Autor: Luiz Carlos Figueiredo
A energia elétrica foi descoberta acidentalmente no ano de 1800, por um caboclo italiano chamado Alessandro Volta. Ele estava desenvolvendo as baterias conhecidas como “pilhas voltaicas” através de camadas empilhadas de zinco e cobre, intercaladas com papelão embebido em água salgada. Ao conectar uma extremidade à outra através de um fio de cobre, o circuito foi fechado e o fio começou a brilhar gerando a primeira luz elétrica da nossa história. A contrapartida desta descoberta desencadeou a morte das trevas e consequentemente dos seus habitantes, tais como os mitos, visagens e livusias.
No ano da graça de 1944, o que mais existia no Porto de Santa Cruz eram estas latumias. O povo morria de medo de tudo quanto há. Nesta época, apesar da Igreja do Bom Jesus ser localizada nas terras que futuramente seria o município de Cândido Sales, o fluxo do movimento era concentrado do outro lado do Rio Pardo, terras que hoje pertencem à cidade de Encruzilhada. Assim, açougues, restaurantes, “casa de diversão” e inúmeros botecos compunha a paisagem deste território.
Neste tempo, a escuridão fazia que o temor imperasse em meio à população que acreditava em praticamente tudo. Vira e mexe chegava o relato de algum sucedido, sempre tendo como protagonistas algumas livusias. Este era o tempo em que o Neguinho Jiló era um dos mais conhecidos moradores do povoado, considerado pela população como o “levador oficial” de recados e “tomador legal” de esporros. Cabeça seca, magérrimo, saltitante, extremamente comunicativo e mais veloz que preá assustada, Jiló trabalhava de sol a sol, sempre prestando relevantes serviços para a comunidade local. Quando a noite chegava ele era o primeiro cliente a se sentar no enorme balcão de madeira do bar de Saracura. Chegava e astutamente ficava só esperando os “bêbados” lhe pagarem uma ou outra talagada de canjebrina. Bebia tanto que saía do bar completamente moqueado. Eis que uma bela noite, lá ia Jiló como de costume, depois do canto do bacurau, tropicando nas próprias pernas e quando foi passar em frente à igreja do Bom Jesus topou com uma visão angustiante de uma senhora de vestes finos e distintos, com a cabeça estalando em labaredas, flutuando pra cima e pra baixo. Desesperado, o neguinho encheu os pulmões e botou a boca no mundo:
– Me acode, São “Bertolambeu”, “istô veno u’a visage”! – Sem força para correr o jovem Jiló testemunhou com os olhos que a terra haveria de comer a prepotente senhora Sebastiana, viúva que se suicidara há alguns meses em pleno centro do povoado, com a cabeça completamente em chamas gritando e voando feito uma folha seca. Jiló só não correu porque suas pernas se negaram a obedecê-lo. O barulho que o infeliz fez foi tão grande que o Padre Anfilóphio e uma renca de moradores (munidos de uma dúzia de candeias) testemunharam o pobre coitado em estado de choque e completamente cagado, sustentar que vira o fantasma da senhora da cabeça de lavareda. Apesar de quase todos os presentes – inclusive o santo padre – colocarem a visão de Jiló na conta da famosa conena de Saracura, coisas estranhas estavam mesmo acontecendo neste período no antigo povoado. Seria mesmo a defunta Dona Bastiana (que ojerizava negros) que morrera queimada após sobrepor todos os seus vestidos e atear fogo em si própria, voltando para assombrar?
João de Celeste, outro que de quando em vez “matava” umas aguardentes, jurou de mãos juntas que viu em noite de lua cheia o tropel alucinado da mula-sem-cabeça. Segundo ele, após a bicha se empinar todinha na porta da igreja, inclusive, ritmando um maracatu de baque solto com os cascos, lhe deu uma carreira tão disgramada que se ele não tivesse as juntas moles, poderia estar hoje debaixo de sete palmos de terra no velho cemitério do Porto.
O anãozinho “Chico Fuleiro”, que chegou ao povoado a bordo de um circo itinerante e acabou se casando com a nativa Maria Gorda, afirmou que nesta mesma época, estava dando uma bela de uma cagada no meio da noite bem nos fundos da igreja, quando deparou com uma loura de mais de 7 metros de altura. “Chiquim” garante que a infeliz era mais feia que a dor de parir, estava com a cara cheia de ruge e carmim, os beiços lambuzados de batom vermelho, usando véu e grinalda e carregando um bode preto na cacunda. O anãozinho não teve tempo nem de se limpar. Desceu “embicado” ladeira abaixo e depois de um salto espetacular acabou entrando janela adentro, caindo desacordado bem nos braços de Maria Gorda, fincando a ponta do nariz bem no meio dos fartos seios da jovem donzela. Deste dia em diante, “Chiquim” Fuleiro – que acabou se matrimoniando com a sua salvadora – nunca mais botou, sequer, a cabeça pra fora de casa durante a noite, tendo que comprar na mão de seu Rufino Mascate uma dúzia de pinicos esmaltados, evitando assim ir ao quintal à noite para fazer suas necessidades!
Feitosa farmacêutico foi outro que saiu alardeando em alto e bom som que travara uma apoteótica luta com um bicho cheio de cabelos, feio que só a peste, porém, guardadas as devidas proporções, até que se parecia com um homem. Apesar de ser uma história absurda, teve gente que acreditou, até porque Feitosa era evangélico e só andava na igreja. Disse ele que ao voltar do culto da noite topou com um sarará mal-encarado rolando incisivamente em cima do espojador da égua de “Maluvido”, filho de Nonô. Olha… apesar de evangélico, Feitosa já foi o maior fechador de cabaré e acabador de feiras que existira por aquelas bandas, portanto, nunca teve medo de cara feia. Quando o tal bicho se levantou depois de cinco minutos uivando pra lua cheia e constatou que ele estava com os olhos esbugalhados de medo, rosnou feito um cachorro aluado, mostrando os dentes afiados e os olhos da cor de sangue. Conta Feitosa que ao ver aquela criatura fedorenta e cabeluda dando aqueles pinotes, o jeito foi se ajoelhar e tremendo tal qual um filhote de anum, abriu a bíblia no Livro de Eclesiastes e rezou com todas as forças que possuía. O bicho deu um estouro tão medonho que foi pedaço pra tudo que foi lado. O cheiro de enxofre misturado com pólvora ficou mais de três dias impregnado no ar. Ao relatar o fato, constatou-se que aquilo foi o tal do lobisomem que sem ter o que fazer, pernoitou ali no Porto e deu o azar de bater de frente com Feitosa. A força religiosa do crente foi tão grande, que o bicho acabou pipocando e sumindo nas profundezas da terra. Experiente, Feitosa acabou foi tirando proveito da história, abriu uma igreja e ficou foi rico e famoso!
Agora ingresia mesmo se sucedeu, quando em uma noite escura feito breu, Romildo e Natalina namoravam tranquilamente próximo ao cemitério quando testemunharam com os olhos esbugalhados a peleja de uma matilha de cães contra um jegue molambento, que após uma hora de contenda se transformou em um bode barbudo, para em seguida se metamorfosear em uma lapa de cobra de todo tamanho, arremessando violentamente os valentes cachorros do velho Celestino contra o muro do cemitério! Os que sobreviveram devem estar correndo até agora. No dia seguinte, o sangue estava lá para quem quisesse ver. Romildo e Natalina chegaram em casa levando a porta nos peitos de tão assustados, acabando por revelar um namoro escondido de anos a fio. Após o relato, os moradores concluíram que aquilo fora a peleja do Bicho da Pedra Azul com os cães do velho Celestino que aproveitara a quaresma para “religiosamente” cumprir a sua sina no povoado. Neste período as visitas deste bicho eram tão constantes que nem mais incomodavam seus moradores. Alguns já estavam tão acostumados que nem medo tinham mais. Seu Nelson do Restaurante, por exemplo, mostrou para quem quisesse ver, uma ordem de pagamento assinada pelo “encantado”, endereçada à família dele lá em Fortaleza (que posteriormente viraria Pedra Azul) pedindo para pagar a conta de um banquete que dava para alimentar umas 15 pessoas, mas que fora comido apenas pelo bicho em sua incontida gulodice.
Mas, voltando à dona Bastiana… Poucos sabiam, mas sempre que morria alguma pessoa negra ela fazia uma encrenca disgramada. Para ela, preto, em hipótese nenhuma, deveria ser enterrado ao lado de pessoas brancas. Fulozino Coveiro – Deus chame lá que já morreu – chegou a falar abertamente em vida, para quem quisesse ouvir, que muitas vezes foi procurado por dona Bastiana para enterrar pessoas pretas longe da sepultura dos amigos brancos que jaziam no cemitério. Ele chegou até a receber uma “merrequinha” da senhora racista, embora, fosse ele próprio um mulato de cabelo duro e mesmo não concordando muito com aquele tipo de coisa, o numerário que recebia falava mais alto.
As “gorjetas” da velha senhora, muitas vezes, chegavam a superar o salário mensal que o pobre infeliz recebia. Assim, quando morria algum preto, Fulozino já ficava constrangido. Lá vinha a velha senhora de capa branca e chapéu europeu, procurá-lo na calada da noite, sempre munida da respectiva quantia e o velho pedido, que, embora a contragosto, era prontamente atendido.
Esta coisa só parou no dia em que os moradores do povoado foram acordados na calada da noite pelos gritos histéricos de Bastiana. Segundo ela, Maria de Benedito do Rosário Preto, que morrera afogada no poço do cascalhão do rio Pardo dois dias antes, apareceu pra ela botando água barrenta por todos os buracos que possuía no corpo. A morta confessou para dona Bastiana que era ela a famosa ladra de galinhas que atormentou o povoado por tantos anos e mesmo morta, implorou para dona Bastiana pagar por cada galinha roubada aos seus respectivos donos, sob pena de que quando morresse pudesse aplacar um pouco o terrível pecado racista que ela desenvolvera em vida. Desesperada, a velha e rica senhora correu quase que pelada por todo o povoado beijando todas as mãos negras que cruzaram o seu caminho, podendo ser de homem, mulher ou menino.
Apesar de cumprir o que prometera à morta, saindo no dia seguinte com uma bolsa de dinheiro pagando para cada uma das pessoas que tiveram suas galinhas roubadas, dona Bastiana em menos de um mês entrou em uma profunda depressão, culminando com o trágico suicídio em praça pública. Após vestir todos os seus vestidos – sobrepondo um ao outro – encharcou-se de querosene e após riscar um palito de fósforo, virou uma imensa fogueira humana. O neguinho Jiló ficou mais de um ano sem sair de casa à noite, com medo de voltar a ver o espectro de dona Bastiana.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e poeta.
CSales, BA. Quadra de Setembro de 2022. Crescente de Primavera.