JOÃO SEBOSO.
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JOÃO SEBOSO.

– Se “aprochegue cumadi”, se “aprochegue cumpadi” quem vai querer, quem vai comprar a Banha de Jiboia das “Oropa” que cura tudo quanto há. “Prisão de vento”, espinhela caída, hemorroida inflamada, dor nos quartos, dor de cotovelo, dor de corno, inchação no baço, na “bixiga”, “berruga”, impinge, pereba, duênça da rua e “inté farta” de vontade para fazer “servegonhice cum muié aêia”. Adquira aqui “mermo” no carro de propaganda a sua banha de jiboia original, produzida nas Oropa. Você meu patrão, minha patroa que anda desanimado, cabisbaixo, com sarna nas popa, cum as unhas regaçada de tanto coçar… “ocê” meu “cumpadi” que toma tudo que é garrafada e num tem jeito das pereba secar, e “ocê” meu “cumpanheirim”, que “trabáia” de sol a sol e quando chega de noite em casa, a patroa dá aquela encostada e “ocê” mais desanimado que torcedor do Ipiranga, hora de usar a genuína Banha de Jiboia das Oropa. Compre duas e leve três. Depois que você usar, nunca mais vai ficar sem ela. – À medida que o propagandista falava no seu velho megafone uma roda ia se formado em torno, homens, mulheres, meninos… Quanto mais pessoas, mais empolgado ficava o propagandista.

– Me vende aí três… – Gritava um. – Eu quero logo é meia dúzia. – Dizia outro. – Cura frieira? Se curar eu vou comprar logo é uma dúzia. – Falava o terceiro e logo dinheiro chovia em cima do camelô que atendia com uma destreza de fazer inveja. – Uma aqui para a madame, duas pro rapazote, cuidado para não perder o troco. Uma aqui para o cavalheiro e meia dúzia para a formosa dama. – Vendia, recebia, passava o troco e sempre falando no velho megafone: – Se aprochegue, gente… vão chegando, que tem pra todo mundo… esta é original, é genuína… Banha de Jiboia das Oropa! É só hoje, amanhã não tem mais… – Estamos na década de 1950, a feira livre do povoado do Porto de Santa Cruz era uma das mais prósperas da região. Todo domingo a quantidade de pessoas que comparecia à feira era de meter medo, neste dia, véspera do dia da fogueira, saía gente pelo ladrão comprando tudo quanto há, e a grande atração era o velho camelô, munido de uma maleta de sola cheia até os beiços de pequenas latinhas, um velho megafone, uma mesa forrada com papel de embrulho, a velha rural parada ao lado dando suporte pra lona que improvisava a barraca e ele todo empolgado, oferecendo o seu “produto importado das Oropas” ao tempo em que juntava aquele “montueiro” de cédulas. – Se aprochegue, minha gente. Se aprochegue… – O propagandista era um mulato experiente que conhecia a região como a palma da sua mão, devia ter uns cinquenta e tantos anos, obeso, faltava se derreter, suando em bicas perante o sol escaldante do meio dia, trajava um fraque, gravata borboleta, cartola (desbotada) e óculos escuros. Jesulino – seu nome de batismo – não tinha muita mobilidade, tanto que anunciava o seu produto, sentado, porém, tinha uma lábia tão ferrenha que iludia completamente aquela renca de matutos. A cereja do bolo era a jiboia “Sivirina” de dois metros de comprimento que o camelô levava enroscada no pescoço, sempre dando língua para quem se propunha a comprar a latinha de banha. Quando (por algum motivo) ela se estressava, apertava tão forte o pescoço do velho que o fazia a perder a voz. A plateia se divertia com todo aquele masoquismo. A feira do vilarejo começava às 5 da manhã e terminava as quatro da tarde.  Mercadorias de todos os tipos chegavam em lombos de burros, carroças e até pequenas embarcações. Além de feirantes de todas as partes, ainda dava por lá uma renca de marreteiros, passando a perna nos pobres matutos, os iludindo no carteado, nos dados, roletas e búzios, enquanto outros ofereciam produtos de qualidade duvidosa.

Neste tempo o vilarejo do Porto tinha cada figura estranha que metia até medo. João Seboso, por exemplo, era um ribeirinho de 58 anos, nascido e criado às margens do Rio Pardo. Ficara famoso por sempre andar mal-vestido e malcheiroso. Este caboclo vivia do abate e venda de carne de porcos. Abatia o suíno e já saía pelas ruas com o seu velho avental lambuzado de sangue. Como não tomava banho, era comum o seu odor chegar na frente anunciando a sua presença. Andava constantemente com a camisa aberta mostrando a pança avantajada. Neste dia resolveu ir à feira e como a sua bota soltara o solado (unha de fome que era), ao invés de comprar uma nova, emprestou uma usada do amigo Saracura, e mesmo sendo dois números menor, ele dobrou os dedos, enfiou o pé e saíu caxingando feira adentro. Após sair olhando os preços de barraca em barraca, bateu de frente com o camelô e a sua cobra jiboia.

– Se “aprochegue cumadi”, se “aprochegue cumpadi” quem vai querer, quem vai querer… está acabando… – Ao ver aquela figura circense, com a cobra pendurada no pescoço falando no megafone, não foi que João Seboso achou a coisa melhor do mundo?  – Quem vai querer? Promoção… pague duas e leve três banha milagrosa de jiboia das Oropas é só pagar e levar… – Boquiaberto, João Seboso se esqueceu do mundo. Ficou horas rindo das maluquices do camelô e do calundu que a jiboia dava se enroscando completamente no corpo do caboclo. Ficou um tempão abobalhado olhando o propagandista, só voltou à realidade quando sentiu uma mão tocando seu ombro. Virou-se e deu de cara com um sarará miolo, alto, desajeitado, bigodinho aparado na tesoura, porém, muito bem vestido, trazendo pendurado nos braços alguns cortes de tecido.

– Com quem tenho a honra de conversar? – perguntou descontraidamente o caboclo. –  Cuma?!!! – Perguntou um sonolento João Seboso.

– Qual a graça do distinto cavaleiro? – Perguntou educadamente o mascate. João Seboso ainda olhou para trás para ver se tinha alguém perto dele. Mas, para o seu desespero, era com ele mesmo que o distinto cavalheiro queria falar.

– Ah… Minha graça é João Pires da Cruz, mas todo mundo me chama de João Seboso! É q’ueu num gosto muito de trocar de roupa, num sabe? Acho um exagero ficá trocano roupa toda hora, num sabe? E este povo daqui bota apelido na gente!

– Pois bem seu João – Bradou o camelô com voz firme. –, eis aqui o que um homem do seu nível precisa. Estou lhe oferecendo fazenda fina diretamente da Líbia, prontinha para o senhor fazer um terno elegante… e o “mió” … é tudo à preço de bananas! – Mal falou e já foi atirando o tecido nos peitos do matuto. – Dê uma olhada aí no produto. Coisa fina demais. – Oxen, isto não é para mim não sinhô, sou “home” de poucas posses! No momento, não tenho capacidade de adquirir estas fazendas não. – Falou e foi tentando se desenvencilhar do mascate, mas foi seguro pelo braço. – Oxente, para que este avexo todo? Num se avexe não, o senhor está em boas mãos. Diga aí quanto vale este corte de fazenda? Se não quiser fazer um terno mande fazer um lindo vestido para sua senhora. E mais, temos também o pano do momento, o tecido americano apropriado para calças curingas, imagino que o senhor deva ser pai de alguns bacorinhos, né? Bote preço aí, bote! São três lotes de fazenda importada e vou lhe fazer um precinho camarada porque fui com a cara do senhor…

– Oia moço… – Suspirou quase perdendo a paciência. – O senhor entende que sou um pobre remediado que ganha o pão de cada dia matando porco? Eu nunca usei terno na vida, isso é coisa pra delegado e “dotô”.  Eu gosto “mermo” é de andar rasgado, “ocê intende”? Vá vender pra outro, vá!

– Compre pra fazer vestido para a sua senhora…

– Não sou casado, não tenho senhora e nem bacorinhos. Passar bem! – Falou tentando sair e mais uma vez foi seguro. – Oia seu João… – Jogando-lhe um corte de fazenda novamente nos peitos. – Pague dez minreis e leve todos estes tecidos, chegaram diretamente do Líbano de navio…

– Quem sou eu pra ter dez minreis! O Sinhô ficou é maluco! Quero isto não!

– Então fale quanto dá, ué?! Afinal de contas estou conversando com um homem ou com um saco de batatas? Você garante as calças que veste?

– Não quero isto não! – Falou quase gritando. – Vá vender isto para outro! – tentou se desvencilhar do mascate, tropicou nas butinas e só não deu de cara no chão enlameado porque se agarrou à barraca que achou pela frente.

– Se segura seu João senão o senhor cai! – Reliou o mascate recompondo o açougueiro. – “Istô” com uma leve desconfiança que aqui na Santa Cruz os “home” num garante as “carças” que veste não! –  Ao ser provocado João Seboso sentiu o sangue ferver, virou-se vermelho igual pimentão, já com a mão na sua inseparável peixeira que trazia escondida atrás do “currião”.

– O Sinhô está dizendo que João Pires da Cruz num é “home”?

– Se fosse homem botava preço nos cortes de fazenda, ué!

– “Ancê” acha que eu tenho dinheiro sobrando para comprar pano?

– “Intonce” bote preço, ué…

– Num quero não. Num gosto de roupa, não gosto de pano, não vou comprá e pronto! – Falou pra lá de irritado alisando o cabo na velha faca.

– Diga pelo menos quanto vale o tecido, homem! – Insistiu o mascate.

– Rapaz, pra “ocê” me “deixá” em paz ofereço dois contos! – Falou João sem imaginar jamais que o camelô aceitaria a sua proposta.

– Pois o tecido é seu. Agora sim, “ancê” mostrou que é homem de palavra. – Falou o mascate jogando o tecido no colo de João Seboso que completamente escabreado foi saindo de fininho.

– Eu “istô” brincando, num quero não! – Falou com um sorriso desbotado.

– Você não falou que era homem? Não deu a sua palavra? E agora está querendo mijar pra trás? Que diabo de homem é você? – Provocou o mascate fechando a cara. – O senhor garante ou não as calças que está vestindo?

– Mas não tenho este dinheiro todo aqui, agora!

– Quanto o senhor tem aí? – Perguntou o mascate.

Meio afobado João Seboso coçou de um lado, coçou do outro, tirou um dinheirinho embolado das meias, puxou outra parte do bolso, o que tinha mochilado na algibeira e somando tudo deu pouco mais de um conto.

– Oí para senhor vê. Não dá nem dois. – Falou achando que estava livre do mascate. Mas, surpreso, viu o mulato arrancar-lhe todo o dinheiro embolado das mãos. – Tudo bem…  tudo bem… quando eu voltar aqui “ancê” me paga o restante. – Falou, jogou os panos nos braços do matuto e envultou no meio da multidão.

– Peraí, peraí… – gritou João Seboso atordoado, sem saber o que fazer com o tecido. O mascate desapareceu em meio ao aglomerado de pessoas.

Um João embriagado e choroso, sentado no balcão de madeira da venda de Saracura foi à atração daquela tarde. O dinheiro de fazer a feira da semana foi levado pelo espertalhão. Os fregueses pediam para João repetir a história e riam de doer à barriga. À medida que contava, enchia a cara e chorava igual uma criança. Penalizados, os amigos fizeram uma vaquinha e restituíram a grana perdida para que João pudesse fazer sua feirinha. Saracura reuniu uns amigos, armaram-se e saíram em mutirão em busca do mascate marreteiro, pretendiam tomar o dinheiro e lhe aplicar um corretivo, porém, quem disse que o acharam? Encontram foi mais duas ou três vítimas lesadas pelo espertalhão. Cortava o coração verem aquelas pessoas chorando, sem saber o que fazer com a peça de um tecido de péssima qualidade, adquirido por uma fortuna.

Deste dia em diante, João Seboso aprendeu a lição. Nunca mais foi à feira, deixou de ser sovina e sempre que via um mascate, passava bem longe do sujeito.

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e escritor

Cândido Sales, Bahia. Quadras de novembro de 2024.

Crescente de Primavera.