Autor: Luiz Carlos Figueiredo
Sabe-se como, lá vinha ele. Andando lentamente, meio troncho, trôpego, cambaleante, em cima da faixa amarela do asfalto que pavimentava a rodagem BR-116 que ligava Nova Conquista à Divisa Alegre (marca divisória entre os estados da Bahia e dos Gerais). Carros passando à milímetro do corpo do jovem e magérrimo Língua, poeta extremamente respeitado aqui no nosso torrão. Aquele alvoroço todo, carro se desviando, carro parando, carretas furiosamente buzinando, aquela confusão toda e aquela figura esquálida avançando lentamente.
– Pelo amor de Deus, eles vão me atropelar! – Gritava ao vento enquanto uma voz na sua cabeça dizia: – Fique quieto, mantenha a calma! Este carro vai passar a 10 centímetros do seu corpo… Não saia da faixa, se sair você vai ser atropelado! – E assim, entre esporros dos motoristas, buzinações, desvios e freadas, o esquálido poeta seguia o seu rumo, andando tropegamente em cima da faixa amarela da rodovia mais movimentada do Brasil. Se esta atitude por si só já era uma proeza, o cara ainda estava completamente nu, mais pelado que filhote de caga-sebo! Sim. Língua caminhava pela pista completamente pelado!
Estamos nos meados dos anos 1970, os moradores de Nova Conquista tiveram o inenarrável prazer de ser apresentado à esta figura insana chamada Língua. Batizado como Isaías, o jovem do alto dos seus 7 anos de idade testemunhou incólume a morte a facadas do próprio pai bem no meio da feira livre da Divisa Alegre quando comprava baganas. Traumatizado, o garoto cresceu rebelde e introvertido. Posso afirmar – sem sombra de dúvida – que ele foi uma das criaturas mais loucas (e inteligentes) que já habitou este torrão.
Depois de morar por alguns anos na cidade de Belo Horizonte, sua família que tinha parentes por aqui, deu de desaguar por estas paragens bem na época que criamos o Grupo Teatral CAACS (posteriormente se transformaria no Arte & Manhas). Como ele também fazia teatro, acabou se aproximando dos artistas da cidade, em especial do poeta Jaivan Aciole e da minha pessoa. Além de conversarmos sobre artes cênicas, artesanatos, cinema e música, descobrimos ter em comum o inenarrável prazer de ouvirmos – tomando uma ou outra canjebrina – o Long Player “The Dark Side Of the Moon” do Pink Floyd.
Era muito comum nos sentarmos na porta da Prefeitura na Praça Moisés Felix, ali mesmo no calor da noite, contemplando as estrelas – em uma noite enluarada – ouvindo em um pequeno toca-fitas portátil este disco clássico, ao tempo em que imaginávamos apoteóticas viagens pelo cosmos, tendo como trilha sonora Money, Time e afins.
Língua era extremamente magrelo, parecia um índio tupi com os cabelos negros batendo nos ombros, andava saltitante pelas ruas vestindo uma velha e desbotada calça Lee (jeans bastante famoso na época) apertadíssima, acompanhada de um tênis “bamba” preto surrado e uma camisa Hering preta que ele não tirava nem com reza braba. Era um excelente artesão! Esculpia em questão de minutos lindas carrancas e quadros belíssimos. Tinha uma técnica tão refinada que usava para esculpir apenas um fundo de garrafa – que ele fazia questão de quebrar à vista de todos – e um pedaço de madeira criteriosamente escolhido! Era também um poeta extraordinário. Não foi que de uma hora para outra o cara não entrou em uma de trocar a canjebrina pela “Maria Joana”? Pois é. Fumou, gostou e a partir daí deixou até de comer para viajar na erva natural que passara a cultivar no fundo da sua casa com um cuidado digno dos produtores de hortaliças. O cara passou a fumar tanto que acabou surtando! Maconha neste tempo era coisa rara, só um ciclo muito pequeno fazia uso desta erva por aqui. Língua virou um mestre!
Devido à morte do pai, Língua crescera meio aéreo, tímido, meio abobalhado e às vezes até introvertido. Quando “medicado” deixava o recalque de lado e passava a ser loquaz e extrovertido. Em uma certa manhã quando eu me dirigia ao trabalho quem eu trombo na rua? Ele. Já rolava na cidade uns fuxicos que o nobre poeta tinha enlouquecido de vez e até pedras já andava jogando nas casas vizinhas, ao vê-lo vir em minha direção já me preparei para – caso fosse necessário – passar sebo nas canelas e cair na lapa do mundo. Para minha surpresa ele foi chegando e já foi me cumprimentando educadamente.
– E aí, carinha, tudo bem? – Antes mesmo que eu o respondesse já foi falando. – Meu irmão, estou fudido, cara! – Ficou alguns minutos me olhando de soslaio. Por motivos óbvios, percebi que ele já não mais tomava banho, usava as mesmas vestes ensebada e tinha um olhar perdido que só os loucos possuem. – O que houve, Língua? – Para que fui perguntar? Me olhou de cima a baixo e falou quase gritando: – Meu carinha, vou lhe falar… Estou passando uma fase terrível, meu! Os universitários entraram em minha cabeça, cara. Eles estão me controlando por computador. Eu tenho que fazer o que eles querem sob pena de levar choque elétrico o tempo todo, velho. Minha cabeça está cheia de fios invisíveis. Eu estou nas mãos dos caras, me tornei objeto de estudo deles. – À medida que ele ia relatando eu ia ficando cada vez mais embasbacado.
Na época Cândido Sales já tinha os primeiros universitários estudando na cidade de Soterópolis… Amâncio (falecido recentemente), Laudionor, Henrique (o poeta doutor), João Rielson, Alzino, Leonel, Miltinho irmão de Oriston (que também veio a falecer tempos depois) entre outros… Dentro da loucura turbinada com o uso excessivo das drogas potencializada com a falta de uma alimentação decente, o jovem poeta ficou louco de pedra. Neste tempo só sabíamos da existência de computador através de filmes de ficção cientifica como “2001 – uma Odisseia no espaço” de Stanley Kubrick. À medida que a conversa foi rolando eu quis saber o porquê de ele ter ido de Cândido Sales à Divisa completamente pelado, caminhando em cima da faixa amarela do asfalto? Língua contou que os “universitários controladores” exigiram que ele tirasse as roupas e andasse daqui até lá despido no meio do asfalto. Se saísse da linha levava choques violentos. Próximo à Divisa Alegre a voz o fez descer em um enorme barranco e se deitar em um ninho repleto de cascavéis, patronas, jaracuçus e pico-de-jacas. Dormiu em meio às cobras por uma semana. Depois disso ao adentrar pelado na Divisa Alegre foi linchado pela população que o moeu de porrada. Depois de preso por alguns dias e todo quebrado, foi deportado para Cândido Sales.
Depois de algum tempo se recuperando, Língua resolveu pesquisar quem era o homem mais valente da cidade, passando a andar sorrateiro em meio à noite e nas madrugadas como uma sombra, sempre observando as pessoas. Quem passava e o via, dizia: – Taí o doido!
Nos anos 1980, um dos comerciantes mais populares da cidade era Vavá, que também tinha o apelido de Lacraia. Trabalhava no seu velho caminhão comprando e vendendo farinha. Era um cidadão carismático e “conversadorzim” feito o diabo, só falava aos berros. Isto não o impedia de ser gente dina. Praticamente todos na cidade gostavam imensamente de Lacraia. Diariamente quando não estava no Supermercado Cocebe conversando com o proprietário Oriston, ele ficava um tempão no salão de “Véi Barbeiro” pilheriando. Adorava contar vantagens. Por só falar gritando, muita gente achava que o pacato Vavá fosse uma pessoa encrenqueira, Língua também.
O poeta ficou meses estudando Vavá, o seguindo sorrateiramente pelas ruas e vielas. Estudou todos os hábitos do comerciante. Levantava cedinho e quando Vavá saía para trabalhar ele o observava e em pouco tempo já conhecia todas as manhas e manias de Lacraia. Neste ínterim, foi no mato e retirou um bom pedaço de pau que depois de lavrado e polido se transformou em um cacete de todo tamanho.
Uma bela noite, depois de tomar todas e mais algumas, Lacraia retornava calmamente para sua casa quando foi surpreendido por Língua que o moeu – literalmente – na pancada. Bateu tanto que o pobre infeliz ficou em coma por mais de uma semana em um hospital de Vitória da Conquista. Ao ser preso, Língua (solto dias depois), confessou que os universitários através dos fios invisíveis e computadorizados ligados à sua cabeça exigiram que ele desse uma peia no homem mais valente da cidade, por isto, aleatoriamente escolhera Lacraia.
Uma semana depois, Lacraia acordou no leito do hospital e ao abrir os olhos deu com a pessoa de Oriston. Eles sempre foram muito amigos e ao saber da agressão, Oriston temeu que quando se recuperasse e soubesse do sucedido Lacraia fizesse a loucura de matar impiedosamente o pobre maluco, assim, se ajeitou carinhosamente perto do leito de Vavá e já foi logo falando:
– E aí, Véi, está bonzinho mesmo?
– Ái… – Falou Vavá com o corpo todo dolorido! – estou mais quebrado que arroz maranhão! – Tentou se virar para um lado, gritou, tentou se virar para o outro e gritou mais ainda. – Você sabe o que aconteceu? – perguntou Oriston todo preocupado.
– Fui atropelado, não foi? – perguntou Vavá com os olhos roxos, a cabeça inchada e a boca toda torta.
– Não Vavá, você foi agredido covardemente por um doido lá de “Candin”. Ele lhe deu uma violenta surra de pau!
– Foi mesmo, rapaz? Que diabo eu fiz pra este doido?
– Nada. – Respondeu Oriston. – Ninguém faz nada para doido. Ele endoidou e o primeiro que ele encontrou no caminho foi você e lhe desceu o cacete.
– Merda! – Respondeu Vavá! – E este doido mora onde?
Ao ouvir a pergunta, Oriston temeu pelo que imaginava e tentou convencer Vavá Lacraia a deixar aquilo pra lá.
– Vavá, você é um homem direito, trabalhador, pai de família… Deixa isto pra lá, meu irmão, deixa!
– Ele mora onde? – Insistiu Vavá!
– Porque você quer saber onde ele mora, por acaso está pensando em matar o pobre do doido? – Perguntou Oriston.
– Eu?!!! – Eu sou lá algum doido pra querer matar um demônio destes? Eu quero saber onde ele mora para quando eu o vir na rua, passar bem longe dele! Eu quero é distância deste satanás!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
CSales, Bahia. Quadras de Novembro de 2022. Ano da era cristã.
Primavera Chuvosa.