O AMANTE AMADOR
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O AMANTE AMADOR

Nos meados dos anos 1958, o antigo povoado de Nova Conquista já contava com um respeitável comércio. Cidades vizinhas como Encruzilhada e Pedra Azul (antiga Fortaleza) já começavam a perder clientes que optavam por fazerem as suas compras no recém-fundado povoado. As pessoas mais ricas ainda eram os fazendeiros – principalmente do município de Encruzilhada – só que aqui já tínhamos alguns prósperos comerciantes. Um dos maiores comércios existentes no povoado era o de Arcanjo Caiçara. Este moço – ao contrário da grande maioria dos antigos comerciantes de Nova Conquista – viera dar por aqui vindo da antiga Vila dos Montes Claros nas Minas Gerais. Seu comércio na área dos secos e molhados (calçado nas mantas de carne do sertão) era um dos mais movimentados do município. Habilidoso, simpático e carismático, Caiçara, apesar de bem casado e dos oito filhos, ficou famoso mesmo por gostar de uma destilada, fumar um bom charuto e se divertir nas bodegas da vida. Sua outra grande paixão era o sexo oposto, apesar da idade, o caboclo gostava mais de mulher que baiano de farinha.

O famoso comerciante era casado com dona Maricota, uma linda e gentil senhora mineira e era muito comum vermos toda a família reunida na igreja católica nas manhãs de domingo. Após a celebração da missa pelo Padre Pedro, dona Maricota abria as portas da sua casa e servia um almoço dominical para os convidados do marido, entre os quais, autoridades, fazendeiros, um ou outro comerciante e o padre que se fartava com as guloseimas preparadas especialmente pra ele. Nas noites de quarta e sábado, Caiçara se divertia envolto nas tenras e roliças coxas de Dos Reis, uma das “damas” mais lindas do Pela-Porco – o baixo meretrício localizado bem no centro da cidade (Hoje Praça Moisés Félix dos Santos).

Dos Reis era uma paraense jeitosa, rechonchudinha, longos cabelos negros, troncudinha, baixinha, trabalhada nos traços indígenas e tinha uma educação refinada. Caiu na vida após flagrar no dia do seu matrimônio, Amaro, o seu noivo paraense lambendo os beiços de Fabão, padrinho do casamento. Desolada, fugiu na mesma hora, ainda vestida de noiva. Veio parar no Pela-Porco. Apesar de ganhar a vida na profissão mais antiga do mundo, a moça era extremamente reservada, tanto que durante a semana guardava dois dias exclusivos para o comerciante. Nestas noites a nortista usava sua roupa mais sensual, tomava um banho de ervas, empapuçava-se de água de cheiro, botava uma calçola vermelha de seda – geralmente presentes dados com zelo por Caiçara – e desfilava pelo salão como uma dama.

Sabendo o gosto do seu fiel cliente, Dos Reis usava seus atributos sexuais para distribuir indescritíveis prazeres carnais ao fogoso amante. Nestes dias, pontualmente, às 8 da noite lá estava Arcanjo, após um discreto cumprimento aos presentes, era conduzido sutilmente até a alcova onde se entregava de corpo e alma (obviamente, mais corpo do que alma). O coito durava até às 11 da noite, quando munido da sua capa, do seu chapéu e do seu indefectível guarda-chuva, ele se despedia da dama-da-noite e seguia tranquilamente para sua casa onde encontrava em Dona Maricota uma discreta e submissa esposa.

Dos Reis era a amante perfeita, atendia ao comerciante perguntando por Dona Maricota e pelos filhos, tendo o cuidado de nominá-los adequadamente. De grão em grão a linda garota já começava a montar o seu “pezinho de meia”, e, nas entrelinhas, sonhava com o dia em que pudesse vir morar em alguma cidade vizinha, cuidando carinhosamente (pelo menos de vez em quando) do seu querido amante. Não que ele precisasse se separar definitivamente da família que, no íntimo, ela tinha grande estima e consideração.

Um belo dia, “um raio” caiu sobre a família Caiçara. Uma consulta de um famoso médico mineiro diagnosticou um câncer de próstata em estágio terminal no pobre infeliz. A notícia caiu feito uma bomba sobre a cabeça da pobre Dos Reis que de uma hora para outra se viu desamparada e testemunhou todos os seus sonhos ruírem. Por longos três anos, Arcanjo agonizou em seu leito, embora, fosse sempre muito bem cuidado com dedicação e zelo por sua querida Maricota. Neste período todos testemunharam o próspero comércio da família cair em desgraça. Enquanto o pai de família definhava a olhos vistos, no outro extremo, morrendo de saudades, Dos Reis se contentava em ler algumas mal traçadas linhas enviadas pelo amado através dos amigos que o visitavam. Sentiu que o seu planejamento fluía entre os seus dedos e apesar de saber que não mais realizaria o sonho de deixar a vida mundana, lhe doía muito mais saber que não mais veria o único cliente que de fato se importara com ela. Pensando assim, a jovem amante entrava em desespero e chorava copiosamente durante as suas tristes e intermináveis madrugadas.

Arcanjo Caiçara ao pressentir a inoportuna presença da “velha da foice”, resolveu falar individualmente com cada um dos filhos. Mulherengo de carteirinha, o moribundo contou toda a verdade pedindo perdão, a esposa foi a derradeira.

– Agora, Zeca… – Balbuciava com a voz fraca e rouca. – …peça para a sua mãe vir. – Zeca era o filho mais velho do casal, tinha 14 anos. Cabisbaixo, o jovem dirigiu-se até a sua mãe e entre lágrimas sussurrou-lhe no ouvido que à hora havia chegado, seu querido pai precisava se despedir. Mulher de tradição, Dona Maricota conteve as lágrimas e seguiu firme para o leito de morte seguida dos olhares curiosos das “aves de rapinas” ali reunidas, se alimentando do sofrimento alheio. Determinada, a pobre esposa abriu lentamente a porta, entrou no quarto e contemplou o marido (só o couro e o osso) agonizando entre a vida e a morte. Em um esforço hercúleo, Arcanjo gesticulou para que ela se aproximasse e ao vê-la tão perto, deu-lhe um abraço generoso. Nesta hora, Dona Maricota debulhou-se em lágrimas, cujos soluços se fizeram ouvir no grande salão onde as pessoas esperavam o trágico desfecho.

Fazendo um grande esforço, Arcanjo falou baixinho no ouvido da esposa:

– Querida Maricota, como você sabe que eu não fui um bom marido… Perdoe-me! Perdoe-me com todas as suas forças. Não fui merecedor deste carinho, desta atenção e deste cuidado que vocês me dispensaram.

– Oh, Meu querido marido e eterno amor! Não importa o que tenha feito, tens o meu perdão, segura na mão de Deus e vai… – Falou com um fio de voz!

– Eu sou um bicho ingrato e infiel, querida esposa! Eu lhe traí muito… Você não merecia o que eu lhe fiz… – dizia com um fio de voz – Me perdoe… Não posso entrar no reino do céu se eu não lhe contar tudo o que lhe fiz e necessito do seu perdão…

– Pode partir, meu amor! – Falou uma controlada Dona Maricota – O povoado inteiro sabe que você era amasiado com a puta Dos Reis… Eu até gosto dela, nunca liguei pra isto não, pode ir em paz… Deus lhe dará um bom lugar! – Falou Dona contendo as lágrimas!

– Ah se fosse só isto, querida esposa, teve muito mais! – Balbuciou entre uma tosse ou outra, o moribundo. – No seu último aniversário eu faltei com respeito por você, tracei Heleninha na nossa cama! Você quase nos pegou…

– Heleninha de Alcides? Mas ela é minha melhor amiga, como pode fazer isto? Não acredito! Na minha cama, Arcanjo? – Surpreendeu-se Dona Maricota já saíndo do prumo.  – No dia do meu aniversário? Como foi capaz de fazer uma coisa destas? – Falou alterada, ficando vermelha e trêmula de raiva!

– Eu fui um fraco… Desde que nos casamos que ela sempre deu em cima… Não resisti… – Gaguejava um Arcanjo debilitado e suado – Enquanto você cortava o bolo e cantava os parabéns com as crianças, ela tirou a calcinha, se esfregou na minha cara e eu não aguentei…

– Não quero ouvir! Poupe-me destes detalhes sórdidos! – pediu uma agoniada Maricota: – Cala a boca!… É perdão o que você quer? Tá perdoado… Vá, morra logo, acabe logo com esta agonia, está esperando o que? Já compramos o caixão, a mortalha está engomada… Eu não estou nem aí pra você, morre logo! – Gritou a esposa se fazendo ouvir no salão onde todos se reuniam.

Em um último esforço, o moribundo se agarrou à esposa e balbuciou… – E tem mais querida… No natal eu lhe traí com sua prima Irene, transamos fogosamente dentro da banheira… e no ano novo eu peguei comadre Filomena à força e desci a vara… – E quase gritando o moribundo falou:  – Eu não presto, eu sou um escroto! Me deixa queimar no fogo de inxofre, por favor, deixa eu pagar por meu pecados… Não me perdoa que eu não mereço!!!

Diante da declaração inusitada, Dona Maricota foi ficando vermelha, um ódio incontrolável foi lhe tomando lentamente, o corpo foi enrijecendo, a boca entortando, os olhos saltando das pálpebras, as mãos tomando vida própria e… lentamente a sua raiva incontida veio à tona, turbinada por uma incontrolável vontade de matar, de garguelar, de esganar, de torcer, de mutilar, de trucidar… E quando percebeu lá estava ela montada em cima do infeliz apertando violentamente o seu pescoço…

– Morra miserável, safado! Puto traidor! Imoral! Morra chibungo! Fila da puta! – O barulho foi tanto que foi necessária a intervenção imediata dos filhos e de uma boa parte dos amigos para contê-la. O escândalo atraiu metade da população. Foram mais de cinco minutos para fazê-la soltar o marido, que, quando solto, deu um tenebroso gemido, virou-se de lado e morreu com um enigmático sorriso no rosto!

– O moleque safado morreu! O traidor descarado morreu! Toma seu fila da puta! Este descarado vai queimar eternamente no fogo de enxofre! Vai parar bem no centro do inferno pra aprender a respeitar sua família, vagabundo, cachorro! – Gritava Dona Maricota tremendo de raiva, contida pelos filhos.

O mais incrível da história foi que, apesar de centenas de pessoas terem testemunhado a cena, ninguém foi capaz de atribuir a ela a morte do marido.

Enterrado às pressas (em um funeral que teve pouquíssima gente), Arcanjo teve uma única lágrima derramada sobre o seu túmulo, a da sua querida amante Dos Reis que em um gesto inusitado, depositou algumas flores silvestres na sua cova rasa e saiu discretamente do cemitério.

Menos de um mês depois, Dona Maricota que havia voltado com toda a sua família para Montes Claros se casou novamente, deixando para Dos Reis uma linda história para ser contada em detalhes, para os seus futuros clientes.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Quadra de Agosto de 2024. Minguante de Inverno.