu um emprego de copeira na Chácara Flora onde os meninos podiam ficar brincando o dia todo em um parquinho particular. Aquilo era o emprego dos sonhos. A dona da chácara já estava até gostando dos garotos quando o traquino do Salomão – acostumado a fazer as suas necessidades fisiológicas de cócoras – depois de uma dor de barriga lascada e pra lá de ressecado, dispensou o vaso e resolveu dar uma bela de uma cagada na pia do banheiro. Assim que o fedorzão tomou conta do ambiente, o garoto entrou em pânico e com medo da dona da casa flagrar a “obra flutuante” em uma pia entupida, esfarelou o troço com as próprias mãos para que pudesse descer pelo buraco da pia. O “produto” desceu, mas o fedor ficou. Por mais que dona Felícia implorasse, foi sumariamente demitida, forçada a dar uma geral na casa e lavar as mãos de Zé Salomão com tudo que era produto de limpeza existentes na época.

O golpe foi tão pesado que dona Felicia retornou de mala e cuia – trazendo à tiracolo os dois filhos – pra “Candin”, deixando lá o seu amado esposo. A partir daí seu Osmarino ficou enviando mensalmente dinheiro pelo correio e a cada dois anos vinha de viação Vera Cruz visitar a família. Sempre que vinha, trazia uma renca de sacos de linhagens cheios até os beiços de brinquedos e roupas. Apesar de todo o esforço do pai se equilibrando diariamente nos andaimes paulistas para sustentar a família, dona Felicia entrava com a contrapartida de fazer tapioca para os meninos venderem para os araras…

Quando não estavam na escola, ou vendendo suas guloseimas, os irmãos estavam jogando bola nos becos estreitos do vilarejo. Isso fez que Zé Salomão virasse um cracaço. Dentro de campo o caboclo driblava feito o diabo, chutava com ambos os pés, tinha um petardo de esquerda e não gostava nem um pouco de perder um baba. O que tinha de habilidade, tinha de encrenqueiro.  Vira e mexe lá estava ele trocando sopapos com os amigos da bola. Quebrava a cara de um, os beiços do outro, enfiava os dedos no nariz do terceiro e muitas vezes chegava em casa com o olho roxo, joelhos ralados e todo remendado. Dona Felicia faltava endoidar enquanto o jovem Juventino, mesmo sendo mais novo, buscava proteger o irmão. Um certo dia, Salomão deu de brigar com o próprio irmão e quando acertou um bofetão na cara de Juventino, este perdeu completamente a cabeça e gritou alto e em bom som: – Canalha! Caga na pia! – Pra que? Zé Salomão endoidou: – O que, o que você falou? – Com o rosto ardendo Juventino reafirmou à vista de todo mundo: – Seu Caga na Pia! – Ao meter o dedo na ferida, Juventino testemunhou toda a ira do irmão mais velho. O caboclo ficou tão furioso que teve que ser seguro pela metade dos colegas de time. – Caga na pia, porquê? – Quiseram saber os amigos. Neste dia não houve maiores detalhes, porém, quando alguém queria tirar Zé Salomão do sério bastava falar a palavra mágica: – Caga na Pia! – O garoto virava nos seiscentos. Ficava tão furioso que espumava os cantos da boca. Assim, bastava ser provocado para perder completamente as estribeiras. Isto fez que as suas notas na escola (que eram boas) despencassem e o excesso de brigas fizesse que o aluno exemplar fosse expulso de quase todos os colégios. A partir desta data Zé Salomão virou Zé Caga-na-Pia, embora, ninguém tivesse coragem de falar abertamente.

Com 15 anos, Zé Salomão estava paquerando Sarita, filha de seu Lau, quando o enciumado do Agripino cismou de fofocar para a garota:

– Sarita, você é tão bonita e namorando um cara como este? Namore comigo que sou rico, vou herdar a venda de pai e a gente pode se casar, não entendo por que você fica arrastando as asas para os lados de Caga-na-Pia? Este cara não tem nem onde cair morto. Termine e fique comigo, vá! – Ao ficar sabendo, Zé Salomão ficou fulo e deu uma surra apoteótica no filho do dono da venda. Neste dia deu até delegacia, só não prenderam Zé Salomão porque dona Felicia comprou um vidro de mertiolate para curar as feridas de Agripino.

O tempo passou e mesmo diante de todas as adversidades, o garoto, agora com 22 anos se tornou o grande craque do vilarejo. Logo o nome de Zé Salomão rompeu fronteiras e quase todos os domingos o campo lotava para ver a apresentação magnifica do excelente jogador de futebol. Zé era ídolo, namorava as meninas mais luxuosas, comia e bebia o que bem entendia em qualquer bar ou restaurante (ninguém se atrevia a cobrar do nosso grande ídolo) e era venerado quando o time daqui saía para jogar em outras praças. Contra os times de fora, Zé Salomão só faltava fazer chover. Dava um show de bola, enlouquecendo completamente a torcida. Driblava, cruzava, dominava a bola no peito com maestria e enchia nossa cidade de orgulho. Salomão jogava tanta bola que ninguém mais se lembrava do seu apelido de infância.

Alas que à medida que a cidade foi crescendo, passou a crescer também o número de jogadores, assim, chegou na cidade um boleiro metido a especialista e já foi criando um novo time, escolhendo a dedo os maiores jogadores daqui. O primeiro a ser contactado para jogar no novo time foi Zé Salomão, que sabe Deus porquê, não foi muito com a fachada no fanfarrão. Assim, preferiu jogar no time mais humilde, despertando um ódio considerável no técnico chegante. Logo “Candin” passou a ter dois grandes times. O escrete escolhido a dedo pelo técnico conquistense e o time do bairro formado por Zé Salomão e seus pares. Os torcedores mais apaixonados especulavam diariamente qual time era melhor.

Um belo dia, eis os dois escretes emendando os bigodes. O time azul era o time da moda e para não passar vergonha diante do concorrente local, ainda se reforçava com vários boleiros de Vitória da Conquista. O time vermelho era o grande azarão, contava basicamente com os jogadores de um mesmo bairro e entre eles, Zé Salomão, o craque demolidor.

Neste dia o time azul – através do seu treinador – comprou um vistoso jogo de camisas, cercou o campo de terra batida com cordas e após colocar as redes novinhas em folha, apresentou para a torcida meia dúzia de bolas virgens deixando a galera alucinada.  O grande embate parou completamente a cidade, sendo o principal assunto das barbearias e dos salões de beleza. A rixa fez nego apostar até o fundo das calças. O o mecânico Curinga, por exemplo, reliento feito o cão e que torcia para o time azul, resolveu apostar seu velho fusquinha 66 contra a lambreta seminova do velho Aristides Coletor que lhe deu a vantagem do empate. Fofoca aqui, inventa ali, logo chegaram à conclusão que ninguém da cidade tinha condições psicológicas de apitar uma partida daquele naipe, assim, trouxeram decretadamente da cidade de Cachoeira do Pajeú um juiz diplomado para comandar a tão decantada peleja.

Domingo, três da tarde, o campinho lotado até os beiços e os times entram perfilados. O time azul com o seu uniforme brilhando de novo e o vermelho com o seu habitual jogo de camisa, faltando calções, meiões e até a numeração. Os jogadores cumprimentam os torcedores e o juiz mineiro autoriza o início da peleja. Jogo duro, truncado, marcação cerrada e o treinador conquistense (todo uniformizado, novidade por aqui) gritando para todo mundo ouvir: – Não deixa o 10 jogar não, meta o sarrafo! – Bastava Salomão dominar a bola e já vinha o adversário descendo a ripa. O craque apanhava tanto que ficava mais caído que em pé. Finalzinho do primeiro tempo e o time azul teve sua chance de marcar, o centroavante saiu na cara do goleiro e chutou por cima. O juiz apitou o final do primeiro tempo e a torcida aplicou-lhe uma vaia escandalosa. Nitidamente era um juiz comprado, sempre favorecendo ao time azul. Recomeça o segundo tempo e a torcida do time vermelho faz uma algazarra lascada e nada de Zé Salomão conseguir jogar. Dominava, driblava, tocava e a turma do azul, tome porrada!

Nesta altura dos acontecimentos, Curinga que levara o empate na aposta, já sonhava montado na lambreta novinha do velho coletor. Pulava, gritava, sorria e quando mais o tempo passava mais alegre ele ficava; – Terminou juiz, apita o fim desta joça! – Gritava Curinga do lado de fora. Aos 45 do segundo tempo, alguém lança uma bola para Zé Salomão no meio do campo. O volante deu um carrinho e passou lotado se estatelando fora do campo. A torcida foi a loucura. Com a bola dominada Zé Salomão ergueu cabeça e fez fila. Driblou metade do time em um velocidade lascada. Era ele driblando, a torcida gritando e Curinga acompanhando aos gritos: – Não, não deixa não, derruba ele, pega ele, derruba, derruba… – era Zé driblando e Curinga arrancando literalmente os cabelos… perto da área, Zé Salomão passou voando no meio dos dois zagueiros e quando o goleiro saiu atabalhoado ele deu um lençol e com imensa categoria dominou a bola no peito com o gol escancarado… Foi Curinga ver o lance e endoidar de vez, quando Zé Salomão armou pra empurrar a bola para o gol vazio o apostador se desesperou e berrou com todas as suas forças: – Caga na Pia! – Ao ouvir aquele apelido, Zé Salomão esqueceu da bola (que foi agarrada pelo goleiro), partiu correndo pra cima de Curinga, saltou as cordas e desceu a madeira. Bateu sem dó nem piedade. Foi mais da metade dos torcedores pra tirar o boleiro de cima do apostador que ficou mais quebrado que arroz maranhão. O juiz apitou o fim do jogo que terminou zero a zero e Curinga, envergonhado e todo quebrado, se recusou a receber o prêmio da aposta, admitindo ter interferido no resultado. No dia seguinte, logo cedinho, Zé Salomão partiu de mala e cuia para São Paulo indo trabalhar ao lado de seu Osmarino, quanto à Curinga, ficou mais de seis meses andando de muletas.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e Escritor

Cândido Sales, Bahia. Quadras de agosto de 2024.  Crescente de inverno.