NO TEMPO DA CHARQUEADA
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NO TEMPO DA CHARQUEADA

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Em 2014, logo após a publicação do livro AS EXTRAORDINÁRIAS HISTÓRIAS DO PORTO DA SANTA CRUZ, eu abracei um projeto que objetivava contar as histórias do município a partir do relato dos seus “antigos” moradores. Quem mais contribuiu para que eu escrevesse este livro (AS HISTÓRIAS QUE ‘CANDIN’ SE ESQUECEU DE CONTAR) foi o amigo JOSÉ ALVES TIGRE – conhecido pela alcunha de ZÉ DO SINDICATO.

Zé já fez um monte de coisas aqui em Cândido Sales, veio ainda menino dos Gerais diretamente para o Boqueirão Grande onde a sua família – extremamente religiosa – criou uma capelinha em homenagem à São José onde se diziam as missas, faziam-se sacramentos, matrimônios e uma vez por ano, criava-se um Terno de Reis para louvar o padroeiro. Zé era o violeiro deste grupo. Relatou durante a entrevista, histórias deliciosas como a do “escuro de 1947”, do pacto que fez com uma renca de “defuntos” para desenterrar potes de ouro e prata (deixados pelos mortos) e de como ajudou a construir a Igreja Católica Matriz, fundando simultaneamente o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cândido Sales. Estas histórias estão todas registradas no referido livro com riquezas de detalhes.

Em 1966, após uma calorosa pregação do Padre Pedro Callegari, Zé começou a filiar os lavradores neste sindicato.  O padre sabia que esta era a única forma do trabalhador rural sobreviver à velhice que era quando mais careceria de um amparo.  Nesta mesma época (1967) rezava a lenda que existia do munícipio de Itaobim, no Vale do Jequitinhonha a 140 quilômetros da cidade de Cândido Sales, uma Charqueada, produzindo e exportando para “os estrangeiros” a famosa carne do sertão (exclusividade do nordeste e do Rio Grande do Sul). Esta charqueada que existiria no município mineiro tinha o agravante de abater cavalos, éguas, mulas, burros e até jumentos em substituição à carne de gado. Quando os céticos topavam diariamente com um ou outro caminhão boiadeiro capturando e conduzindo dezenas de jegues esparramados pelas margens da Rio-Bahia, saiam aloprados, espalhando a notícia por todo o povoado. Nos dias de feira, esta era a carne mais comercializada por aqui. Chegava em enormes mantas prensadas em meio a uma inenarrável infinidade de gordura. Muita gente comprava e saía alardeando que assim que botava a bicha no fogo, ela espumava mais que a cachaça vendida pelo velho Servininho do boteco! O povo já estava até se acostumado a consumir a “carne de jumento” quando surgiu a conversa que devido à escassez dos jegues na região, a carne de jabá de Itaobim estava sendo substituída pela a carne de uma renca de velhinhos da redondeza que eram capturados e conduzidos pelos caminhões boiadeiros até a charqueada. Sabe Deus como conseguiram ligar uma coisa à outra, espalhando por toda a cidade que quem se filiasse ao Sindicato estaria propenso a virar carne de jabá. Tá pensando que Fake-News é coisa de hoje? Quando esta notícia caiu nos ouvidos dos “véi”, foi um desespero lascado, uma correria danada, uma gritaria tão medonha que nem o padre deu jeito. Teve velho que ficou semanas escondidos debaixo da cama, morrendo de medo de virar carne do sertão.

– “Num” é “mintira” não, “Filisberto”.  João Espinhela Caída que não é “home” de mentira, disse pra quem quisesse ouvir que viu com os “zóios” que a terra haverá de comer uma renca de “véi” presos dentro do carro de boi. A maioria com um monte de remela na cara, tinha uns “inté” cum gogo! Levaram todo mundo pra Itaobim!

– “Cê” tá doido, “home”? Eu lá quero virar carne do sertão? – Indagava Felisberto. – Bem que eu percebi que a carne q’ueu comprei “onti” tava toda “vermêa” e amarga. Agora que estou percebendo que aquilo tinha gosto de carne de “véi”! Estão matando os “veios” e vendendo a carne como jabá! O gosto é “horrive”! – Sustentava um outro.

– Oia, dizem que quem está de conluio com a charqueada é este tá de Sindicato que agora tão fundando aqui. Basta o caboclo se “inscrevê pra mode” o governo dá fé “adonde o miseráve do véi” mora e vai na calada da noite “pegá” ele e a “famía” todinha. O governo vai “querê véi” vivo pra que? – Questionava outro com uma inenarrável certeza.  Logo começara a acusar Zé do Sindicato de ser um “agente do Governo” a serviço da igreja, que tinha a missão de capturar e conduzir à força tudo que eram velhos para a charqueada de Itaobim.

Neste tempo o povoado do Porto de Santa Cruz que ficava à menos de duas léguas de Nova Conquista era onde existia o grande comércio da região.  Lá tinha um casal de idosos que entre outras coisas eram extremamente habilidosos. Bartolomeu e Dona Antônia já batiam na casa dos setenta e mais alguns e nunca tiveram filhos. Assim que estas notícias começaram a se espalhar, Dona Antônia começou a ficar bastante preocupada. Enquanto ela tocava com uma invejável competência o armazém da família, seu Bartolomeu (quase um ancião) torrava dinheiro se divertindo nas farras do bordel existente no Porto. Isso quando não vinha no lombo de um animal até o cabaré da Curva da Morte que ficava aqui em Nova Conquista. O velho era tão assanhado para o lado de mulheres novas que botou por conta uma recém-chegada goianiense chamada Florilda que tinha menos da metade da idade dele. Depois de perder a virgindade com um rapazola no interior de Goiás, Florilda foi jogada no olho da rua pelo seu querido genitor, que depois de uma incontrolável crise de “infezação”, pegou os seus (como ela mesma dizia) panos de bunda, colocou em uma velha mala de sola e jogou bem no meio do riacho que cortava a sua cidade. Sem parentes ou aderentes e sem nenhuma perspectiva de vida, a linda e curvilínea morena, “raçada” à índia Pataxó pegou uma carona e não por acaso apeou por estas bandas.

No dia que o velho Bartolomeu butucou os “zóios” na linda goiana se apaixonou na hora. Pagou uma fortuna para botá-la por conta, alugando e mobiliando uma alcova somente para que todas as noites pudesse despreocupadamente rolar nos lençóis de cambraia da cama da jovem. A idade não foi empecilho para o ímpeto sexual do velho que usava todos os artifícios possíveis para apagar o incontrolável “fogo” da morena. Para isso fundava a cara nas garrafadas de catuaba e tiborna, misturadas à caracu e ovos crus.

Enquanto o velho comerciante ficava perdidamente apaixonado, se divertindo todas as noites entre as voluptuosas coxas da morena, Dona Antônia tocava com mão de ferro o armazém do casal, triplicando o patrimônio da família. A velha trabalhava tanto que nem queria saber o que o marido fazia todas as noites na rua. Chegava tão cansada que muitas vezes dormia sem se lavar, ali mesmo no sofá, sem se interessar pelo amor do marido.

Um belo dia, eis que Florilda já com um pé-de-meia arrumado às custas da paixão do velho Bartolomeu, resolveu que voltaria de mala e cuia para a sua terra natal. Diante do choro insistente e das propostas pra lá de indecentes feitas pelo comerciante, a jovem resolveu fugir com ele. O velho (que guardava as suas economias enterradas no quintal de casa longe do olhar da esposa) fugiu com a amante apenas com a roupa do corpo e a fortuna que desenterrara na calada da noite. No dia seguinte, por mais que aparecesse testemunhas afirmando que o marido a deixara, dona Antônia negava-se veementemente a acreditar na história, afirmando com toda convicção pela cidade que o seu Bartolomeu tinha sido capturado, levado para a charqueada de Itaobim e transformado em carne de jabá. Em pouco tempo virou uma louca de pedra, inclusive, mandando lacrar com tijolos todas as portas do armazém (cheio até os beiços de mercadoria) diante dos olhos estupefatos do povo. A partir daí ela toda suja e maltrapilha, gritava pelas apertadas ruas do povoado:

– Ah, meu Deus! Fizeram jabá do meu marido! Meu esposo virou carne do sertão! – Durante os seis meses que dona Antônia vagou sem rumo pelo povoado só não morreu de fome e de frio porque contou com o adjutório da comunidade que lhe davam roupas e comidas. De uma hora para outra o armazém lacrado virou até casa mal-assombrada, despertando a imaginação da população que sustentava existir dentro do prédio um monte de livusias. O que mais cortava o coração era ver em dia de feira a pobre da esposa chorar copiosamente agarrada a uma manta de charque.

– Ôh, meu querido Bartolomeu, o que “fizero com ucê”, meu marido? Olha só o que “suncê” virou? Ó meu Deus, virou uma manta de jabá! Oh meu Pai! – Muitas vezes era necessário o adjutório de umas duas ou três pessoas para forçá-la a largar a manta de carne! – Deixa eu “ficá, cum” ele, deixa!

Depois de quase um ano de sofrimento, eis que para a surpresa de todos, não retorna pra lá de cabisbaixo ao povoado, o famoso comerciante Bartolomeu? Sim. Voltou sem um tostão no bolso e completamente falido. A morena tomara-lhe todo o dinheiro que ele possuía e o deixou entregue às baratas. Temendo a língua do povo, em menos de uma semana, o velho se desfez de todo o seu patrimônio à preço de banana e foi-se embora na calada da noite levando a tiracolo – a agora demente – dona Antônia, que, sequer, o reconhecera nesta volta.

Nunca mais a população teve notícias do famoso casal.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta CSales, Ba. Quadras de Maio de 2022. Crescente de Outono frio.