ENTRE VISAGENS E LATUMIAS
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ENTRE VISAGENS E LATUMIAS

Desde que este torrão existe que as visagens e latumias fazem parte do nosso folclore. Antes do advento da luz elétrica por aqui – década de 1980 – “os bichos” disputavam no tapa quem assustava mais intensamente os moradores. A coisa era tão banal que cada bairro tinha sua assombração exclusiva. A famosa Mula Sem Cabeça adorava “enrabar” um ou outro bêbado. A noiva da igreja assombrava quem passasse depois da meia noite na porta da matriz. Tinha gente que não passava na rua do cemitério depois da meia noite nem por todo dinheiro do mundo. Vira e mexe, era obrigado a testemunhar uma reunião dos defuntos que acontecia sempre na porta do Campo Santo, onde os finados elegiam criteriosamente a vítima que reforçaria o seleto clube dos mortos. A mulher de 7 metros era outra que atazanava os pobres carreteiros. Estes moços que andavam sempre longe de casa e com imensa saudade da família, nunca resistiam ao pedido de carona da linda morena de mini vestido… bastava a beldade entrar no carro para se transformava em um “tribufu” de todo tamanho. Houve motorista que assombrado, largou o carro ligado e está correndo até hoje. Isso quando um ou outro “Romãozinho” não tocava terror em alguma residência. Houve um caso na Rua Larga no finalzinho dos anos 1970 que deixou todo mundo de cabelo “arrupiado”. O moleque traquino entrou em um boteco e começou a jogar tudo que era litro de canjebrina nas paredes. Assim que o dono correu porta afora rezando tudo quanto há, a rua ficou entupida de curiosos. Até o padre Anfilhófio (chamado às pressas) foi escorraçado. Ainda hoje falam que naquele dia o “muliquim” devia estar muito puto com o dono do boteco, já que além de quebrar todos os litros de pinga da prateleira, ainda tacou fogo no balcão de madeira fornida. Os presentes só viam os litros voando e se quebrando contra a parede sem ter ninguém lá dentro. O padre que entrou rezando um “credo em cruz”, apesar do corpanzil imenso que tinha que carregar, levou tanto sopapo que desembestou ladeira acima, gritando feito um demente. Dava pena ver o coitado do Pedro Meia-Garrafa, o freguês mais assíduo do bar, chorando desolado diante de tanta pinga desperdiçada.

Mas, o pior mesmo era o bicho de Pedra Azul. Ah, este pintou e bordou por aqui nos anos 1970. Quando chegava a quaresma, nego já botava as barbas de molho. Antes da meia noite cachorro lascava literalmente o rabo. Os mais corajosos olhavam por debaixo da janela e viam aquele cachorrão negro de todo tamanho descendo a pêa nos outros. Batia sem piedade deixando a matilha toda mochilada. Os pobres cães apanhavam tanto que na noite do dia seguinte corriam logo cedo para debaixo das camas dos donos e ficavam só grunhindo, assustados. Diante da escassez de cães, o Bicho passou a virar tudo quanto há, desde jumento, até um galo garnisé e saía derrubando poleiros, espantando galinhas, derrubando chiqueiros e batendo nos porcos. A marca registrada eram os arranhões grotescos que deixava nas portas das casas. O que teve de gente sendo “enrabado” por este bicho dá pra encher um livreto de cordel. Ainda hoje há relatos das estripulias diabólicas deste bicho pelas bandas de cá. A coisa era medonha! Até hoje os mais velhos morrem de medo.

No início dos anos 1980, aqui mesmo no interior do município – a energia elétrica já tinha até dado as caras -, um açougueiro conquistense que vendia a melhor e mais barata carne da região (deixando os concorrentes todos de cachimbo inchado) começou a ter grande parte da sua carne, roubada. Miguelim de Tonha andava sempre com a sua C-10 caramelo, entupida até os beiços de linguiça e carne de sol. Chegava, arrumava uma pensão para pernoitar e quando acordava pra ir vender os seus produtos na feira, deparava com metade das carnes roubadas e com uma estranha marca de unhas no capô do carro. De tanto acontecer, Miguelim botou a boca no mundo. Como não havia delegado na localidade ele procurou o soldado Totonho – representante legal da justiça -, exigindo providencias urgente. Após uma detalhada investigação, o conceituado “praça” chegou à conclusão que aquilo era arte do cão. – Num posso fazer nada. Como vou prender um bicho que está morto e enterrado? Aí nem o santo Papa dá jeito…

– O que devo fazer, então? Ser roubado e ficar calado? – Questionou Miguelim quase perdendo as estribeiras. – Quem tem que resolver é vocês da lei! Não posso ficar no prejuízo, afinal de contas eu pago os meus impostos pra que?

– Quem não quer ser roubado, vigia o que é seu. Estamos aqui pra resolver os problemas dos vivos, dos mortos não dá! – Afirmou Totonho. – O senhor poderia me dizer porque ele só rouba as minhas carnes? Não vejo mais ninguém reclamando aqui. – Falou o açougueiro furioso. –  Quem foi que falou que só rouba do senhor? Pergunte aí na feira o que ele fez com as carnes de porco de Bagulino Leitão? Os peixes de Zefa Piaba, os bodes de Julim Cara-de-Carneiro? Ele num tem isso não, quando está com fome, come “inté” se empanturrar, não quer nem saber quem é o dono ou quem deixa de ser. Ele adora comer a carne dos outros.

– Mas “cuma” é que o senhor tem certeza que quem rouba as minhas carnes é o bicho mineiro? O senhor já viu, por acaso? – Ironizou o frustrado vendedor. – Oia, seu Miguelim, estou começando a desconfiar que o senhor está questionando o nosso método investigativo. Pra nós chegar a este “denominador afirmativo” foi necessário usarmos toda uma logística científica, num sabe? Pra “cumeço” de prosa num era nem “p’reu” está aqui dando satisfação “pru” senhor, já que este caso é segredo de justiça. O senhor não faz ideia de qual é o modus openradi dele. Quem quiser questionar que vá pra “caixa-prego”. O senhor não sabe de bosta nenhuma, então vá vender suas carnes e deixa a investigação com a gente? – Miguelim deu uns dois arrotos caprichados e bradou:

– O senhor está querendo dizer que minhas carnes já foram pro saco?

– Não. Quero dizer que pão comido, é esquecido. Esqueça a carne e foque em quem está lhe roubando. – Miguelim, mesmo diante daquela pressão toda, não se deu por vencido. Esperou pacientemente a chegada da próxima semana e trouxe pro distrito dois seguranças de todo tamanho. Tão grandes que pareciam artistas de cinema americano. – Desta vez eu trouxe comigo dois cabras de pêa, destes que “num” tem medo de nada. Deixa só o bicho aparecer pra ver o que é bom pra tosse! –  Falou para todo mundo ouvir. Depois, estufou os peitos e seguiu para a pensão, deixando a caminhoneta em poder dos brutamontes. Meia noite, lua cheia riscando linda no céu, eis que do outro lado da pracinha não deu de aparecer um bicho todo estropiado? Sim. Mais feio que a dor de parir! Assim que butecou os “zóios” na criatura, os “vigilantes” começaram a tremer de medo, o bicho foi pra cima, foi pra baixo e eles ali trêmulos, paralisados, fitando aquela figura grotesca com cara de caveira, chapelão mexicano de palha na cabeça, trajando couro de bode, mancando de um lado para o outro e arrastando pra cima e pra baixo um lote de latas vazias amarradas ao corpo. À medida que o tempo ia passando o bicho fazia uma renca de livusias: Gritava, uivava, gemia e ziguezagueava olhando para a lua cheia com o barulhão infernal das latas atrás. Assustados, um vigia olhava pro outro, o outro olhava pro um quando o “turrado aterrador” do bicho tirou o restinho de coragem que a dupla ainda tinha. Após se espojar feito um jumento no meio da praça, o infeliz soltou uma gaitada estridente e desembestou na direção deles puxando aquele monte de latas. Você esperou? Nem eles. Com os cabelos arrepiados passaram sebo nas canelas, sapecaram os cassetetes no mato e desembestaram ladeira acima. Miguelim que dormia o sono dos justos foi acordado com gritos e murros na porta. Se levantou só de ceroula e quando chegou na caminhonete só restavam as marcas das unhas do bicho, metade da carne havia sumido. Miguelim ficou tão desesperado que chorou ajoelhado no meio da feira. Interrogados por Totonho, os vigias (abraçados um ao outro) não diziam nada de concreto: – Foi o bicho, foi o bicho, foi o bicho… correu atrás de nós, queria comer nós! Foi o bicho! Foi ele, foi ele, foi ele… – No dia seguinte quando o pobre do Miguelim se preparava pra partir com os prejuízos se amontoando, bateu de frente com um caboclinho todo mal-amanhado. Baixinho, da grossura de um palito, trajando uma farda toda embolorada, um quepe mochilado na cabeça, um par de botinas furadas e um bigodinho muito do mal aparado. – Ainda que mal lhe pergunte, é o senhor o açougueiro Miguelim de Tonha? – O açougueiro olhou de soslaio para aquela figura patética parada na sua frente e extremamente mal-humorado, respondeu. – Sim. Sou eu. E vou logo adiantando que estou em um dia ruim e não estou vendendo carne fiado mais não. – Tentou sair e foi seguro pelo baixinho. – Prazer, eu sou o famoso Cabo Tenório. Já ouviu falar de mim? Sou cantado em prosas e versos nas músicas de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Estou aqui pra resolver o seu problema. Já vou adiantando que cobro caro. – Miguelim tirou uma linha do baixinho e já foi falando: – Rapaz, eu trouxe aqui dois bitelos, fortes feito um touro e eles se cagaram todinho, imagine um fiapo de gente como você? – Tentou sair e novamente foi seguro. – Me dá trinta contos que capturo o bicho vivo pra ocê. – Miguelim desacreditava totalmente no que ouvia, porém, o que tinha a perder? Assim, fechou com o protótipo de cabo e na semana seguinte, mal terminou de estacionar e lá estava o franzino Cabo. Sem botar muita fé no caboclo, ele lhe entregou as chaves do carro e foi dormir morto de desconfiança. Enquanto o dono das carnes rolava na cama cheio de temor, o Cabo Tenório fumava tranquilamente o seu cachimbinho quando percebeu alguma coisa uivando do outro lado da rua. Se levantou e viu uma caveira de chapéu mexicano dando cabriolas no meio da rua. Gritos, uivos, pulos, espojamentos e muitas mungangas depois, o bicho de chapéu mexicano apontou para o Cabo e desembestou na sua direção fazendo um barulhão desgraçado, ainda deu tempo de o cabo dar umas duas baforadas no seu pequeno cachimbo e quando o bicho chegou pronto pra dar o bote só se ouviu a pancada… Pôu! Foi bater e o bicho cair estrebuchando, tremendo mais que galinha de gôgo. Caiu e o cabo moeu na pancada. Desceu o porrete!

O dia chegou sem Miguelim pregar o olho. Levantou-se da cama, recusou o café oferecido pela pensão e quando chegou na feira encontrou o Cabo Tenório fumando tranquilamente o seu cachimbo, com o bicho amarrado em cima da caminhonete com um galo de todo tamanho na testa e com a boca lambuzada de sangue. Ainda vestia o couro de bode. O chapéu mexicano de palha estava em cima do capô com a caveira usada como máscara dentro. Atônito, Miguelim foi se aproximando quando ouviu a voz tranquila do Cabo Tenório: – Taí o seu bicho seu Miguelim, este nunca mais vai comer carne dos outros, arranquei-lhe todos os dentes. – Atônito, Miguelim testemunhou ali amarrado, com a testa rachada e um galo enorme sangrando, sem um dente na boca, “o praça” Totonho, chorando desolado e cuspindo sangue coalhado. O próprio policial encarregado de manter a paz e a ordem era “o bicho comedor de carne”. A gloriosa policia baiana arcou com todo o prejuízo do açougueiro e o policial além de expulso da corporação ficou preso por quase um ano. Miguelim continuou comercializando as suas carnes e matando a concorrência de raiva. O bicho nunca mais assustou ninguém!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Janeiro de 2024. Minguante de Verão.