FUMA LÁ QUE EU FUMO CÁ!
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FUMA LÁ QUE EU FUMO CÁ!

FUMA LÁ QUE EU FUMO CÁ!

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Diante da violência que impera em nossa cidade nestes tempos, eu que sou das antigas, fico comparando a Cândido Sales de hoje com a dos anos 1970.  Pois é, houve um tempo que apesar de todos os pesares, nossa cidade era um sossego. Não foi à toa que em 1991, Rosemberg Oliveira e eu, compusemos uma música chamada “Cidade do Sossego” para ser trilha musical de uma peça teatral homônima.  Não que não existisse drogas naquela época, até que existia, só que não era pra qualquer um não, era um artigo seleto, coisa de bacana! Além de praticamente só existir a cannabis, só fumava quem podia. Era poético e romântico viajar pelo terreno exclusivo dos maconheiros daquele tempo.  Era um período em que os fumantes da cidade eram todos respeitáveis senhores, batendo ali na casa dos 40, 50, 60 anos. Eram comerciantes, empresários, militares, funcionários públicos, honrados pais de família que se encontravam sigilosamente na calada da noite em um local secreto para dar uma ou outra baforada. A coisa era tão sigilosa que existia na época apenas um único fornecedor…  Sival – o índio.

Este cara era gente finíssima! Tratava todo mundo com uma educação peculiar! Magro, alto, cabeludo, saltitante, loquaz, inteligente e bem-informado. Sival era o genro que muita sogra gostaria de ter. Era ele que mensalmente distribuía “o produto” para os respeitáveis cidadãos da cidade. Tudo na boca de zero nove e com um sigilo absoluto.

O Índio chegava de viagem, ficava vários dias curtindo nossa cidade! Leia-se: bebendo, jogando, cantando, frequentando os famosos cabarés que existiam na época, e entre um romance ou outro, saía distribuindo a erva prensada enquanto navegava sorrateiramente nos “vai-e-vem” dos quadris de uma ou outra jovem “mariposa”.  O ponto preferido de hospedagem dele era o Lírio Hotel de Seu Lindolfo e Dona Lu. Adorava ficar às margens da Rio-Bahia. Certa feita arranjou até um tumba com seu Lindolfo e só não matou o velho à traição com uma foice, devido à providencial intervenção de Diacísio da Rocha Viana que apareceu entre a espingarda de dois canos de seu Lindolfo e da foice pra lá de amolada de Sival já devidamente pronta para golpear o dono do hotel.

As três coisas que o índio mais gostava na vida, era cachaça, cigarros (não necessariamente o industrializado) e… mulher. No período em que transitava pelas estreitas ruelas do recém-emancipado povoado, dificilmente não se via o cabeludo sem um copo de cerveja na mão ou atrelado à sinuosidade de algum corpo jovem feminino. Mesmo quando se sentava em uma mesa ou outra para disputar uma partida de 21 tinha sempre uma mucama ao lado dele. Quando, por acaso, o Índio ia até Soterópolis buscar a “Maria Joana” e demorava um pouco mais que o normal a “clientela vip” da cidade faltava enlouquecer. Era uma chiadeira disgramada! – Ah, meu Deus do céu! Precisa demorar tanto?

Certa feita o Índio chegou à cidade munido do seu inseparável tiracolo de couro e antes mesmo de distribuir o esperado conteúdo para a sua seleta clientela, butucou os olhos na recém-chegada Madalena, uma linda capixaba de olhos negros meio “ajaponesados” e cabelos longos encaracolados. Madá – como era conhecida – era linda de doer… meio baixinha, 18 aninhos de idade, meiga e recém-contratada para desenvolver o ofício de “mulher-dama”. Quando Sival butucou os “zóios” na garota saiu completamente do prumo e totalmente sem fôlego, se embasbacou de vez com a sinuosidade que moldava o corpo da menina. A moçoila era mais turbinada que halterofilistas americanas e tinha cada lapa de coxas que chegava a ofuscar as vistas! Cinturinha fina, um par de seios querendo saltar do generoso decote e uma sensualidade de fazer defuntos espumar os cantos da boca.  Sival ficou tão enlouquecido que seus cabelos cortados em forma de sopeira ficaram mais arrepiados que pelo de gato diante de pitbull. Se dirigiu cortesmente à garota e ao ouvir a voz dela jurou para si mesmo que aquela seria a companheira dele para o resto da vida. A partir daquele momento, as coisas desembestaram em uma velocidade estonteante. Bastaram um cheiro no cangote, um aperto nas nádegas, um “suspiro arrumado” e dois dedos de prosa para estarem nus como vieram ao mundo no rio da “areada” em um amor tão violento que relegaria Romeu e Julieta à simples coadjuvantes.

Na época este cambaleante Rio Pardo era espetacular! Tinha uma fartura enorme de água, cachoeiras de todos os tipos, corredeiras, quedas d’água e uma diversidade tão grande de peixes que não faria vergonha a nenhum São Francisco. Isto sem falar no cenário natural, composto de um verde estonteante, decorado com cada lapa de lajedo que parecia até que estávamos dentro de alguma película de caubói italiano. Como Sival não era de perder tempo, logo se entrelaçou fogosamente com a linda capixaba e como dois animais em meio à natureza, trouxeram à tona todo o desejo reprimidos daqueles corpos. Prolongadas carícias, gritos abafados, sussurros domados, gemidos incontidos, tapas moderados, mordidelas delicadas, e sensuais beliscões, passando imediatamente para mão naquilo, beijo naquilo, aquilo naquilo e entre soluços, choros e suspiros, o incontrolado prazer se fez presente em meio às generosas baforadas da mais tradicional canabis – importada diretamente do Recôncavo baiano.

O tempo passando bem lentamente, os passarinhos cantando em uma linda sinfonia, as aranhas tecendo as suas teias, as nuvens tomando as formas mais variadas, e ali, interagindo com a natureza, completamente pelados e deitados sobre os lajedos, o casal se deliciava com a visão dos peixes pulando da queda d’água que servia de cenário para dois excitados corpos, combinando completamente com o barulho da água que deslizava sutilmente pelas rochas, produzindo uma excitante melodia, embalando o inenarrável coito dos amantes .

Enquanto Sival e Madá procuravam insistentemente encontrar a porta literal do paraíso, nas estreitas ruas de “Candin”, dois jovens rebeldes e recém-admitidos ao famoso e seleto clube dos “Vaporadores de Maria Joana” vagavam alucinados, doidinhos para dar um pega na erva importada.

– Que merda, Zelão. Cadê ele? Onde se meteu este cara? Tô “doidim” pra fumar um. A garganta chega tá seca!

– Calma, Marcolino! Não se afobe, meu irmão! Se ele chegou deve estar em algum lugar. O importante é que a erva já está descansando, prontinha pra gente dá um tapa. Só temos que descobrir por onde anda o pleibói e comprar a parte que nos cabe neste latifúndio, morou? É assim que o sapo canta na lagoa, meu cumpadi! É… podes crer…

Como vício é uma desgraça, morrendo de vontade de apertar (e acender) “unzinho”, Zelão e Marcolino, jovens e impetuosos, resolveram ir até a “montanha” – no caso, Sival – para ver se o cabeludo adiantava uma ou duas trouxinhas para que eles pudessem matar a incontrolável vontade que dilacerava os seus cérebros.  Depois de se informar sobre o destino do “bon-vivant” os impacientes desceram com destino ao rio para ver se encontravam o famoso fornecedor. Depois de quase uma légua de caminhada quase caíram de costas. Ali, diante dos olhos que a terra haveria de comer, contemplaram o jovem casal entrelaçado fogosamente em cima dos lajedos, desenvolvendo uma sequência de movimentos tão coordenados que pareciam até serem ensaiados. Boquiabertos, Zelão e Marcolino até se esqueceram do que tinham ido fazer ali. Ficaram babando diante da estonteante visão da linda baixinha capixaba. Depois de esperarem a “conclusão da consubstanciação” os jovens botucaram os “zóios” no famoso tiracolo de couro, que alheio ao sucedido, “dava sopa” solitariamente acomodado em uma pequena fresta do lajedo!

– Carái, Zelão! Tá vendo o que estou vendo?

– Vixe, Marcolino! Tá pensando o que estou pensando? – Indagou Zelão. Um olhou para o outro, o outro olhou para o um e sem dizerem uma palavra rastejaram sorrateiramente como cobras até o artefato de couro e diante dos uivos e gemidos da garota, abriram o alforge e desembestaram ladeira acima levando um pacotão de ervas selecionadas. Zelão (o mais esperto) ficou incumbido de guardar a “mercadoria” que foi devidamente enterrada no seu quintal escondida em invólucros de matéria plástica.

Depois do êxtase e entre um beijo e outro, Sival percebeu que o cigarro havia acabado e resolveu dar uma relaxadinha fumando mais um. Completamente pelado se dirigiu ao local onde deixara a bolsa e ao meter a mão na loca descobriu que o seu tão precioso material estava bem longe dali.

– Benzinho, cadê meu haxixe?!! Você pegou, porra?

– O que?!!! Eu? Não. Procure direito, você colocou aí.

– Ôxe! “Taquinão”! Alguém roubou! Foi você, sua fila da puta? – antes mesmo de Madô responder já foi caindo no cacete! – Me dá meu haxixe porra!

– Tá maluco, benzinho! Não fui eu não. Alguém roubou! – Furioso o cabeludo moeu literalmente a garota na pancada! Bateu com uma fúria indescritível. – Sua ladra safada! Fala onde você escondeu, fala! – A coitada apanhou tanto que ficou com o rosto inchado por duas semanas.

Depois de perceber que Madô era inocente, Sival voltou rapidamente à Soterópolis para buscar uma segunda remessa e deu o azar de ser preso com a boca na botija. Na cadeia, virou celebridade, chegando inclusive a lançar o livro em quadrinhos: FUMA LÁ QUE EU FUMO CÁ! Livro este que fez um sucesso desgraçado em Cândido Sales, foi intensamente vendido na feira livre a preços módicos para uma legião de fãs que Sival adquirira por aqui, cuja última página do livro ensinava milimetricamente como tirar o máximo de uma bituca!

Com o “pleibói” preso e incomunicável, Zelão e Marcolino distribuíram tranquilamente a erva para os antigos clientes de Sival pela metade do preço, obviamente, depois de ficarem com mais da metade do pacotão para uso e consumo próprios!

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

CSales, Bahia. Quadra de Setembro de 2022. Cheia de Inverno.