– Tá vindo um carro desembestado atrás da gente, João! Não deixa passar não! Soca o pé neste baqueleleixo, vamos fazer eles comerem poeira. – A voz trôpega de Junão indicava o nível alcóolico que o seu corpanzil armazenara naquele tarde.
– Passa nada! Quem é ele para passar! – Dizia João da Caçamba, mais vermelho que um peru empurrando o pé no velho baqueleleixo emprestado de Zezim Bonifácio. Foram mais de meia hora de perseguição, João desembestado, curvando perigosamente pela estrada acidentada e Junão morto de bêbado monitorando o carro perseguidor em um nível de exaltação que metia até medo.
– Olá ele, olá ele. Tá vindo, João. Senta o pé! – Estamos em 1995 e pra lá de “medicados”, voltávamos do Porto à noitinha, logo após uma cantoria do violeiro Billy Roger da Viola. Eu vinha ao lado do condutor aloprado, morrendo de medo, procurando controlar os nervos enquanto Junão, sentado na parte de trás do veículo, tocava terror no condutor. – Olá ele lá, João. Tá vindo logo atrás da gente. Deixa ele passar não! Aperta o pé neste baqueleleixo! Aqui você não passa, “fí-de-uma-égua”! – Eu olhava para trás e por mais que eu quisesse, não via absolutamente nada. Aquela correria toda, o baqueleleixo voando por cima dos buracos, uma subida aqui, um desfiladeiro ali, uma derrapagem acolá, o cano de descarga fazendo um barulho ensurdecedor e João no volante parecendo até um piloto de fórmula 1. Quando pisava no freio, Junão gritava ofegante:
– Olá ele, olá ele… eu vi o farol, está perto da gente. Aperta aí João!
– Deixar que carro passar, Junior? Não estou vendo ninguém atrás da gente. Você está tendo é alucinação! – falei preocupado. – Que carro é Júnior? – Perguntou João! – Não deu pra eu ver direito não, eu só vi o farol! – Respondeu Junão. – Apôis, vamos ver se ele dirige melhor que eu? – Perguntava João empurrando o pé no acelerador. Este foi o dia em que por pouco não morremos todos, com um carro caindo aos pedaços, andando a oitenta por hora em uma estrada de chão pra lá de esburacada. Ao chegarmos à entrada de “Candin”, João deu um cavalo de pau, o carro estancou e ficamos cinco minutos esperando o carro imaginário que nos perseguia. “Os faróis” que Junão via no breu da noite era a lanterna quebrada do próprio carro. Quando João freava, a luz traseira acendia e Junão “bebão”, imaginava ver um carro nos perseguindo. Viemos do Porto até “Candin” fugindo de um carro imaginário.
Este era um tempo que sempre andávamos os três juntos, o que pra mim era ótimo, pois sempre rendia boas histórias. Conheci Junão em 1980 e o achava um “encrenquerim disgramado”. O cara adorava uma boa confusão. Estudava no Colégio Orlando Spínola e um belo dia estávamos fazendo uma prova final de Contabilidade Geral, ministrada pelo então professor Amilton Fernandes, quando uma explosão digna de um atentado sacudiu literalmente a sala que estávamos. Devido à demanda de alunos, a administração foi forçada a construir um puxadinho que serviria de sala extra ao lado da nossa, foi exatamente nesta sala vazia que a turma colocou a bomba que deixou o alunato à beira de um ataque de nervos. Pós-explosão foi aquele fumaçê, telhas voando, uns gritando, gente desfalecida conduzida às pressas para o único posto de saúde que existia na cidade e Junão e a sua trupe reliando do sucedido em pleno pátio do colégio. Confessaria tempos depois que ele e alguns amigos foram os autores do “pseudo-atentado”. Disse que aquilo foi feito por acaso, deram uma bistunta, jogaram a bomba e esperaram o caos! Achei aquilo de uma idiotice indescritível. Junior era um tímido que bebia pra ficar alegre. João era um falso tímido que ficava bêbado para filosofar, parecia os antigos filósofos grego.
João da Caçamba chegou aqui ainda menino. Como vinha da roça, chegava na feira de “Candin” ao lado do seu falecido pai, se ajoelhava e pedia a bênção para todo mundo que encontrava pela frente. Bastava o pai parar para conversar que João, botava os joelhos no chão e falava: – “Bênça Padim!” – Ao tempo em que estendia a mão. Demorou para entender que não se devia pedir a bênção para qualquer um.
– Deixa de bestagem, Joãozim! Tá ficando aluado? Quer que o povo descubra que você veio da roça? – Ralhava o pai envergonhado. Pouco tempo depois, o menino bobinho que viera da roça se transformaria no “Rei da noite”. Durante o dia trabalhava na “venda” de seu Galdino – que era o seu tio – e a noite, assim que seu caminho se cruzou com os de Almir (que trampava a noite inteira na Lanchonete de Vavá Porto), o roceirinho virou o capeta! Ele e “Mimi Gato” botaram literalmente fogo na cidade. De madrugada cada um abria um litro de canjebrina e a noite ficava pequena para a quantidade de algazarras que faziam, sempre rodeados das mais belas “damas-da-noite”. Almir e João pintavam o sete em plena madrugada.
João era pacato e reliento. O cara gozava até das próprias mancadas. Era o oposto de Junão que era nervoso feito o diabo e pra lá de resmungão. Às vezes deixava a bebida para navegar em “águas desconhecidas”. Quando isso acontecia, ficava louco de pedra. As coisas que ele mais amava na vida era a sua mãe Josina e o seu papagaio Godofredo. Certa feita ele se envolveu com uma trupe da pesada e após adquirir alguns gramas de um certo “produto”, demorou pra pagar e a “turma da pesada” foi lá e sequestrou o pobre do Godofredo. Junão por pouco não ficou depressivo, só melhorou quando conseguiu pagar o resgate do pobre papagaio.
Agora ele se superou mesmo quando voltamos a emprestar o baqueleleixo de Zezim e saímos “cantando reis” pela cidade. No Célio Alves, eu e João ficamos num barzinho enquanto Junão saiu empurrando o baqueleleixo que só pegava no tombo. Depois de esperar exaustivamente por Junior que não aparecia, eu e João (que éramos vizinhos) subimos pra casa na base da canela. Assim que entrei no banheiro, antes mesmo de abrir o chuveiro, alguém chegou esmurrando violentamente a porta. Saí de toalha e dei de cara com Ludovico dos Óculos, o especialista na arte do mal agouro! Chegou, me olhou e soltou:
– Velho, Junão passou por cima de uma menina lá na rua larga que não sobrou nada. – Botei as mãos na cabeça, afinal de contas eu era o responsável pelo carro, que sequer tinham documentos, e para piorar ainda tinha Junior bêbado na direção. Fiquei sem chão! – E ele? – perguntei. – Cadê ele? Está bem? – Sei lá. Largou tudo e correu! – respondeu Ludovico com um inenarrável prazer. – Olhei de longe a garotinha toda muchilada debaixo do carro! Não tem como sair viva de um acidente daquele! – Fiquei perplexo. Segundo o relato de Ludovico a coisa tava feia. Neste ínterim o telefone tocou (na época só existia o fixo). Era meu amigo Gereba trazendo as últimas notícias do sucedido. Na verdade foi uma garotinha de bike que batera na traseira do carro que Junão dirigia. Tivera apenas algumas escoriações. Gereba topou por acaso com Junior fugindo da cena do crime. – Calma aí, Junior, eu vou lhe ajudar. Vamos socorrer a vítima! – Quem disse que ele quis ir? Desembestou ladeira acima arrastando a sua indefectível alpercata de couro, com o grosso cordão de ouro chocalhando no pescoço, fazendo um barulho disgramado…
– Não posso, Gereba! Não posso! Eu tenho passagem, eu tenho passagem, eles vão me prender! – Gereba acudiu à garota e a levou para hospital desapontando completamente o secador Ludovico. Tudo foi resolvido. Naquela noite Junão não pregou o olho, temendo a chegada da polícia, se escondeu debaixo da própria cama. Como nada de mais grave aconteceu na noite, Junão se levantou no dia seguinte todo escabreado e desceu para o trabalho só esperando a bomba. Para surpresa dele quem apareceu por lá vivinha da silva foi a “atropelada”. Quem disse que ela quis remédios? Exigiu que Junão lhe fornecesse um quilo de carne todo santo dia pelo período de três meses. A danadinha queria mesmo era comer carne. Pra lá de aliviado, Junão topou o acordo na hora.
Eis que depois de algum tempo, se inaugura no Porto de Santa Cruz um barzinho pra lá de aconchegante. Como o povoado histórico era a nossa segunda morada “arribamos” pra lá. O boteco pertencia a uma senhora finíssima que servia entre outras guloseimas, um pirão de galinha caipira de encher os olhos. Ficamos ali na mesa do lado de fora debaixo de um pé de gameleira com aquela renca de galinhas ciscando no entorno. Conversa vai, cerveja vem e ao ver as penosas entrarem no banheiro, João deu um sutil toque de cabeça para Junior que mesmo embriagado captou a mensagem na hora. Entrou no banheiro, pegou mal pegado o galo de estimação da senhora, deu uma bela “garguelada no de cujo”, tendo o cuidado de tampar a boca do bicho para que ele não gritasse, e após dez minutos de bicadas, esperneadas, arranhões e esporadas, Junior pegou o bicho e sapecou contra a parede do banheiro, deixando o infeliz no chão tremendo mais que epiléptico. Assim que começou a escurecer a dona do boteco apareceu na porta chamando as galinhas e após acomodá-las todas no poleiro, constatou que faltava o seu galo de raça… – Vocês viram um galo pedrês por aí, meninos? – Eu e Odenir respondemos que não. Realmente não tínhamos visto. Desconfiada, a senhora entrou no banheiro e voltou com o corpo do galo completamente inerte, moído de pancadas e todo ensanguentado. Foi aí que testemunhamos a pobre senhora usar todos os recursos possíveis para salvar o pobre do galo. Respiração boca a boca, massagens no coração, alongamento nas pernas, beijos e até sopro de água gelada na cara do infeliz. Não é que o frango reviveu? Não só reviveu como voltou a andar. Parecia até um bêbado, cambaleando todo troncho, com o pescoço derreado para um lado e o corpo para o outro. João com aquele risinho irônico de quem fez alguma traquinagem, soprou sutilmente no ouvido de Junior: – Tu não presta nem pra matar um frango! – A dona do boteco entrou na cozinha e trouxe um prato enorme de frango cozido. Olhou bem para nós e falou com a voz mais doce do mundo:
– Tome meninos! Quando quiserem comer algum frango é só falar. Comam à vontade é por conta da casa! – Vocês estão pensando que João e Júnior ficaram constrangidos? Qual nada! Comeram com um apetite voraz e ainda pediram a pimenta, com a cara mais limpa do mundo como se nada tivesse acontecido!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
CSales. BA. Quadra de Março de 2023, Minguante de Verão.