Em 1945 a município que futuramente viraria Cândido Sales era representado pelo Porto de Santa Cruz, onde existia algumas ruas, hotéis, mercearias e tendas que vendiam tudo quanto há. Neste tempo já existia a igreja do Bom Jesus e uma vez por mês uma comitiva vinda da Congregação da Vila da Conquista turbinava a vida do povoado realizando casamentos, batizados, missas e outras atividades recreativas. Quem tinha a sorte de estar no povoado nesse dia, delirava de prazer. Era a oportunidade de ver pessoas diferentes, de conversar, se socializar, interagir com gente de todas as partes do sertão e esquecer um pouquinho da vida cotidiana.
Senhores de ternos e gravatas, noivas desfilando em lindos vestidos devidamente acompanhadas das suas respectivas damas de honras, crianças chorosas aptas para receberem o sacramento nos colos dos respectivos padrinhos, curiosos que buscavam cortejar as lindas moçoilas que raramente saiam das suas casas (sempre bem acompanhadas dos pais) se socializando com gente de outros paragens, e, a cereja do bolo era o “cortejo” de prostitutas, gigolôs, marreteiros, jogadores e encrenqueiros de toda espécie… O evento acontecia sempre no último domingo de cada mês. O frei (com o seu enorme corpanzil) chegava acompanhado de uma enorme comitiva, sentado confortavelmente em cima de uma canoa escoltada de outras tantas entupidas de gente.
Era um intenso movimento. Se existia movimento, existiam pessoas, onde tinham pessoas tinha dinheiro, onde existia o dinheiro havia a oportunidade de negócios, daí, o que não faltava era empreendedor. Um destes empreendedores era um baixote, negro, cabelo duro, encrenqueiro feito o diabo e que era conhecido pela alcunha de Juca Coice de Preá. Ao perceber a oportunidade de negócio, o baixinho se associou à linda Marilu (uma mulher-de-vida-fácil) e começaram a desenvolver uma prestação de serviço até então inédita no povoado. No período dos festejos assim que o barco aportava, a garota era a primeira a descer. Alta, trinta e poucos anos de idade (devidamente disfarçados sob uma espessa camada de maquiagem), falsa loura de cabelos oxigenados, sobrancelhas pintadas a lápis, lábios carnudos lambuzados de batom vermelho, ruge e carmim generosamente espalhados pela face, devidamente arrematado por uma pinta falsa de crayon na parte direita do rosto. O toque final era o vestido justo nas cores vermelho e roxo (disfarçando a barriguinha saliente que insistia em aparecer) combinando com as longas botas de couro pretas, cujos canos iam até acima dos joelhos. Se isso não fosse suficiente ainda havia o lindo par de seios, que de tão “generosos” faziam os tímidos ficarem completamente ruborizados! Descia sempre acompanhada do seu empreendedor. Baixinho, franzino e encrenqueiro, Juca media um metro e trinta e três de altura, gostava de engomar os cabelos sempre penteados para cima, ostentando um cavanhaquinho mais fino que apito de soim. Apesar de tudo isso, as más línguas diziam que o negrinho com uma navalha na mão, cortava mais que o esmeril da oficina de Mestre Alfredo! Todo metido a sebo, Coice de Preá andava se equilibrando em cima de uma botina preta, cujo salto devia medir uns 30 centímetros e o fazia andar todo desengonçado. Já chegava ao povoado distribuindo esporro à torto e a direito. Pagava as passagens com a cara emburrada e já subia a ladeira puxando com enorme esforço a barraca de lona que era sempre armada atrás da igreja. Enquanto o baixinho “bufava” com o peso da lona, Marilu subia graciosamente se equilibrando nos saltos da sua bota, jogando sensualmente a sua empinada derriére de um lado para o outro enquanto era seguida por uma renca de marmanjos babões e visivelmente excitados. Enquanto acontecia a missa e – simultaneamente – uma movimentada feira na porta da igreja (onde se vendia desde carne de animais recém-abatidos até bobs e misses para cabelos), Juca suava literalmente na parte de trás tentando organizar uma fila indiana com mais de uma dezena de homens que se propunha a pagar a bagatela de cinco mil réis, objetivando ficar dentro da barraca pelo tempo máximo de cinco minutos entrelaçado nas carnudas coxas de Marilu. Claro que o empreendedor impunha algumas regras: – “Vamo lá, vamo lá”! – Gritava o “gigolô”, parecendo até um general. Do alto do seu metro e trinta e três ele olhava de soslaio para cada um dos homens que se encontravam na fila e dizia: – Pagamento adiantado, a consubstanciação tem que ser em silêncio para não atrapalhar a missa, não pode gemer, não pode gritar e se passar dos cinco minutos eu boto pra fora à força! Os maiores de 50 anos pagam dobrado e os meninos não pagam, mas também não entram! – Uma coisa precisa ser dita: Marilu podia até ter os seus defeitos, porém, era uma verdadeira dama! Atendia com um invejável profissionalismo todos os seus clientes. Não discriminada os sujos, os malcheirosos, os maltrapilhos, os embriagados, os manetas, os pernetas e todos aqueles que requeriam o seu valoroso trabalho! Com raríssimas exceções, todos faziam questão de ficarem até o “apito final”, depois, era possível vê-los saírem da barraca em uma incrível satisfação, demonstrada através de um largo sorriso!
Após atender ao último “cliente” da fila, a garota deixava Coice de Preá, enrolando a barraca – geralmente proferindo palavrões -, e saía graciosamente pelas ruas – nem parecia ter “trabalhado” a tarde inteirinha. Rumava para a Pensão de Dona Modesta, onde tomava um banho quente e já com outro vestido (tão lindo quanto o primeiro) tomava generosas doses de cinzano. No início da noite era conduzida por Juca e sua candeia até a canoa. A despedida cortava os corações dos nativos, que muitas vezes ficavam até trinta dias se virando literalmente na palma da mão. E assim, todo mês se repetia esta homilia. Dizia-se no povoado que dessa forma, Marilu já tinha até construído um palacete lá para as bandas dos Gerais, mesmo tendo que desembolsar 30% do arrecadado para o seu empreendedor.
Eis que um belo dia apareceu na vida de Marilu, o jovem e lindo Reginaldo Cravinote, vinte e poucos anos, corpo para lá de definido, alto feito uma aroeira e que – segundo se comentava -, era um verdadeiro “tripé”! Recém-chegado ao povoado (sem profissão definida), ao passar atrás da igreja, só por curiosidade resolveu perder o amor de cinco mil réis e checar se a “mercadoria” oferecida era assim tão boa como se propagava. Não é que o inesperado aconteceu? As duas partes gostaram tanto do encontro que logo no primeiro dia ao se completar os cinco minutos “oficiais”, assim que o jovem se preparou para deixar a barraca foi agarrado a força por Marilu, excedendo o tempo em quase meia hora, gerando imensos protestos dos que esperavam na fila e um ciúme descabido no baixinho Coice de Preá que perdendo as estribeiras, quis porque quis dar na cara da garota.
– Que porra é essa, sua rapariga safada! Cadê o seu profissionalismo? Se fizer isso novamente vou lhe arrebentar a cara na frente de todo o mundo. Respeite os seus clientes, sua cadela! – Gritou furioso “Coice-de-Preá”.
– Vá se lascar seu vagabundo! Eu não sou escrava sua nem de ninguém! Se você tocar em mim eu arranjo outro cafetão e te boto no olho da rua. Quem rala pra ganhar a porra da grana que lhe sustenta sou eu, seu corno safado! – Devolveu a garota no mesmo tom. No segundo mês, Reginaldo (que havia testemunhado o destempero do baixinho), estrategicamente se posicionou como último homem da fila. Esperou pacientemente todos serem atendidos para em seguida entrar na barraca. Pagou, entrou e… demorou duas horas e meia, o que fez que “Coice de Preá”, completamente descontrolado, arrancasse metade do bigode que cultivava com tanto zelo. E quem pensava que o que estava ruim não poderia piorar, viu a tese cair por terra quando Marilu passou a fazer hora extra, demorando cada vez mais nos braços do amante, chegando ao extremo de dispensar uma fila inteirinha de clientes apenas para saciar os desejos incontidos do amado. – Hoje eu não atendo mais ninguém, podem voltar pra suas casas. Hoje eu só vou servir ao meu amado Cravinote! – Estas atitudes deixavam o gigolô à beira de um ataque de nervos.
Algumas vezes a moça chegava ao povoado usando óculos escuros, o que se constatava depois, estar com um ou ambos os olhos roxos. Dizia-se, ser a crise de ciúmes do ex-bigodudo Juca. Que sempre que podia descia a ripa na garota. Apesar de tudo isso, o seu “profissionalismo” fazia que ele mantivesse o padrão, mesmo morrendo de ciúmes do jovem Cravinote. No mês seguinte, Marilu chegou no horário de costume, começou a trabalhar e nada de Cravinote aparecer. Atende um, atende outro, as horas passam e nada do amor da sua vida aparecer. Enlouquecida, a garota deu uma bistunta e se negou a atender o restante dos clientes, gerando enormes protestos dos que estavam na fila. – Se o meu homem não aparecer aqui hoje eu não atendo mais ninguém! – Deixa de ser escrota, sua puta descarada! Como pôde se apaixonar por um Pé-Rapado daqueles? Quem vai arcar com o prejuízo se você não fizer o seu trabalho? – Indagou Coice de Preá furioso. – Se vire. Só volto a trabalhar se Reginaldo aparecer! – Diante da negativa da “dama-da-noite” Coice de Preá “desceu do salto” e, só não concretizou o enforcamento da linda morena por insuficiência de força e porque Jamelão, um famoso lenhador de quase dois metros de altura que esperava na fila, ao ver a covarde agressão do baixote, intercedeu em favor da garota. – Êpa! Que covardia é essa? Homem que bate em mulher pra mim não tem valor! – Saia da minha frente seu balofo de merda! – Gritou Coice de Preá sacando a sua navalha. Se sentindo desacatado o lenhador pegou o gigolô pelos cabelos e com apenas uma das mãos o jogou facilmente em cima de uma moita de quiabento. Juca “Coice de Preá” nesse dia, levou uma pêa tão lascada do lenhador que teve de prometer publicamente (ajoelhado e chorando), que jamais, voltaria a tocar em um fio de cabelo de Marilu. Desmoralizado, com a cara toda mochilada, duas costelas trincadas e com vários dentes quebrados o baixinho partiu sozinho na canoa. Marilu (desolada com o desaparecimento do seu doce amado), acabou abandonando a “profissão” e se amasiando com Jamelão. Terminou os seus dias, morando em uma pequena tapera próximo ao Rio Pardo. Quanto ao Reginaldo, alguns dias depois foi encontrado morto, jogado dentro de uma cisterna já em decomposição. Dizem que o responsável pela morte do jovem teria sido Juca “Coice de Preá” que contratara alguns jagunços, para “consumir “com o seu desafeto. Marilu viveu feliz com Jamelão até o fim dos seus dias, Coice de Preá nunca mais deu as caras no povoado.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e poeta.
CSales, Bahia. Quadras de Novembro de 2022. Minguante de Primavera.