Quem me contou esta história com riquezas de detalhes, foi Zé do Sindicato. Ele jura que aconteceu “desjeitim”, tendo ele e Jordãozinho como personagens. Tem gente que acredita, outros nem tanto. Jordão – falecido há algum tempo – chegou a confirmar para algumas pessoas. Para quem não o conheceu, Jordão era bem pequeninho, media mais ou menos um metro e meio de altura e chamava a atenção por ter os passinhos deste “tamanhinho”. Quem o via com aquela cara sisuda imaginava logo que ele fosse uma figura completamente mal-humorada, na verdade, era apenas tímido.
Entre os anos 1970 e 1990 o famoso carrinho de pipoca (e amendoim torrado) de Jordão era sempre encontrado nas portas dos principais colégios da cidade. As estudantes mais bonitas da sala se divertiam desviando a sua atenção (o abraçando à força) para que as colegas afanassem pipoca ou amendoim. Saía pela manhã com o carro empanturrado de produtos (amendoim, pipoca, cocadas, etc…) e só voltava à tardinha quando vendia quase tudo. Extremamente católico, Jordão era o condutor oficial da Santa Cruz durante as procissões. A pesada cruz era bem maior que ele, só que, fizesse sol ou chuva, em qualquer cortejo que houvesse no município, quem saía na frente ao lado do Padre? Sim. Jordãozinho da Pipoca. Aquela multidão, cânticos, velas, reza, e, completamente indiferente a tudo que acontecia ao seu redor, seguia ele com aquela cruz pesadíssima andando com os seus passinhos diminutos. Estas participações inseriu o moço na sociedade Cândido-Salense o transformando em uma pessoa querida e respeitada.
Neste mesmo período também existia por aqui, Zé do Sindicato criador o STR e um dos fundadores da Igreja Católica. Se especializou em “desenterramento” de potes doados pós-morte pelos defuntos. Quando alguém morria e tinha algum pote enterrado, mesmo antes do corpo esfriar lá estava o defunto desesperado batendo literalmente na porta de Zé para que ele fizesse o adjutório de desenterrar o “tesouro” e encomendar a alma. Reza a lenda que era muito comum esta prática no século passado, assim, se alguém batesse as botas ou esticassem as canelas com bens enterrado, estava mais ou menos enrolado. Não entrava nas portas do céu nem a pau. Assim, o morto era obrigado a voltar para procurar um especialista no ramo, expert por aqui só mesmo Zé do Sindicato. Tinha experiência no assunto.
Para arrancar uma botija, o caboclo tinha que se levantar meia noite de sexta-feira, geralmente com lua cheia, levar pá ou picareta, duas velas bentas, um terço, água benta e ter muita coragem, pois na maioria das vezes a alma do defunto (desconfiada) acompanhava a empreitada e com ela uma renca de livusias. O sigilo tinha que ser absoluto, se alguém soubesse antes, o encanto seria quebrado e as riquezas da botija (mesmo depois de muito tempo) se transformariam em carvão e desapareceria, causando, inclusive, loucura e morte para os que quebraram o trato. Obtendo sucesso, o sortudo ficaria remediado pelo resto da vida, embora – enquanto vida tivesse –, toda sexta-feira 13 seria acordado no meio da noite por um gemido tenebroso de uma alma penada. Nada vem de graça, né?
Mas, eis que morre Zé Roxo – um fazendeiro muito importante, famoso por fabricar aguardente na região. Zé Roxo e Zé do Sindicato eram bons amigos. Menos de uma semana após sua morte Zé voltava da lavra pedalando a sua Contra Pedal quando faltou força para subir a ladeira da Lapinha. Ao apear, deu de frente com o defunto de Zé Roxo trepado no bagageiro. Queria convidar Zé para tirar uma botija na Coréia (Cajazeiras), exatamente no antigo sobrado de Jovitel. Ao ouvir a proposta Zé deu um calundu: – Quero não, quero não, não bulo mais com isso não! – Esbravejou irritado. – Já andei tirando umas duas ou três e é uma “incheção” de saco danada. Vocês defuntos não tem um pingo de consideração com a gente. Só querem “venha nós”! Quero “rancá” isso mais não. Pode dá pra outro!- Apôis se “ocê num topá” eu vou “fica” o resto da vida lhe atentando. – Teria dito Zé Roxo. Diante da insistência, o jeito foi Zé aceitar a empreitada com a condição de levar Jordãozinho como companheiro. Com as partes devidamente acertadas, Zé montou na sua Contra Pedal e chispou a mula. Gastou uma renca de saliva para convencer Jordãozinho a participar. Quando falou que ele poderia ficar rico e se casar com a mulher que quisesse, Jordão “butucou os zói” e aceitou na hora. Assim, na calada da noite e na hora marcada, lá estavam eles descendo tranquilamente a rodagem.
Quando chegaram no meio da ponte bateram de cara com um negão enorme. Chapéu coco na cabeça, sem camisa, calça batendo no meio da canela, descalço e com cada lapa de pé que metia até medo. Pra piorar, ainda pitava uma bituca de cigarro, enquanto desfilava munido de uma espingarda duas vezes maior que Jordão. Com os pelos arrepiados, os amigos tremeram vendo o homem exalar pelas ventas cada lapada de fogo que clareava o escuro da noite. Experiente, Zé Sindicato se pois a rezar e jogar água benta em direção à livusia. Quando ficaram cara a cara com o negão, o bicho abriu a boca cheia de dentes cariados, butucou os “zóios” que pareciam duas brasas incandescente e soltou uma gaitada que faltou estourar os tímpanos dos amigos. Quando Zé olhou para trás, viu Jordão tentando correr enquanto era puxado pela gola da camisa. Ao ver a cena, Zé sacudiu a garrafa de água benta na cara do negão que deu um pipoco e virou uma bola de fogo rolando ponte abaixo, caindo no meio do rio Pardo. O fedor insuportável de enxofre pesteou o ar. Faltavam duzentos metros para chegar ao sobrado. Puxando Jordão pelo braço, Zé atravessou um monte de lama fétida e nojenta, se desviando de renca de ratos brigando com leitões albinos, fugindo de uma sucuri enorme.
– “Cê tá veno”, Zé? – Gritou Jordãozinho butucando os “zóios”.
– “Tô veno” nada não! – Mentiu Zé do Sindicato puxando o assustado amigo lama acima. Ao chegarem ao sobrado de Jovitel (ruínas de uma bela construção) a porta se abriu sozinha. Os amigos entraram, um pegou uma picareta, ou outro a pá e assim que bateram no solo o velho telhado de madeira veio abaixo caindo em cima de Jordão. Aquele desespero danado, Jordão gemendo de dor e Zé com muito sacrifício conseguiu puxá-lo dos escombros. Mal se recompuseram e do nada surge uma aglomeração de morcegos entrelaçados à uma renca de bacuraus e rasga-mortalhas. Foram meia hora de labuta com Zé e Jordão utilizando as ferramentas para se defenderem dos bichos. Depois disso, veio um silêncio tão aterrador que só foi quebrado pelo ataque de tremedeira de Jordãozinho. Zé aproveitou a pausa, esparramou água benta para tudo que foi lado, acendeu a vela benta e passou a rezar: – Deus te fez… Deus de criou, Deus te formou… Com os poderes de Deus e da virgem Maria… – E tome água benta pra cima das livusias. – Segura a vela, Jordão! – Gritava Zé do Sindicato rezando em voz alta o seu terço. Eis que na penumbra, para piorar ainda mais a situação, não deu de aparecer o fantasma de Zé Roxo todo “mochilado”? Pois foi. Mochilado e avexado, distribuindo esporros a torto e a direito pra cima da dupla…
– Vamo lá, seus molengas! Deixa de moleza que não temos a noite toda não! Cava logo este buraco e pegue logo esta botija! – falava o fantasma deixando Zé irritado e Jordão trêmulo.
– Tá com pressa, cava você, defunto fajuto! Não sou seu empregado não! – respondia Zé do Sindicato metendo a picareta no piso. Após duas horas de labuta a dupla removeu a velha botija enrolada em molambos. Jordão olhou para Zé quase sorrindo e quando quebraram a botija pulou de dentro um bode do tamanho de um preá, com chifres, barbas e com os olhos brilhando no escuro. – Ai meu Deus do céu! – Gritou Jordão! – Que diabo é isso, Zé? – O diabo do “bodim” pulava mais que dançarino de frevo! – Saí pra lá diabo, xô, fora, fora, xô! Mate o bicho, Jordão! – Gritava Zé enquanto Jordão descia a marreta no bicho. E quem disse que acertava? Quanto mais batia, mais o bicho pulava. Bate aqui, bate ali, bate acolá e nada de acertar o “bodim”. Enquanto Jordão errava todas as tentativas, Zé enchia o alforje com o ouro e as pratas que estavam na velha botija. Quando fechou o alforje e pegou a sua picareta pra ajudar Jordão, ouviu-se um barulhão, era a porta da entrada voando em direção à dupla. Mal tiveram tempo de se abaixar e lá estava o negão da ponte, maior e mais furioso, sem camisa, de chapéu coco, calça meio-coronha, mostrando os dentes cariados, com os “zoiões butucados” na escuridão e babando os cantos da boca.
– Larga esta “butija” “felas de rapariga”… – Gritou metendo o dedo no gatilho. Zé mal teve tempo de ver a cratera que se abriu na parede atrás dele. Quando o negão voltou a engatilhar a espingarda com o bodim sentado na sua cacunda, bateu um pânico e ele deixou Jordãozinho de lado e desembestou Rio-Bahia acima em uma ligeireza de meter medo. Zé sempre fora um mulato magérrimo e caneludo. Imagine aí, novo, cheio de energia e morrendo de medo? Pois é. Como era extremamente católico, mesmo assombrado ele rezava para o coitado do Jordãozinho que caíra nas garras do negão babão. Também, com aquelas perninhas curtinhas como ele poderia escapar? Pensando no pior, apertou à carreira e quando já estava quase chegando em casa só viu Jordãozinho passar por ele igual uma bala. Passou, meteu os peitos na porta e ambos caíram ofegantes dentro de casa.
Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. O alforje aberto no dia seguinte tinha 70 moedas de ouro, um punhal cravejado de diamantes, copos e baixelas e alguns medalhões de prata.
Jordãozinho recebeu seis moedas de ouro pelo trabalho. O restante ficou com Zé do Sindicato que comprou um velho Chevrolet 68, uma terrinha na beira do rio Pardo e enterrou o restante. Afinal de contas, a roda precisa girar. Zé ainda está vivo e forte. Quando morrer, provavelmente virá oferecer o “tesouro” enterrado para algum “corajoso” que esteja lendo esta história. Quem se habilita?
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor.
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Novembro de 2023.
Lua Nova de Primavera.