O ANÃOZINHO CHICO MULAMBENTO.
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O ANÃOZINHO CHICO MULAMBENTO.

Uma escuridão medonha, um silêncio aterrador, um frio cortante acompanhado sempre de um assovio e uma rajada de vento e lá ia João de Celeste, um magrelo alto que ganhava honestamente o seu sustento desenvolvendo o ofício de chapa, carregando e descarregando os veículos que precisavam cruzar o Rio Pardo através da balsa de Nenzim Fuçura. Em 1955, ano da era cristã, o nível de água estava tão baixo que os veículos tinham que tirar as cargas para ficarem mais leve (a carga seria transportada posteriormente) para a balsa não encalhar. João ganhou muito dinheiro desenvolvendo este ofício. Juntou grana para fazer a sua casinha atrás da recém-inaugurada igreja católica. Nesta noite, lá ia ele cambaleante, após ter tomado uma renca de cerveja no boteco de Saracura. Apertado, defronte à igreja o moço resolveu dar uma aliviadinha tirando a água do joelho… bastou colocar a “mangueira” pra fora pra ouvir um relincho aterrador. Virou-se subitamente e viu com olhos que a terra haveria de comer uma mula de todo tamanho, brilhado em meio à escuridão, batendo os cascos dianteiros em um ritmo frenético… até aí tudo bem se no lugar da cabeça a bicha não tivesse um fogueirão de todo tamanho, espalhando labaredas para tudo que era lado. Morto de medo o infeliz mijou-se todo, e quando a visagem deu uma empinada cinematográfica, amolando os cascos (em um baticum miserável), partindo em sua direção, não teve quem o segurasse… Não deu tempo nem do infeliz botar os “documentos” pra dentro das calça, bastou sentir a pele “arrupiar” pra ele se esquecer completamente que estava chumbado e “pernas pra que te quero”. Desembestou morro acima com as “vergonhas” de fora e com a calça toda mijada. Foi uma gritaria lascada:

– Me acode, São “Bertolambeu”, “istô veno u’a visage”! – Desesperado saltou umas duas ou três cercas em uma ligeireza lascada, berrando igual barrão capado… O pavor foi tamanho que o infeliz, sequer, teve paciência para destrancar a porta, levou foi nos peitos. Dentro de casa, se escondeu atrás do fogão debaixo de um feixe de lenhas, rezando tudo quanto há.

Pois é, esta é uma das histórias contadas neste torrão. A falta de energia contribuiu enormemente para a criação destes mitos, potencializando a oralidade através dos moradores mais antigos. Durante a noite, neste tempo, tudo podia acontecer, mesmo as histórias inacreditáveis. Quando chegava a quaresma aí era que a coisa ficava medonha, o povo tinha tanto medo que ficava à beira de um ataque de nervos. Rezava a lenda que neste período havia a congregação dos bruxos, feiticeiras, visagens e livusias… aquele que fosse apanhado estava fadado a se queimar impiedosamente no fogo de inxofre do inferno. O medo deixava o povo escabreado.

A energia elétrica foi descoberta acidentalmente no ano de 1800 por um caboclo italiano chamado Alessandro Volta. Ele estava desenvolvendo as baterias conhecidas como “pilhas voltaicas” através de camadas empilhadas de zinco e cobre, intercaladas com papelão embebido em água salgada. Ao conectar por engano uma extremidade à outra através de um fio de cobre, o circuito foi fechado e o fio começou a brilhar gerando a primeira luz elétrica da nossa história. A contrapartida desta descoberta desencadeou a morte das trevas e consequentemente dos seus horríveis “habitantes”, tais como os mitos, visagens e assombrações. Após o advento da luz elétrica estas histórias desapareceram como por encanto, tanto que as novas gerações nunca temeram estas lendas.

Pois é, só que em 1955, o que mais existia no Porto de Santa Cruz eram estas livusias. O povo morria de medo até da própria sombra. Nesta época, apesar da Igreja do Bom Jesus ser localizada nas terras de Cândido Sales, o fluxo do movimento era concentrado do outro lado do Rio, pertencente à cidade de Encruzilhada. Assim, açougues, restaurantes, “casa de diversão” e botecos compunha a paisagem deste território. Neste tempo de trevas, a escuridão fazia que o temor imperasse em meio à população que acreditava piamente em tudo que lhe era contado. Vira e mexe, chegava o relato de algum sucedido, sempre tendo como protagonistas estas visagens. Na falta de energia, aproveitava-se a lua cheia para se contar “causos”. A diversão dos pequenos vilarejos se dava através dos circos itinerantes. Estas pequenas praças de espetáculos corriam o Brasil de ponta a ponta, se locomovendo através de pequenas caravanas. Antes da popularização dos veículos motorizados, estas caravanas chegavam puxadas por animais, tempos depois, caminhões e carretas passaram a cruzar o sertão vendendo diversão, arte e um ou outro xarope prometendo curas milagrosas. Foi em uma destas que “Chico Mulambento”, deu por estas bandas.

Chiquinho nascera no Maranhão e cansado de sofrer bullying em seu torrão, resolveu embarcar no Gran Circus Espanhol que por acaso desaguou em Axixá (sua cidade natal). Na época, população de cidade pequena quando via circo ou parque de diversão ficava pra lá de excitada, não foi diferente com Chiquim. Quando viu o palhaço Formigão se apresentando no picadeiro, ficou abilolado e ao ser convidado para participar do número, entrou de cabeça na empreitada. Rebatizado como Chico Mulambento, o anão maranhense fugiu naquela mesma noite na boleia de um dos caminhões do circo, passando assim a desenvolver o ofício de ajudante de palhaço. Depois de anos a bordo da caravana circense desbravando o Brasil, Chiquim começou a questionar se não era a hora de parar? Precisava arranjar urgentemente uma companheira, um pedacinho de terra para criar galinhas, plantar jerimum e aquietar o facho. O destino fez que Chiquim viesse dar por estas bandas. A passagem pelo povoado que duraria apenas uma noite, virou a sua morada definitiva. Tudo porque na noite do espetáculo, como sempre lá estava Chiquim servindo de saco de pancadas para Formigão, quando foi violentamente atirado no meio da arquibancada, caindo bem no colo de Maria Gorda que sabe Deus porquê, naquela noite deu de ir assistir ao espetáculo. Ao ficar com as ventas enganchadas dentro dos fartos seios da moça, rolou um clima e ao cruzarem os olhares, como que por magia, se apaixonaram na hora. Amor à primeira vista. Maria Gorda era filha de Agripino, um fazendeiro remediado e tinha uns 28 anos de idade já quase passando da idade de se casar. Claro que os seus 140 quilos atrapalhavam um pouquinho, só que ao ver aquele anãozinho com cara de bebê com as ventas no seu decote, Maria sentiu um inenarrável prazer, percebendo assim que um nascera para o outro. Beijaram-se ali mesmo à vista de todo mundo e na manhã do dia seguinte já se matrimoniavam tendo como testemunhas os colegas de circo, entre eles a mulher barbada, o homem de quatro metros e o engolidor de fogo. A caravana partiu triste deixando pra trás o grande artista Chico Mulambento. Na noite de núpcias o ápice da paixão se deu quando a donzela subiu sofregamente sobre o infeliz, e após meia hora gemendo e se descabelando, a moça deixou o pobre coitado pra lá de mochilado. Os primeiros raios solares do “after day” traziam toda a alegria do casal. Maria virara mulher (deixara pra trás a virgindade que tanto a incomodava) … e Chiquim, mesmo enjambrado, estava feliz porque entendia ser aquele o único jeito dele plantar seu jerimum e criar suas galinhas nas terras de Agripino – seu sogro. Assim, demonstravam publicamente o quão eram felizes desfilando de mãos dadas pelas ruelas do vilarejo ou quando Maria conduzia Chiquim escanchado na sua cintura. Apesar da diferença física, pareciam nascidos um para o outro, o que não os salvavam das más línguas. Depois de cinco anos de casados, para o desespero de Maria, Chiquim que sempre fora avesso ao álcool, passou a beber igual uma esponja, passando quase todas as suas noites no cabaré de Ana Calanga (onde se apresentava ao lado de uma renca de artistas). Certa noite, ao voltar “medicado” do fuá que tivera a participação do grande sanfoneiro Zé de Tonha, Chiquim sentiu a barriga roncar e resolveu dar uma cagada ali mesmo nos fundos da igreja. Lua cheia, noite linda, e lá estava o infeliz de cócoras, observando as estrelas. Ressecado, o baixinho fazia uma força lascada para se livrar do troço e quanto mais apertava, só vento saía.  Xingando tudo que era impropério, Chiquim suava que era um beleza! Força aqui, espreme ali e ao revirar os olhos deu com uma loura lindíssima acenando em sua direção, postada em frente à cruz da porta da igreja. Inicialmente ele achou que aquilo fosse uma visão, depois apurou as vistas e testemunhou a moça mais bela que ele já vira na vida. Linda de deixar o indivíduo troncho. Cabelos longos e sedosos, mini vestido negro revelando as lapas de coxas, decote extravagante revelando metade dos fartos seios, sapato alto e elegante e um sorriso que refletia o brilho lunar. Se isso tudo não bastasse, ainda andava rebolando com um derriére de cair o queixo, sempre acenando em sua direção. Apesar de estar debaixo de uma moita, Chiquim olhou para os lados pra ver se tinha mais alguém ali e ao constatar que estava sozinho deu uma bistunta e resolveu trocar uns dedos de prosa com a galega. Ficou tão empolgado que se esqueceu de limpar o fiofó. Vestiu apressadamente a sua calça e correu para cima da loiraça. Quando chegou perto a linda loura já foi lhe agarrando e tome beijo e lambidas. Quando Chiquim pensou que estava abafando, sentiu na pele uma gosma fedorenta e uma catinga desgraçada empesteou o ar… abriu os olhos e o mulheraço se transformara em uma caveira horrenda, fedendo mais que carniça. – Valei-me São “Bertolambeu”, que diabo é isso? – Só conseguiu tampar as ventas… Quis correr, quem diz que conseguiu? Fechou os olhos imaginando ser a cachaça, quando abriu, a cadáver estava ainda mais feia, lhe olhando com a boca torta e gosmenta, a língua derreada para um lado, os olhos em brasa butucados pra fora, as orelhas grandes igual de cachorro, sangue misturado à baba fétida escorrendo queixo abaixo, e os braços e pernas desta finurinha, só o couro e osso.

– Pelo amor de Deus, dona caveira, faça mal comigo não que sou casado… Maria Gorda está me esperando em casa, eu lhe imploro, em nome de São “Bertolambeu” me deixa viver! – Chiquim tremia mais que vara fina em ventania. A caveira bailava grotescamente tentando cantar uma canção e saía só um ronco ininteligível. Quase infartando, o pobre do anão se sentiu garguelado pelos dedos cadavéricos, enquanto sapateava ao vento via a noite enluarada tornar-se cinzenta, nublada, feia e com um redemoinho girando em torno da visagem …

– Ái, São “Bertolambeu”. Dessa vez eu não escapo! – Nesta altura o troço que tinha dado a testa pra sair, desceu escorregando, trazendo uma porção de bosta mole, deixando o coitado do anão todo melecado. Ao contar esta história, Chiquim garante que a infeliz era mais feia que a dor de parir, embora, fosse vaidosa, já que estava toda lambuzada de ruge e carmim, com os beiços borrados de batom, os “zoiões” pintados de preto e sorrindo com os dentes cariados. O pior era que dançava com um bode preto em decomposição na cacunda.

– Valei-me meu pai, esta defunta quer comer meu “figo!  – Quase estourando de medo, o anão viu a defunta se decompor igual ao bode que levava, virando lama e pus, fedendo mais que filhote de gambá. Buscando força sabe Deus onde, o infeliz embicou ladeira abaixo chamando por todos os santos, ao chegar na porta da casa se esqueceu que era apenas um anão e voou espetacularmente entrando janela adentro, aterrissando de cara no meio das coxas nuas de Maria Gorda: – Me acode, mulher, a caveira quer me comer! Não deixa ela entrar não, eu imploro!  – Maria ainda olhou pela janela e não viu absolutamente nada. Achou foi bom darem um susto em seu marido. A partir daquela noite, nunca mais Chiquim botou a cabeça pra fora de casa. Teve que comprar uma dúzia de pinicos esmaltados na mão de Josué Mascate, só pra não ter que ir pro quintal à noite.

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Agosto de 2024. Minguante de Inverno.