O Porto de Santa Cruz do Século XIX era um tédio só. Os dias eram sem graça, as horas custavam a passar, tudo parecia distante e inatingível, salvo quando aconteciam as festas religiosas ou quando chegavam os tropeiros trazendo novidades para o vilarejo. Quando isso acontecia, bastava uma piscada para lá estarem eles roubando literalmente o coração de uma ou outra donzela (fugia na calada da noite levando a jovem à tiracolo). De maneira geral o marasmo era quebrado com o barulho ensurdecedor dos cães se acasalando, adolescentes brincando de “tonga ou pega ladrão”, jovens com a sexualidade à flor da pele entretidas com o “caindo no poço”, enquanto outras pulavam amarelinha ou jogavam “vó” nas calçadas altíssimas das residências, entrelaçando suas “maias” com às pedras polidas da beira do rio…
Os rapazes do povoado naquele tempo (além de se aliviarem com uma ou outra jeguinha), se contentavam em azarar as donzelas enquanto eram solenemente ignorados. Só passavam a ser respeitado pelas garotas se passassem pelo exaustivo derramamento de suor nas construções civis da Paulicéia Desvairada. Quando o caboclinho voltava (pra lá de empetecado), até o jeito de falar era diferente. Muitos portuenses já tinham feito esta via crucis, alguns se matrimoniaram e ficavam definitivamente na capital bandeirantes, outros voltaram para o que era (ave Elomar!), para o pó do chão.
Mané Galinha, crescera neste torrão. Desde muito cedo adotou uma galinha como bichinho de estimação e aonde ia, a bicha o seguia por todo o povoado. Com treze anos de idade virou um negão de dois metros de altura, com os braços desta grossura. Logo cedo partiu para o “roçadão” e após um ano e alguns meses voltou ainda mais forte e com a mesma timidez, o que fazia que ao contrário da maioria, continuava sendo solenemente ignorado pela mulherada. Além de trabalhar feito o diabo na extração de madeiras no espinhoso mato cipó das redondezas e obter uma pagamento semanal digno de inveja, Mané evitava bebidas alcóolicas e tinha como único hobby, às apoteóticas partidas de futebol disputadas pelo time do Porto. Mané Galinha jogava de zagueiro central. Calado e musculoso, o garoto não tinha muita técnica com a bola, para compensar, descia o sarrafo, batendo até na sombra do adversário. Avesso à encrenca, vira e mexe, estava apartando uma ou outra briga. E olha que estamos falando de um tempo que o time dos Gusmão/Sales só jogava com uma faca na cintura. O “Festival da Bola” era patrocinado pelo Coronel – que adorava assistir as partidas. Fazia questão de se sentar à beira do campo ao lado de uma mesa colonial, enquanto os seus “jagunços-de-estimação” desarmavam os jogadores.
– Todo mundo passando os revólveres. Não é permitido jogar com revólver na cintura. Vão passando os trabucos, ordens do coronel Cândido! – Logo se empilhava dezenas de armas de fogo em cima da mesa ao lado do Manda-Chuva. O engraçado era que só as armas de fogo eram confiscadas, peixeiras, punhais, facões e capas-garrotes eram liberados. Cotidianamente o time dos Sales/Gusmão (comprava o soprador de apitos) ruins de doer, não ganhava de ninguém. O juiz roubava descaradamente e mesmo assim eles perdiam o jogo. Tinha partida que o juiz marcava um ou dois pênaltis inexistentes, mesmo assim, não conseguiam vencer. Neste tempo o ídolo do povoado era um cabeludo metido a besta, chamado Filó de Madalena. Principal jogador do time do Porto de Santa Cruz, o jovem sonhava se profissionalizar e deixar o seu torrão famoso. Filó jogava de centroavante com o número 10 às costas. Por ser artilheiro, era constantemente contemplado com o prêmio oferecido pelo Armarinho de Seu Zequinha, ou seja, ganhava um rádio de pilha novo. Só os melhores conseguiam esta proeza. Filó, ganhava quase sempre.
Bom de gole e bom de garfo, o ídolo do Porto só comia e bebia do melhor. No restaurante de Ana Calanga, era muitíssimo bem tratado. Após as vitórias, o impetuoso cabeludo era carregado pelas ruelas do vilarejo sempre na cacunda de Gideon de Maria, que era forte feito um touro. Como rolava muitas apostas, dinheiro chovia em cima do atleta que enchia o calção e a cueca com os tostões dos apostadores. De posse da grana, enquanto os demais jogadores sofriam debaixo do sol trabalhando na enxada, o jovem centroavante se deliciava ao lado de suas quengas do cabaré de Salomé, tomando a seleta cerveja encangada no fundo-do-pote acompanhada dos tira-gostos de carne do sertão, previamente escolhida. Malandro, Filó fugia às léguas das moças casadoiras do vilarejo, preferindo sempre se enroscar com as damas-da-noite. Ojerizava compromissos sérios. Era um irresponsável convicto.
As grandes festas aconteciam quando o time do Porto enfrentava o time de Nova Conquista, que já no final dos anos 1950 era um timaço. O festival da bola trazia também os times de Veredinha de Minas, Batuque, “Sales/Gusmão” e o Vasquinho do Cabo Sercundino – também deste torrão. Na maioria das vezes o festival terminava em porrada, já que os “Gusmão” nunca aceitava pacificamente uma derrota e por ser apadrinhados pelo Coronel Cândido, encarava os adversários querendo ganhar no grito. Nunca ganharam de ninguém, nem na bola, nem no grito e nem na mão. Quando queriam partir para o tiro, “Candin” – o coronel – intervia. Era o responsável direto pelo território do Porto de Santa Cruz, assim, precisava primar pelo moral e bons costumes.
Filó de Madalena, convencido que era, dava em cima de todas as meninas do vilarejo, embora, quando via a linda professora Vera, tremia feito vara verde. A professora era filha do Vaqueiro Salu e muito respeitada no vilarejo. O cabeludo adorava usar os matinhos do pocinho como “abatedouro” para devorar suas “presas”, porém, quando passava na praça e topava com os lindos olhos azuis da professora, o moço ficava tão acanhado que saía tropicando. Quando tentava falar alguma coisa com a moça, se engasgava completamente e saía tossindo. Em uma quermesse, após marcar sete gols contra o time do Coronel, Filó bebeu duas talagadas de canjebrina, se armou de coragem e até tentou falar com Vera. Ao puxar conversa com a moça (que foi até solícita), se embananou ao responder se já tinha lido ou não o livro “Dom Casmurro”. Ficou tão enrolado que só conseguiu perguntar com os dentes trincados: – Dom quem?
Como Vera era uma das animadoras do “Festival da Bola”, constantemente se encontrava com o artilheiro maior do time do Porto. Delicada, sofisticada e romântica, a jovem Mestra gostava muito do Esporte Beltrão, embora, ojerizasse a pancadaria que quase sempre acontecia no final das partidas. Bastava o jogo acabar para os perdedores caírem de pau em cima dos vencedores e o saldo era um bando de jogadores mutilados e cheios de escoriações. Todo mundo já sabia, fim de jogo… era pancada, rasteira, pernadas, socos e quebradeira… Para piorar a situação, a boa equipe do Porto não primava muito pela coragem! Assim, sempre que saíam vitoriosos, eram obrigados a correrem para o mato para não apanharem, geralmente perseguidos pelos enfurecidos jogadores do time derrotado. Era um vexame!
Eis que um belo dia, após golearem o time do Bairro Jurema de Vitória da Conquista, sabendo da fama dos portuenses, os perdedores se invocaram de dar um pau em Filó de Madalena que além de entrar em campo mais cheiroso que filho de barbeiro, marcou os 5 gols da goleada de 5 a zero e ainda saiu arreliando dos derrotados. Apois… não é que após o apito final uma meia dúzia de criolos não caiu de pancada nos pobres jogadores do time do Porto? Quando a coisa ficou preta (com perdão da palavra) os atletas deitaram o cabelo deixando apenas o pacato Mané Galinha encurralado em um canto da trave! Tico-Tico, Florisvaldo, Zé da Tenda e Beiçudo foram os primeiros a correrem em direção ao mato, pareciam preás assustadas. Filó de Madalena, o cabeludo bonitão, tratou logo de segurar as madeixas correndo apavorado se desviando dos socos, rasteiras e pontapés que encontrou pelo caminho indo se esconder justamente atrás da saia da professora Vera, que valentemente, armada apenas de uma velha vassoura, enfrentou dois ou três agressores, indignada com os gritos desesperados do centroavante mulherengo:
– Me acode “Fessora”, querem cortar o meu cabelo, não deixa não! Me acode! Pelo amor de Deus, me acode!
Foi aí que surgiu o herói improvável do povoado, o tímido e calado Mané Galinha! Sem alternativas, o zagueirão passou a se defender dos socos dos agressores com uma invejável ginga de corpo e quando se viu encurralado, passou a trocar socos e pontapés com metade dos jogadores visitantes. Cada lapa de nego que metia até medo. Os caras eram fortes e violentos e com muita experiência em brigas campal. Pareciam ter molas nos quadris, pulavam, rodavam em uma ferocidade indescritível. Tinha até os escolados na arte da navalhada e tentaram em vão atingir Mané Galinha que se desviava dos ataques em uma rapidez impressionante. Acostumado a pisar café no pilão, Mané aprendeu a bater pra derrubar. Corajoso, teve que se superar diante do perigo e não deixou um adversário de pé. Derrubou um por um. À medida que era atacado, se desviava e tome porrada. Batia com gosto e com desprezo. Conseguia derrubar cada lapa de negão que parecia um poste!
Foi nesta hora que a população do Porto começou a torcer para Mané, gritando como se assistisse a um jogo. Avesso à fanfarronice e temente à Deus, o moço que não perdia uma missa dominical e honrava fielmente sua crença, estava ali como único representante da sua equipe. E olha que ele só se tornou jogador devido a séria contusão de Totonho de Anália. A falta de quórum fez que que Mané fosse convocado às pressas. Era um zagueiro pra lá de bruto. Só chutava de canela e era extremamente caceteiro. Como não existia reserva, quando alguém se machucava gravemente, o técnico pedia o adjutório de algum “enxerto” da região. O time geralmente só tinha onze jogadores. Isto quando Chico Ressaca se encontrava sóbrio, quando bêbado, o negócio era entrar em campo com dez jogadores. Voltando ao embate, Mané Galinha se superava, apoiado pelos gritos de incentivo dos torcedores portuenses, descia a ripa nos encrenqueiros, Ali no “campo de batalha”, diante dos olhos do povo, Mané Galinha se transformava no Vingador do Sertão!
Ao se ver cercado por aquela renca de criolos, gritando feitos uns alucinados, o jeito foi Mané bater ainda mais forte. Cada soco era uma queda. Rápido como um raio, se desviava dos socos, pontapés e rabos de arraia e descia o porrete. Era batendo e nego desabando, batendo e derrubando. Não ficou um único adversário de pé. O que se viu a seguir foi aquele monte de opositores no chão. Queixos quebrados, alguns cuspindo os dentes, outros com fraturas nos braços, nas pernas, joelhos fora do lugar e a briga se transformou em uma apoteose que virou até livro de cordel. Os torcedores acharam o tumba bem melhor que o jogo vencido pelo Porto. Por eles a briga duraria a tarde inteirinha.
Onofre dá venda até estes dias ainda contava as peripécias de Mané Galinha com um sorrisão deste tamanho na boca murcha e desdentada. Esta data entrou para a história como o dia em que Mané Galinha virou o Vingador do Sertão, derrotando apenas com os punhos um time inteirinho do Bairro Jurema. Foi carregado em êxtase pelas ruas do vilarejo e recebeu a premiação em dinheiro que seria destinada ao seu artilheiro maior. Quanto ao cabeludo Filó de Madalena, virou piada por ser o jogador mais medroso do mundo. Correu igual pinto assustado, com uma renca de negões enfurecidos fungando no seu cangote!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadra de Fevereiro, pós carnaval. Crescente de Verão.