Ali pelos meados de 1979 quase toda semana chegava gente nova aqui em “Candin”. Era gente botando padaria, outros, mercearia, uma loja pra outro mais e a maioria colocava mesmo era boteco. Já disse aqui que nunca vi lugarejo pra ter boteco como esse aqui. “Candin” surgiu do nada, geralmente os lugares são respaldados por uma ou outra família influente, aqui não. O povo foi passando, olhando, gostando e foi ficando… Logo, olha Nova Conquista virando cidade. Nos anos 1960 a seca que dizimou o nordeste brasileiro provocou um êxodo enorme, e por tabela, acabou turbinando este torrão. Neste período, praticamente todos os dias chegavam por aqui uma legião de cearenses, sergipanos, alagoanos e… pernambucanos. Claro que dentre esta leva vinha muita gente ruim, porém, a maioria era formada por pessoas honestas, trabalhadoras e sofridas… Me lembro de João da Coca (que nem pernambucano era) que abriu um depósito de bebidas por aqui. O cara tinha uma alegria contagiante, pai de família, extrovertido, trabalhador, porém, cortava uma água lascada. Logo, se cercou de “bons amigos” e em menos de um ano ficou mais quebrado que arroz maranhão. Aqui é um lugar que tem “amigos” pra todo tipo de gente. Neste período importamos também muita mão de obra. Gente que chegava para trabalhar nas agências bancárias, nos colégios, na Coelba – taí Ourinho que não me deixa mentir – e, principalmente, no comércio local.
Foi exatamente nesta época que Joãozinho deu por aqui, um prendado aprendiz de carteiro. O moço era um caboclinho de estatura mediana, cabelinho bem penteado, meio fortinho, é verdade, fala mansa, trabalhador feito o diabo e extremamente educado. Apesar de pouco comunicativo, logo caiu no agrado da população – e em especial, da mulherada. Joãozinho chegou junto com Berg, o agente postal que se apaixonou incondicionalmente por este torrão. Boa pinta, Joãozinho apesar de bastante assediado, evitava um contato mais íntimo com as Cândido-Salenses porque estava prestes a se matrimoniar com uma conquistense lindíssima que o fizera abdicar de mala e cuia dos prazeres carnais e ficar com os quatro pneus arriados. Assim, para fugir dos assédios, o caboclo dava nó até na sua sombra, evitando-se assim todo tipo de problema.
A coisa entre João e a noiva estava tão séria que quando ele não ia vê-la em Vitória da Conquista ela dava as caras por aqui. Quando aquela moleca saía às ruas ao lado do carteiro, a “homaiada” daqui ficava boquiaberta. Pense aí em uma mulher bonita? Lucenilda tinha uns 20 e poucos anos, era uma morena pra lá de turbinada, cabelos longos e escovados, cinturinha de pilão, um sorriso cativante no rosto em tempo integral e pra deixar o caboclo com o queixo todo lambuzado, ainda vestia uma calça jeans justíssima, uma mini blusa decotada e curtíssima – deixando o umbiguinho à mostra – e um sapato alto que deixava a beldade exuberante. Na verdade, ela não andava, desfilava ao lado de Joãozinho, que perto dela, desaparecia completamente, ficava invisível. Passeavam de mãos dadas pela pracinha e quando eram descobertos não ficava ninguém dentro dos bares, corria todo mundo pro meio da rua, só se via aquela renca de marmanjos se escondendo atrás das árvores do jardim, visivelmente assediando a garota alheia, queimando mais de desejos que Judas nas labaredas. No início da noite o casal apaixonado voltava para o Hotel de Dona Nely onde dormiam agarradinhos para logo cedinho do dia seguinte, a moça voltasse pra casa no primeiro ônibus. O desejo era tão intenso que tinha gente que sonhava a semana inteirinha com a silhueta da linda garota. Mas, quem se atreveria a mexer com a noiva de um rapaz tão educado? Ficava só no desejo e… na palma da mão.
Era público e notório que João tinha um pequeno problema… Não podia de jeito maneira, tomar bebidas alcoólicas! Sorridente, lacônico e retraído, quando o caboclo botava uma gota de álcool debaixo da língua virava o capeta chupando manga. Ficava irreconhecível. Se avermelhava todo, rasgava logo a camisa que vestia, tirava as calças e os sapatos e saía correndo só de cuecas e meias pela cidade, quebrando tudo quanto há. Dava um trabalhão danado até ser capturado pelos amigos antes que a polícia desse por fé. Assim que era jogado debaixo de uma ducha fria e de solver (à força) goela abaixo, xícaras e mais xícaras de café amargo, Joãozinho finalmente voltava ao normal e no dia seguinte saía cabisbaixo pagando os prejuízos e pedindo desculpas.
Mesmo diante desta situação, a mulherada não estava nem aí, bêbado ou lúcido queria porque queria levar o rapaz pra cama. O que mais se via era a moçada louca dando em cima e ele correndo mais cedo para a pensão. Enquanto Rosemberg tocava (literalmente) os corações de duas dezenas de futuras senhoras daqui, Joãozinho jurava fidelidade à sua linda quase esposa, deixando metade das mulheres indignadas. O problema era que de vez em quando (leia-se: quando recebia seus proventos) a primeira coisa que o cantador fazia era promover uma ou outra festinha. Arrumava uma velha vitrola, emprestava um bico de luz de uma das duas casas que tinha gerador próprio, comprava dois litros de conhaque cinco estrelas e munido de um balde de gelo emprestado, convidava os amigos para virar a noite ouvindo Elomar, Fagner, Amelinha, Zé Ramalho, Alceu, Belchior e afins…
A diversão do músico era embriagar Joãozinho, que era sempre forçado a participar destes “eventos”. Detestava aquilo, porém, para não ser desagradável, participava meio acanhado e muitas vezes mal-humorado. Todos os convidados de Berg sabiam que o caboclo não podia beber, porém, para satisfazer o colega tomava uma ou duas doses de canjebrina, na sequência, rolava o ritual de sempre. O corpo ficava avermelhado, a boca espumava, a musculatura se enrijecia e depois de uns dois ou três berros aterrador, o pobre carteiro saía correndo loucamente pela cidade dando chutes em portas de vidros, batendo a cabeça em paredes e gritando feito um aluado.
Algumas garotas mais insistentes, aproveitavam da sua embriaguez para tentarem um contato mais íntimo, porém, o prazer era sempre substituído pela decepção. Até conseguiam levá-lo despido para a cama, porém, na hora dos finalmentes o caboclo dava um repente e mais amolecido que boneco de posto, saía “golfando” pela casa a torto e a direito.
Nesta época, além da mulherada louca, havia também uma concorrência altíssima de rapazes que gostavam de rapazes. Havia, por exemplo, um farmacêutico chamado Bastião que tinha até uma tabela dos preços individualizados do prazer, desde o beijo no cangote até a consubstanciação da concretização! Não é que Bastião se invocou de traçar Joãozinho a qualquer custo? E mais, não importava o preço, pagaria qualquer valor para passar apenas uma noite com ele. Queria tanto que chegou a ficar obcecado.
Quando soube disso, João entrou em desespero e começou a evitar contato com Bastião, passando até a terceirizar o seu trabalho. Toda vez que tinha alguma correspondência para ser entregue na farmácia, o jovem – cansado de levar cantadas – dava uma ou outra moeda para um menino e mandava entregar. Diariamente (o próprio Berg testemunhava) dezenas de bilhetinhos apaixonados chegavam até as mãos do carteiro, geralmente com propostas indecorosas, inclusive, com Bastião oferecendo uma grana preta para conviverem maritalmente. João ficava indignado, porém, para evitar escândalos, preferia levar na esportiva e continuar tocando a sua vida. Quando a sua linda e elegante noiva vinha visitá-lo, O moço, por vingança, fazia questão de desfilar com ela pelos quatro cantos da cidade, inclusive, passando várias vezes na porta da farmácia, Quando Bastião testemunhava aquela cena, era acometido de um ímpeto de raiva e infezação tão medonho que metia até medo. Chutava o que encontrava pela frente, derrubava os frascos de remédios das prateleiras, quebrava espelhos e depois entrava em uma crise de choro que doía em todo mundo. Nesta hora, os colegas (também delicados e alegres) lhe hipotecavam solidariedade distribuindo carinho, beijos, afagos, cafuné e abraços, embora, nada curasse a sua depressão.
Em um destes “eventos” realizado por Berg, o carteiro tomou logo suas duas talagadas de canjebrina e quando percebeu já estava correndo pelado pela cidade. Correr pela cidade – para ele – era coisa normal, nu, era a primeira vez. Geralmente quando ele atingia o seu mais alto índice de loucura, era Berg quem o conduzia até os seus aposentos e conseguia lhe acalmar com duchas frias e café amargo. Neste dia, com a mulherada mais afoita que de costume, Bergão se agasalhou entre um “montueiro” de braços e pernas e só veio dá fé da falta do colega quando chegou a notícia que ele, bêbado feito um gambá e completamente pelado, havia sido sequestrado por Bastião da farmácia e os seus “meninos malvados”.
Ao perceber o perigo que o amigo corria, Bergão e mais umas duas garotas saíram do jeito que estavam no quarto da pensão – enrolados em cobertores – e desembestaram em direção ao antigo campinho Augusto Flores.
João foi salvo pelo amigo quando já estava com a língua entrelaçada à língua de Bastião, com o farmacêutico rebolando freneticamente no vai e vem dos quadris do moço. Por pouco o fato não foi consumado. Deu um trabalhão danado, Bergão retirar Joãozinho das garras do farmacêutico, atrelados em cima de um capô de um fusquinha 66, pelados como vieram ao mundo.
Ao ver Berg com as garotas, Bastião pra lá de nervoso deu a testa, puxou um facão, quis brigar, xingou todo mundo, e só se acalmou quando foi ameaçado pelas garotas que contariam o sucedido para a cidade inteirinha, inclusive para o proprietário da farmácia que se encontrava ausente. Todo mundo ficaria sabendo do “gosto sofisticado e peculiar” do competente farmacêutico Sebastião Silva.
Coincidência ou não, uma semana depois, o jovem Joãozinho pediu transferência para a cidade de Encruzilhada, deixando o pobre do Bastião com o coração partido e os marmanjos Cândido-Salenses que babavam por sua linda noiva, inteiramente órfãos de pai e mãe.
Bergão, mesmo sem seu fiel assessor, ainda ficou quase um ano em Cândido Sales… Aprimorou-se como cantador e compositor e após sua partida alguns meses depois, voltou para se apresentar no Cine Hermano. Quanto ao jovem Joãozinho, nunca mais deu as caras por aqui. Nem ele, nem a sua fabulosa noiva. Deixando muita gente morrendo de saudades.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Janeiro
Cheia de Verão de 2024