EM TEMPOS DE COPA DO MUNDO
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EM TEMPOS DE COPA DO MUNDO

Em tempos de Copa do Mundo, a Seleção brasileira chegando em mais uma quarta de final a primeira lembrança que me vem à cabeça é uma das inúmeras histórias do meu grande amigo Jerim.  Ele está se recuperando de um baque sucedido há uns quatro anos, quando foi acometido de um acidente vascular cerebral e nunca mais foi o mesmo. Aquela figura que todos conhecia pela alcunha de “Ligeirinho” por andar pela cidade correndo igual o Papa-Léguas (personagem criado pelo americano Chuck Jones), não é nem sombra do que foi um dia. Mas o que importa é que ele está vivo e se recuperando – mesmo que lentamente. Enquanto isso não acontece, cá vamos nós contando as histórias dele, que não foram poucas. O que “Mano Véi” (como ele próprio gostava de ser chamado) protagonizou de causos, foi uma grandeza, quem o conhece sabe muito bem disso!

Jero adquiriu sua fama aqui em “Candin” por gostar mais de canjebrina que de mulher. Quando tomava suas talagadas de conena saía completamente do prumo e não tinha cristão que desse jeito. Bebia o que encontrava pela frente, a única exceção era água. Era muito comum (principalmente em dias de festas) vê-la trôpego, completamente “medicado”, saindo de mesa em mesa tirando a tranquilidade de quem queria apenas se divertir. Dava preferência aos que ele não conhecia (o Nova-Conquistense quando o via se aproximar escondia logo os copos), os de fora, por não o conhecer, não tinha esta sorte. Geralmente ele chegava de fininho, ficava se fingindo de morto e só de olho no copo que descansava tranquilamente sobre a mesa, assim que “a vítima o enchia”, ele dava um bote tão certeiro que dava até medo! Catava o copo cheio e virava rapidamente na boca. Não queria nem saber o que continha dentro, queria mesmo era beber. Vira e mexe tinha algum enfezado dando uns cascudos no velho Jero. Quando não era o cliente que batia, era o dono do bar. Como era muito querido na cidade, não faltava quem o acudisse. Muitos, por piedade, até pagavam uma ou outra birita pra ele.  Jero até que bebia fora, porém, a grande paixão dele eram as festas particulares. O cara adorava penetrar onde não era chamado. Muita gente faziam as comemorações na surdina, rezando para que nosso amigo não aparecesse. O diabo era que a intuição do nego era de lascar! Um pouco antes da festa acontecer lá vinha ele entrando porta adentro. Chegava com a maior cara de pau, cumprimentava solicitamente o noivo (ou aniversariante, ou pai ou mãe do anfitrião), pedia desculpas por estar chegando atrasado, e logo, lá estava ele bebendo e comendo tudo o que encontrava pelo caminho. Muitas vezes era o último a deixar a festa (se escondendo em algum quarto ou banheiro) e só saía quando enxotado literalmente porta-a-fora. Um dia nosso amigo Raimundo da Sucam chegou em uma mesa de bar onde gostávamos de frequentar e foi logo falando: – Rapaz, o povo daqui discrimina demais o pobre Jerim. Chega na mesa e ninguém oferece um copo. Chegou lá em casa agora e eu o deixei lá bebendo. Tem umas dez latinhas de cerveja na geladeira, se aguentar beber tudo tá bom.  – Nós que conhecíamos Jero ficamos imaginando se Raimundo realmente o conhecia para deixa-lo assim, tão à vontade. Dez minutos depois apareceu a filha de Raimundo, o chamou particularmente e falou alguma coisa no seu ouvido. Só ouvimos ele falar de longe: – Pode deixar! Pode servir o que ele pedir! – Dez minutos depois veio a esposa e depois de acenar para Raimundo, também falou no seu ouvido. – Aguenta aí meninos, volto já! – Falou o funcionário da Sucam saindo com a esposa. Cinco minutos depois só vimos Raimundo sair da casa levando Jero todo trôpego pelo braço até a porta da casa dele. Diante da liberdade dada pelo anfitrião, Jero bebeu em tempo recorde todas as cervejas da geladeira, comeu toda a comida e ainda ficou batendo na mesa pedindo mais. Pois é… antes de ficar doente ele era “desjeitim” e mesmo assim, ninguém conseguia ficar com raiva dele. Ainda hoje é muito querido na cidade. Tanto que um amigo me confidenciou recentemente que o seu irmão que reside em Soterópolis resolveu comemorar o seu aniversário aqui na cidade e após reunir a família fez questão que alguém fosse buscá-lo em sua cadeira de rodas. Este amigo confidente, falou de toda a alegria que Jerim sentiu, mesmo só bebendo refrigerantes e suco de frutas. O único inconveniente foi ter que tirar das suas mãos à força um ou outro copo de cerveja que ele queria por que queria tomar. Como veem, Ligeirinho continua ativo.

Reza a lenda que nos anos 1990 antes dele sair munido de suas antigas fitas cassetes para ouvir em algum barzinho, investigava detalhadamente onde poderia haver uma ou outra festa que ele pudesse ir, astuto ele ia até o bairro da Lagoinha aqui em “Candin” e subia no reservatório que abastecia a cidade de água. Do alto da caixa dava para se ver a localidade inteira. Depois de um tempo olhando atentamente ele conseguia detectar uma ou outra fumacinha e já deduzia que ali poderia estar havendo um ou outro churrasco… Geralmente acertava. Corria pra lá e chegava a tempo de participar da comilança, tendo a petulância de pedir desculpas ao anfitrião por chegar atrasado. Jerim despertava nas pessoas o sentimento dúbio de amor e ódio! Ele era assim e todo mundo sabia. Quando bêbado, parecia incorporar algum tipo de entidade. Começava a conversar sozinho, franzir a testa e enrugar o nariz, dava cada baforada no ar que quem estava perto tinha até dificuldade de respirar. Quando ficava furioso começava a perguntar:

– Jerim é mau? Jerim é mau?!! – Melhor sair de fininho, porque na sequência vinham às dedadas no peito de quem estivesse na frente. Não tinha quem suportasse!  Isto gerou um monte de brigas, Jerim apanhava sempre, porém, por ser muito querido, sempre tinha alguém apartando as suas brigas. Na capa do mundo de 2006, por exemplo, Jero descobriu que Pepeu – figura que trabalhava como serralheiro e era bastante popular na cidade – estava reunindo um grupo de amigos para assistirem aos jogos da Seleção brasileira na sua residência. Apesar de muito trabalhador, Pepeu era louco de pedra. Adorava andar dirigindo uma velha Brasília que ele cortou a parte de cima transformando em um belo conversível. A diversão do serralheiro era encher o carro de amigos (geralmente umas 20 pessoas) e sair pela zona rural tomando de bar em bar. Como a Brasília tinha as molas reforçadas, diante do peso, pulava mais que andava. Era aquele monte de gente com litros e mais litros de conhaque nas mãos fazendo um barulhão ensurdecedor. Todo mundo queria ser da turma de Pepeu, Jerim também. Tanto que sem ser convidado ele deu um jeitinho de aparecer no dia e hora em que a turma se reuniria para assistir à peleja. No Primeiro jogo contra a Croácia (Brasil 1 a 0) ele chegou meio escabreado, sentou-se, torceu, bebeu, comeu (mais que os outros convidados) e teve o cuidado de abraçar todo mundo quando o Brasil marcou o gol.  – É gol do Brasil! Porra! Valeu! Pra cima deles Seleção Canarinho, pra cima deles! – O futebol tem este poder. Naquele momento de alegria uniram-se todos em um amplo e fraternal abraço. Malandro, Jero fez questão de dar um abraço exclusivo no dono da casa, afinal de contas, nunca se sentiu tão bem tratado como naquele dia. Saiu dali na certeza que teria um lugar com bebida e comida farta (e de graça) durante as partidas da nossa Seleção na copa da Alemanha.

Repetiu o feito no segundo jogo (Brasil 2×0 Austrália), nova vitória do Brasil, novos gritos, abraços, beijos, pulos e muita cerveja e churrasco. Nesta altura, Ligeirinho já estava se achando o dono da casa. Abria a geladeira, pegava sua própria cerveja, enchia o copo de todo mundo, tendo sempre o cuidado de servir primeiramente o anfitrião. No terceiro jogo o Brasil arrasou o Japão por 4 X 0 e quem mais gritou – bebeu e comeu – foi ele. A coisa foi tão boa que ele entrou junto com todo mundo na Brasília amarela de Pepeu e saiu tremulando as bandeiras do Brasil pelas animadas ruas da cidade. Era festa e ele finalmente era aceito na turma de Pepeu. Realizava-se assim o seu antigo sonho.

Nas oitava de final lá estava o Brasil detonando Gana por 3 X 0 com gols de Ronaldo, Adriano e Zé Roberto e enquanto Galvão Bueno se esgoelava de alegria, Jerisvaldo e trupe trocava calorosos abraços degustando o que de melhor havia em comidas e bebidas alcóolicas. Era mais uma alegria e a festa continuava. Neste dia Jero fez até discurso com a sua voz de bluzeiro. – “Nóis” vai ser campeão do mundo, “rumbora” Brasil! “Nóis” é “mió” que todo mundo! Viva a Seleção! –  Gritou empolgado ao tempo em quer foi aplaudido de pé, tanta era a alegria que irradiava a casa.   Eis que chega as quartas de final e Pepeu que já era famoso por fazer churrascos de carne de gatos criteriosamente abatidos na vizinhança (tocou tanto terror no Bairro que os vizinhos criavam os seus bichanos em gaiolas) resolveu inovar e com o auxílio luxuoso da sua trupe, capturou e matou um velho cachorro doente que andava “caxingando” de porta em porta. Após matar impiedosamente o pobre animal, pendurou a carne em um varal, espetou a cabeça em uma estaca e descartou as patas e as vísceras e só de maldade estendeu o couro em uma cerca de vara que dividia o seu quintal.

Pepeu não era só mestre em serralharia, carregava a fama de ser um excelente cozinheiro, tanto que sua cozinha vivia repleta de convidados para comerem as moquecas e ensopados que ele gostava de preparar. Como tinha um gosto inusitado, adorava preparar um ensopado de jiboia, um fritado de bundas de tanajura e o seu famoso churrasco de gato que ele servia em pequenos espetinhos misturados a pequenos pedaços de legumes. Cachorro ele nunca tinha feito, embora, soubesse com todas as letras que cães era uma famosa iguaria servida lá pelos lados das Coreias. De posse da carne despejou todos os temperos que possuía em uma bacia de alumínio grande, temperou o bicho com três dias de antecedência e o deixou moqueando esticado em uma corda tomando sol e sereno e ficou só esperando a chegada do dia do jogo para fazer uma surpresa para os amigos, principalmente aqueles que – a exemplo de Jerim – comiam, bebiam e não contribuíam com absolutamente nada. Quem passava na rua nas imediações da casa do serralheiro sentia um delicioso e inebriante cheiro que deixava as pessoas alucinadas. Muitos queriam saber que cheiro delicioso era aquele, Pepeu mantinha o mistério. Eis que chega o dia das quartas de final da copa da Alemanha, Brasil X França, era 1º de julho de 2006. Empolgadas, as pessoas cruzavam as ruas distribuindo buzinaços enquanto a trupe se reunia – como de praxe – na residência de Pepeu para assistir ao grande jogo. Não preciso nem dizer que um dos primeiros a chegar foi o nosso velho amigo de guerra, Jerim. Chegou e se sentiu até lisonjeado com tanto carinho e tanta atenção que o anfitrião e os amigos lhe dispensaram. Buscaram logo um litro de batida e duas garrafas de cerveja e foram logo colocando perto dele que – com medo de acabar logo – bebeu tudo em uma talagada só! Mal acabava de secar um copo e lá vinham novas garrafas com conhaque, vinho, jurubeba, rum, batida, caipirinha, os cambaus… Era ir descendo e ele solvendo em uma gulodice descomunal. Teve um momento que Jero chegou a imaginar que se realmente existisse céu, aquilo ali que ele estava vivendo era bem próximo! O melhor foi quando a carne começou a sair e o “bode” (cheiroso e crocante) foi posto exatamente na mesa onde estava o nosso amigo que quase se empanzinou de tanto comer! Comeu as costelas – tendo o cuidado de mastigar criteriosamente cada ossinho – e detonou o lombo e as partes maciças, inclusive, chupando os tutanos… Comeu que lambeu os beiços.  Lá pras tantas, quando todo mundo já estava mais ou menos “medicado”, não é que Zidane que estava comendo a bola, humilhando literalmente a nossa Seleção não resolveu bater uma falta jogando a bola na nossa área? Sim. Levantou a bola e o arrogante Roberto Carlos que desdenhara dias atrás do time do Japão, ficou só ajeitando os meiões e só olhando a bola chegar no atacante Henry que acertou um lindo chute botando a pelota nas redes. 1 a zero França.

A partir daí passávamos a testemunhar incrédulos o show de Zidane. Apito final e a nossa Seleção estava eliminada.  Para os que assistiam na casa de Pepeu aquilo era inacreditável. Depois de alguns minutos de silêncio, Jerim resolveu usar a palavra ao mesmo tempo em que abria a geladeira e enchia o seu copo. – Ah, gente! Tem nada não, a gente ganha a próxima! – Ah! Pra que? Ao ouvir o descaso de Jerim com a derrota, Pepeu se “retou”! Após uns dez minutos de infezação chutando tudo quanto há, resolveu botar todo mundo pra fora de casa.  – Todo mundo pra fora! Saiam daqui! Não quero ver mais ninguém dentro da minha casa hoje! Fora! Todo mundo pra fora, já! Eu disse todo mundo!

Como ainda tinha muita bebida e comida, Jerisvaldo catou logo um litro de batida, botou debaixo do braço e saiu rasgando um enorme pedaço de carne com osso e tudo enquanto cada um dos visitantes procuravam pegar o que desse. Foi gente pegando latinhas, garrafas, copos e tufos de carne assada.  Quando todos estavam bem no meio da rua, eis que aparece o dono da casa pra lá de furioso trazendo a cabeça do cachorro morto em uma das mãos e o couro todo esticado na outra:

– Renca de “félas de uma égua”! “Oquí o que ocêis cumero, ó”!

Por um instante o tempo pareceu parar. Passado o susto inicial só se ouviram os gritos. Gente jogando fora os pedaços de carne que levavam, derrubando as bebidas e gritando desesperados. Existiam até algumas garotas no meio (e nem preciso falar que o organismo feminino é mais sensível) e só se viu foram elas botando pra fora tudo o que havia comido. Foi vômito à torto e a direito. No desespero alguns correndo tropicando, outros golfando da forma que fosse possível. Logo a rua ficou parecendo um campo de batalhas com pessoas caídas, gente ajoelhada, todos jorrando vômitos para tudo que era lado.

Jero olhou pra aquela cena de guerra, e antes de – literalmente – largar o osso, ainda deu uma bela de uma mordida na peça de carne que levava antes de jogá-la fora. Saiu na maior tranquilidade.

FIM

LUIZ CARLOS FIGUEIREDO

Escritor e Poeta

CSales, Bahia. Quadras de Dezembro 2022. Crescente de Primavera.