O Porto de Santa Cruz no final dos anos 1950 era bem movimentado. Os meses de novembro e dezembro, que coincidia com a quermesse promovida pela igreja católica, trazia centenas de forasteiros para o vilarejo. Se isso ainda não bastasse, ainda existia uma renca de nativos que vinham de São Paulo, chegavam bem diferentes de quando iam em busca de trabalho. Moradores de toda a região se encontravam durante a festa. Bentinho era um destes “Sãopauleiro” que após passar seis meses na pauliceia, retornou cheio de mungangas, se achando o rei da cocada preta. Filho de Dona Zeferina e de Seu Mané Gostoso, o menino desde muito pequeno se revelou um mentiroso voraz, devido a isso, nunca teve muita credibilidade pelas bandas de cá. Mesmo quando retornou da capital Bandeirantes, o nativo não conseguia conquistar a simpatia dos “portuenses”, excetuando, obviamente, algumas meninas traquinas que se deixavam iludir pelo jeitão diferente do maluco. Bentinho era todo elétrico, saltitante, cabeludo, usava umas roupas apertadinhas e conversava mastigando as palavras. A má fama que o precedia, justificava o porquê. Além de mentiroso, o cara não aguentava ver uma mulher passar na rua (mesmo as casadas) que já ia “tomando boca”. Juntava-se a isso a fanfarronice de ser mais convencido que galã de novela mexicana, além do exagero anormal. Tudo do moço tinha que ser melhor que o dos outros. O rádio de pilha que trouxera de Sampa, sintonizava – segundo o próprio – “rádia inté dos estrangeiros”, suas calças “curinga” eram cerzidas com “fazendas” importadas das Américas, seu pente (conduzido com extremo zelo, na algibeira da camisa branca) era de osso fornido, forjado especialmente pra ele pelo Mestre Otoniel, sem falar que dizia se expressar melhor que todo mundo, já que ninguém resistia ao seu charme (a mulherada estava ali pra confirmar). Ao retornar ao Porto, mostrou-se tão preguiçoso que se recusou a voltar para a pauliceia. Os amigos e colegas retornaram e ele ficou tocando terror no vilarejo com a população em polvorosa. Diariamente o moradores do Porto tinha que conviver com a renca de mentiras contadas pelo caboclo. Chegava todo engomadinho no Bar de Saracura logo pela manhã, pedia um rabo-de-galo e tome fanfarronices…
– Tenho a impressão que quando eu nasci, mamãe passou açúcar em mim. Não tem mulher que resiste a um topete destes (dizia se olhando no espelhinho de bolso). Gastei um pote de brilhantina Glostora para deixar meus cabelos brilhantes. Com meu sorriso Colgate e um cabelo desse, a mulherada endoida. Aqui no Porto, peguei todo mundo, não sobrou ninguém. Se alguém estiver duvidando é só perguntar pra João Saracura, ele sabe que não minto. – Saracura, o dono do bar, um negão enorme, musculoso e banguela, olhava de soslaio para o fanfarrão e engolia, não queria fazer o filho de Mané Gostoso passar vergonha. Até os amigos mais próximos se irritavam com o ele. Era um mentiroso voraz!
Outra figura muito importante do vilarejo nesta época, era Bastião Carreiro, um pernambucano que chegara ainda menino por aqui e com muito trabalho e suor, conseguiu prosperar, criando uma Olaria, produzindo tijolos e telhas que eram até exportadas para outras cidades. O homem trabalhava dia e noite com a sua junta de bois, conduzindo sua produção. Apesar de bem mais velho, quando Nalvinha se perdeu, sendo desvirginada por Damião de Zé Colosso, foi expulsa de casa e quando buscou apoio no cabaré de Ana Calanga, Bastião estendeu-lhe a mão juntando os troços com ela. Após três anos vivendo juntos, viraram um casal muito admirado na sociedade local. Nalvinha virara uma ferrenha dona de casa que cumpria com afinco as suas obrigações e temerosa à Deus, não perdia uma missa. Dizia para as amigas que Deus dera-lhe uma nova chance e que ela tinha que agarrar. Tanto que o amor dela para com o amásio chamava a atenção de todas as mães de família. Era uma “abraçação” lascada, uma “beijação” danada, um agarra-agarra medonho e pareciam ser o casal mais apaixonado do mundo.
Tudo corria às mil maravilhas até a chegada de Bentinho. Bastou o caboclo butucar os “zói” na ex-donzela pra ficar todo animado, não demorou muito e lá estava ele arrastando as asas para os lados da moça. Assim que se sentiu desejada, a libido adormecida que existia dentro dela veio à tona e mesmo fingindo que ignorava o assédio, passou a retribuir as piscadas, os bilhetes e até os beijos que o malandrão jogava no ar.
A diferença de idade de Bentinho para Bastião era grande, Bentinho tinha um pouco mais de vinte e Bastião muito mais de cinquenta, embora, fosse forte como um touro. Trabalhando de sol a sol, construíra em pouco tempo um pé de meia pra lá de satisfatório. Nalvinha – guardadas as devidas proporções –, tinha vida de princesa. Como jurara fidelidade ao velho Bastião que a resgatara das portas dos cabarés, a menina fez um esforço dos diabos para manter a sua palavra, porém, diante das investidas do malandrão, o desejo adormecido veio à tona e ela não conseguiu resistir.
Ao ir comprar uns mocotós na feira, Nalva topou com o fanfarrão e quando seus corpos se tocaram, a menina sentiu seu corpo ficar mais pinicado que milho em bico de pombo. O fanfarrão não era assim esta beleza toda, porém, além de magérrimo, era jovem, tinha um bigodinho aparado na régua, cabelos longos empapuçados de brilhantina, andar saltitante e falava gírias sibilando igual uma cobra. O indivíduo era detentor de uma prosa ludibriosa entrelaçada à generosas doses de mentiras. Quando via alguma ninfeta, perdia completamente a estribeira… estufava o peito (não tão malhado, como supunha), geralmente coberto por uma camiseta Hering apertada. Incrementava o visual de “moderninho”, usando um par de “butina” de couro sem meias, casando perfeitamente com a calça “meio-coronha”. Com todo esse “mecanismo” enganador, não é que o malandro de uma hora para outra não falou meia dúzia de “ípsilones” bem no “pé do zuvido” da fogosa? Bastaram algumas horas para obter o resultado desejado, e logo, lá estava ele – mais feliz que pinto no lixo -, navegando histericamente na reforçada cama de Bastião Carreiro. Pelo jeito o negócio foi bom para ambos os lados, já que a partir daquele dia, fizesse chuva ou sol, assim que Bastião se despedia afetuosamente da esposa, mal dava as costas e lá vinha o saltitante Bentinho – parecendo até um bode catingueiro -, adentrando sorrateiramente à casa de Nalvinha. Assim que entrava a farra estava feita. Ficava das oito da manhã até quase meio dia, quando – segundo alguns vizinhos – saía tranquilamente, assobiando uma música de Roberto Carlos e penteando os cabelos com o seu pente de estimação! A casa do velho Carreiro era parede-meia como o Bar de Saracura e algumas manhãs podia se ouvir Nalvinha (sempre com as coxas entrelaçadas ao corpo do malandrão), gemer tão descaradamente que os vizinhos, incomodados, já estavam a ponto de registrar uma queixa (embora muitos se reunissem no Bar apenas para ouvir o “estrupício”).
A sorte foi que Malaquias de Dona Odete, conversador feito o “diabo”, saiu espalhando na praça inteira que a testa de Bastião Carreiro estava parecendo um pano de toureiro, fazendo que João de Luzia, um velho e fervoroso evangélico, corresse até o bar e constatasse pessoalmente a veracidade dos fatos. Quem estava lá contou que o velho ficou mais de duas horas de relógio petrificado, ouvindo através de um copo de vidro encostado na parede os gemidos de prazer da assanhada. Disseram até que o “ancião” parecia estar gostando, já que ouviu tudinho sem dar uma piscada, só babando grotescamente na imensa barba. Após o término do evento, João de Luzia saiu correndo meio aluado pelas ruas até encontrar Bastião na praça principal, conduzindo inocentemente os tijolos da sua olaria na junta de bois.
– Bastião, meu filho, preciso te contar uma coisa de Nalvinha…
– Que foi João? Aconteceu alguma coisa com a minha amada? Pelo amor de Deus, fala logo! O que houve? Ela está bem? – Diante da afobação do pobre traído, João se viu obrigado a recuar…
– Bastião, Nalvinha sua “muié”, está gritando feito uma doida lá na sua casa. Vá lá, “home”! Vá lá! Veja o que está acontecendo com ela.
– Será que ela tá passando mal? – Indagou o iludido.
– Num sei. Pelos gritos pode inté sê. Mas acho que ela está passando é bem. Vá lá depressa pra ver o que é! – Incentivou o ancião.
Bastião sabia que João de Luzia não era homem de mentiras. Ao ouvir a história, largou a junta de bois e pernas pra que te quero. Já adentrou a casa levando a porta no peito e assim que entrou no quarto flagrou o adultério em plena luz do dia. Ao surpreender os amantes, um sobre o outro, mais enroscados que moita de chuchu em cerca de vara, nus como vieram ao mundo… o pobre Bastião ficou completamente atordoado… sem pensar muito, gritou para a amada:
– Nalva, meu amor! Que porra é essa? O que “ocê tá fazeno cum ele”?
– Eu?!!! – Respondeu Nalvinha, atônita. – Nada! Você não está vendo nada!
Às vezes, os gestos respondem por si. Bastião viu, mas não quis acreditar. Aliás, acreditou. Acreditou em Nalvinha, sua – ainda – “doce” esposa, que completamente desesperada alegou que havia sido “forçada” por Bentinho. Só não conseguiu explicar direito o que fazia nua, sentada em cima do malandro, se descabelando daquele jeito. Mas, marido que se preza, acredita mesmo é na esposa. Bastião, furioso, pegou o malandro pelos cabelos e deu uma “pêa” tão lascada de chicote que Bentinho só não bateu as botas e esticou as canelas naquele dia mesmo, porque foi acudido às pressas pela sua pobre mãe e imediatamente tratado por uma mistura de salmoura com óleo de rícino.
Ficou acamado mais de uma semana, tratado delicadamente por dona Zeferina, sua pobre e chorosa mãe, que temendo perder o filho, fez promessa pra acender velas até na Loca de Sá Judite, local considerado sagrado.
Foram seis meses pro fanfarrão voltar a andar amparado por uma muletinha. A partir daí, o caboclo baixou o facho e virou a pessoa mais humilde do mundo, mesmo assim, quando via (mesmo de longe) Bastião Carreiro conduzindo tranquilamente a sua junta de bois, tinha uma violenta crise de caganeira, arrumava alguma desculpa esfarrapada, e caía na lapa do mundo!
Bastião e Nalvinha ainda viveram felizes por um tempão.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor
Cândido Sales, Bahia. Quadras de dezembro de 2024.
Primavera, lua crescente.