Joshua nasceu Josué, e era filho de seu Joaquim de Albertina. Era o terror da região. Com doze anos de idade o moleque já mostrava que boa coisa não viria a ser na vida. Ainda adolescente ficou fascinando com Ozzy Osbourne (líder da Banda de Heavy Metal, Black Sabbath) decepando com uma mordida certeira, a cabeça de um morcego vivo durante um show. Ao assistir o vídeo, o moleque ficou completamente fascinado. Foi a partir daí que decidiu que despertaria e assumiria de mala e cuia o roqueiro adormecido que existia dentro dele. Ainda adolescente testemunhou o “afloramento” da sua porção rebelde. Sempre que surgia alguma oportunidade, ele quebrava os dentes de algum coleguinha da escola ou cuspia com desprezo no rosto da diretora. Atitudes que custavam caro aos seus pobres pais, que, constantemente eram intimados a explicar o comportamento violento e psicopata do filho. Vira e mexe lá estava Joshua ensandecido e incontrolável quebrando à torto e a direito tudo o que encontrava pela frente, vitrines de lojas, janelas de residências, para-brisas e faróis de carros, cadeiras do colégio e quando topava com algum gatinho (ou até cachorrinho) inocente que dava o azar de lhe cruzar o caminho, botava fogo nos bichos e saía dando risadas. Isto quando não era detido em algum mercado da cidade por tentar subtrair levando escondido na algibeira uma barra ou outra de chocolate laka, chegando ao extremo de amarrar um pobre paraplégico em sua cadeira-de-rodas e soltar ladeira abaixo. Sempre que os pais o chamava para ter uma conversa séria, o moleque virava o capeta e saía xingando todo mundo. – Meu filho, meu filho! Toma termo! Deixa de fazer a gente passar tanta vergonha! – Falava com o fiapo de voz o seu velho pai, o comerciante Joaquim. – Sua mãe está doente, se você não acabar com estas lambanças você vai matar ela. Mude este seu jeito de ser, se comporte!… – Eu não estou nem aí pra vocês! Este sistema é podre e caótico! Quero que ele imploda e leve todos vocês à tiracolo! – Dizia com requintes de crueldade. Nesta altura, além de integrar uma banda de rock chamada FILHOS DO MAUSOLÉU, também gostava de sair pelas ruas trajando roupas pretas de couro, com um corte punk no cabelo (pintado de lilás), tendo como adereço dois ou três alfinetes enfiados nos beiços, ventas e orelhas, sem falar que era constantemente despertado dormindo nas lápides do cemitério municipal que ele assumiu como sua morada. Era lá que fazia as reuniões da sua banda, levando os três únicos integrantes para fazer um churrasco nas noites de Halloween, em cima da lápide de Antônio Pintado, um falecido que a população jurava ter virado lobisomem. O quarteto usava o fêmur do defunto como espeto para assar os testículos de boi adquiridos no açougue de Nhô Lau. Josué (agora com o nome de Joshua) fazia questão de expelir diariamente toda a sua revolta para com este mundo (que ele considerava vil e mesquinho) e com todos que o habitavam. – Eu detesto esta cidade, eu detesto este país, eu detesto este povo, eu detesto este mundo! – A principal “diversão” de Joshua era sair humilhando gays, lésbicas, gordos, nordestinos (como se não tivesse nascido aqui), negros e mulheres. Sempre que os FILHOS DO MAUSOLÉU se apresentava na região cantando suas músicas machistas e sexistas, o que deveria ser uma festa, virava uma zona. Porrada, tiros, agressões verbais, quebra-quebra, o diabo a quatro. Se tinha briga, lá estava Joshua sempre munido do seu par de soqueiras importadas – moendo os oponentes na pancada. As apresentações dos FILHOS DO MAUSOLÉU trazia no mesmo pacote, raiva, gritos, uivos, socos, hematomas e desmaios. Joshua e a sua trupe polarizavam apoteóticas batalhas entre roqueiros e pagodeiros (geralmente, moradores das cidades onde se apresentavam). Depois do tumba era muito fácil encontrar o jovem vocalista cheio de escoriações, dormindo o sono dos justos em cima de alguma carneira do cemitério local, sempre empanturrado de cachaça, fumo, drogas e rock n’ roll – não necessariamente nesta ordem!
Eis que um belo dia, após voltar da maior apresentação que o grupo já fizera lá pelas bandas dos Gerais, Joshua resolveu cumprir o ritual de sempre, sair andando sem destino pelas estreitas ruas da cidade, visando espraiar a cabeça e, obviamente, reduzir um pouco a sua ressaca crônica, depois de virar a noite, tocando. Quando começou a andar todo trôpego e desanimado, o roqueiro não deu de olhar bem dentro dos olhos de Lurdinha que também caminhava naquele justo momento? Lurdes era uma jovem e atraente pernambucana que morava naquela rua, e ao trocarem um olhar inocente, foram mordidos pelo “bichinho do desejo” se apaixonando loucamente. Baixinha, sararazinha, lindinha, sorridente, toda arrebitadinha, cabelos duros e boquinha de boneca, apesar de novinha, a jovem era extremamente sapeca, como era filha de Severino Amolador e de dona Florisbela Arcanjo – famosos por serem apenas pernambucanos -, a menina já havia perdido uma renca de pretendentes, ninguém se habilitava a namorá-la. Quem seria doido de flertar com a filha dos pais mais valentes da região? Não foi que após Lurdinha butucar os dois “zoiões” negros naquela figura esquálida, desengonçada, com cara de espantalho e branca igual cera de vela, o seu pobre coração não disparou em um frenético “baticum” digno de bloco afro? Pois foi. Não demorou muito para estarem rolando nos sedosos e confortáveis lençóis de cambraia da cama da moça. Donzelo, Joshua ficou embasbacado com a experiencia da jovenzinha que na cama matava mais que cobra de lajedo. A moça levou o encrenqueiro por caminhos nunca “dantes navegados”. A partir daí, Joshua já chegava dos shows correndo diretamente para os braços – e para outras partes do corpo – de Lurdinha. Em menos de três meses e no auge da pegação, o famoso roqueiro foi oficialmente comunicado que iria ser papai… Ah!!! Pra quê? O jovem se retou, saiu completamente do prumo, endoidou de vez, bateu a cabeça na parede, ameaçou quebrar Lurdinha no pau e diante da fama da família se viu obrigado a recuar. – Você está louca, garota! Eu sou lá homem de colocar filho neste mundo cão? Nunca trabalhei na vida, não sei dar com um prego em uma barra de sabão, a grana que ganho com a banda não paga nem minhas roupas, como vou sustentar uma família? Você ficou biruta! Aborte imediatamente este rebento ou ele vai nascer sem pai, tá ligada? Isso sem falar que você vai ficar gorda e feia e eu detesto gente gorda! – Ah, é?! – Falou a confiante pernambucana. – Apôis se você não assumir este filho, meus pais vão arrancar e esticar o seu couro inteirinho bem no meio da feira pra todo mundo ver. Você não conhece os meus pais, né? São pernambucanos, viu?! – Ameaçou e saiu tranquilamente deixando “uma pulga” na imensa barba que o roqueiro cultivava. Não se passara nem três meses completos e a barriguinha de Lurdinha ficou mais cheia que bexiga em aniversário de criança. A pedido do rebelde, a jovem ainda ficou um tempinho disfarçando, tendo que usar cintas para esconder o volume. Alas que o velho pai rabugento descobriu que a volumosa pança da sua querida filha não tinha só as lombrigas geradas pelas águas do Rio Pardo, mas, outra coisa pra lá de suspeita. Desconsiderando os gritos desesperados da mãe, deu logo meia dúzia de cascudos na filha e antes de fazer a pergunta que ressonava por todo o bairro, Lurdinha deu com a língua nos dentes: – Quem me tirou de casa, pai…foi o safado do Josué Roqueiro! Eu nem queria, porém, ele me ludibriou… E falou que não vai casar não. Prefere morrer que ser pai do neto do senhor. Ele é todo metido a valente! – Botou a pilha que faltava deixando o pernambucano mais vermelho que pimenta-dedo-de-moça! No ato, o velho armou-se do seu fuzil de estimação e após se informar com a filha onde residia o “meliante”, montou em uma velha bicicleta e se dirigiu ao velho galpão onde a banda de Joshua ensaiava. É bom que se diga que após Severino arrombar (na base do chute) a reforçada porta de ferro da garagem que servia para ensaiar a banda, bastou o roqueiro olhar para o seu futuro sogro (munido do seu inseparável fuzil “Papo-Amarelo”) completamente ensandecido, para já ir se ajoelhando (diante dos olhares estupefatos dos companheiros de banda) e mesmo com toda a sua gana e fama de valente, Josué levantou logo foi os braços, gritando em alto e bom som que não restasse nenhuma dúvida: – Pera lá seu Biu, Pera lá! Eu sou da paz e avesso à violência! Eu me caso, eu me caso, não carece desta violência toda não, por favor! Baixe a arma! Pode marcar a data que eu juro que me caso com a sua filha. Inclusive, já comprovaram cientificamente que eu serei um bom pai para o seu neto. Pode marcar a data que eu me caso, eu adoro bebês.
Um padre chamado às pressas, um delegado como garantia e meia dúzia de testemunhas depois e logo o jovem e rebelde roqueiro passava a ser o principal “secretário” dos pais de Lurdinha carregando madrugada à dentro, sacos e mais sacos de feijão, milho e farinha nas feiras livres da região. O rock, a revolta, a arrogância e a agressividade do “Rebelde sem Causa” foi rapidamente tangido para o ralo. Nos dias de hoje ainda é possível se ver nas feiras da região, a agora não tão exuberante Lurdinha, com um embornal enorme pendurado no pescoço, dando um duro danado, vendendo aos gritos de “aqui tem promoção”… farinha, batata e jerimum (deixando explícito quem verdadeiramente é o chefe da família ali). Enquanto a garota rala em busca do sustento da sua prole, vê-se em um cantinho da barraca, todo nervoso e escabreado, o outrora roqueiro rebelde e brigador, balançando sutilmente no carrinho de neném o seu filhinho de alguns meses – ambos usando camisas negras da banda Black Sabbath.
– Bilu, bilu, biluzinho… é o meu roqueirinho, é? Fala papai, fala!
Enquanto ele se entretém dengando o feliz filhote, os demais componentes da banda riem escondido, olhando sutilmente pela fresta da barraca.
Sabe qual o moral da história? Na vida não basta apenas ser pai, tem que participar!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta.
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Outubro de 2023.
Minguante de Primavera.