E QUEM PAGOU O PATO FOI O POBRE DO BODE.
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E QUEM PAGOU O PATO FOI O POBRE DO BODE.

Era meia noite quando Chico Meiota – bêbado feito um gambá – deu de cara com um bode preto enorme. O bicho estava trepado em cima da cumeeira da loja de Bertolino Maçom. Tropeçando nas próprias pernas o bebum apurou as vistas e viu olhando em sua direção aquele bodão da cor do cão com aqueles chifres enormes, retorcidos, com aquela barbicha branca e com os olhos faiscantes, brilhando no escuro. “Chiquim”, nunca foi de correr de assombração, mas quando olhou mal olhado para um bode daquele tamanho, soltou um arroto mal arrotado e quando viu o bicho soltar um berrado aterrador e vir em sua direção, não teve coragem que segurasse o infeliz, do jeito que estava passou sebo nas canelas e gritando mais que leitão sendo capado saiu desembestado.

Estamos em 1950, Nova Conquista era deste “tamanhim. A loja de Bertolino Almeida era a única que vendia tecidos por aqui. Eles vieram lá dos confins dos Gerais e era de uma bondade surreal. Bertolino, dona Maria e seus três filhos adolescentes (fizessem chuva ou sol) saíam todo santo dia pelas ruas do povoado distribuindo mingau para os necessitados. Quanto mais os Almeida faziam caridades mais movimentada ficava a sua loja. Todo dia formava-se uma fila enorme para se comprar nesta loja. Logo a inveja e a usura passaram a flertar como o cotidiano da família. Este excesso de bondade fez que os concorrentes enviassem às pressas um investigador até à Vila dos Montes Claros na esperança de descobrir algum “podre” do patriarca ou de alguém da família. Depois de sessenta dias de investigação o máximo que descobriram foi que o Bertolino era um maçom. Na época pouca gente tinha noção do que viria ser aquilo. Assim, o “detetive” amarrou a informação na bainha da calça e chispou de volta. Aquela descoberta deveria valer alguma coisa já que a maçonaria era rodeada de mistérios e tratada a sete chaves. Após muita pesquisa com livros antigos e “informantes graduados”, os desafetos dos Almeida chegaram à conclusão que ser adepto da maçonaria era pertencer a uma seita secreta que adorava o anticristo! Ah, finalmente Bertolino seria desmascarado – pensaram. Na prática, ser maçom era possuir bons costumes, sem distinção de raça, religião ou política. A maçonaria exigia que cada um dos seus membros possuísse um espírito filantrópico, buscando sempre a perfeição. Como era uma ordem secreta e desconhecida (e o desconhecido gera medo), logo as pessoas da pequena cidade, induzidas pelos desafetos, começaram a falar mal de Bertolino e família:

– Não é pra comprar nada lá não… – dizia um.

– Eles têm parte cum Tinhoso! Todo maçom venera o “Cramulhão”! – falava outro.  – Eu “num” vi, mas me “falaro” que ele só anda de manga cumprida para esconder um ovo de um galo preto que ele choca “dibaxo do subaco”! – afirmava outro com relativa convicção!

– Quem “comprá” naquela loja vai ser queimado num caldeirão de “inxofre” de todo tamanho no dia do juízo final! – afirmava o Pastor João da Igreja Batista.  E assim, a propaganda negativa boca a boca não demorou para surtir efeito e logo quem passasse na frente da loja dos Almeida fazia o sinal da cruz. Tinha gente que cortava até voltas para não passar em frente. Colocaram até despacho e velas pretas na porta do comerciante. A verdade é que logo os prósperos negócios de Bertolino desabaram. O movimento da loja parou subitamente, os fregueses escassearam e a família que ajudava os carentes, passou a necessitar de ajuda. Nem os irmãos de maçonaria (vindos dos Montes Claros) conseguiram ajudar. A loja estagnou e logo uma leva de cupins passou a devorar literalmente os tecidos ali expostos diante dos olhos incrédulos do povo, que afirmava ver no meio da noite, através do vidro da porta a figura do “Romãozinho” montado em um cupim gigante, liderando às gargalhadas os devoradores de tecidos.

Diante da pressão, Bertolino, outrora forte e alegre, foi ficando debilitado, cabisbaixo, depressivo, doente e por fim, acamado. Não teve médico que conseguisse (por melhor que fosse) reabilitá-lo. O tempo passava e nada do comerciante melhorar. Sem muitas alternativas, dona Maria, esposa do moribundo, resolveu por conta própria procurar um padre muito famoso que existia por aqui. Anfilhófio residia em Vitória da Conquista, porém, vinha à Nova Conquista duas vezes por semana rezar a missa da igreja matriz. Desesperada dona Maria se humilhou para que o padre fizesse de corpo presente algumas orações no leito de morte do seu debilitado marido. Assim que começou a visitar o comerciante, o padre simpatizou-se tanto com o infeliz que passou a vê-lo periodicamente. Enquanto Bertolino agonizava entre a vida e a morte, o povo – que adora uma boa fofoca – saía espalhando aos quatro ventos que durante a noite se via na cumeeira da casa da família um enorme, chifrudo, desengonçado e rouco… Bode preto. O padre foi ouvindo tanto estas livusias que logo ele mesmo passou a acreditar, e pressionado, exigiu que Bertolino confessasse os pecados que a comunidade achava que ele possuía, revelando de vez o grande segredo da maçonaria. Com esta ideia fixa, o pároco entrava no quarto do pobre infeliz, sentava-se em uma cadeira estrategicamente colocada perto da cama e dizia baixinho no ouvido do coitado: – O Senhor esteja convosco, meu filho! Melhorou? – perguntava ansioso.

– Não, padre. Estou piorando! – dizia o moribundo com um fio de voz.

– Meu filho… – falava o padre quase engasgando – Fale aí a verdade, você cria ou não um bode preto? O povo tem visto algumas mungangas na sua loja, não minta pra Deus que ele sabe tudo. Você tem ou não parte com o “demo”? Tem gente que já viu o Romãozinho dançando em cima do balcão da sua loja cercado por uma renca de cupins. Confesse para que eu possa lhe dar a extrema-unção. Estão espalhando por aí que você chocou um ovo de um galo preto debaixo do suvaco, é verdade? Qual é o segredo da seita? Fale-me, em nome de Deus, revele-me este segredo. Só se confessando e se arrependendo dos seus pecados, meu filho, que você poderá alcançar o reino dos céus. Você não quer ser queimado no fogo do enxofre, né? Pois é… Se não falar a verdade este será o seu destino. – Mesmo debilitado e entre a vida e a morte, Bertolino achava ridículo um conceituado pároco como Anfilhófio acreditar em tantas baboseiras. Assim, reunia o que lhe restava de forças pra zoar com o padre. Anfilhófio veio várias vezes à casa de Bertolino, que, mesmo morrendo de dor, sempre se negava a aceitar a surrealidade que dominara sua racionalidade. Assim, à medida que os dias iam passando o comerciante ia ficando cada vez mais debilitado. Uma noite, após uma crise de tosse seca, onde por pouco o coitado não botou as entranhas pela boca, à matriarca despachou às pressas um emissário para Conquista. Ao ser informando que Bertolino estava nas “tábuas de Moisés” o padre completamente alucinado (com a batina toda amassada) entrou na sua velha rural e veio em velocidade máxima até este torrão. Queria ser o primeiro representante da igreja católica a ter em mãos uma confissão assinada de um maçom revelando entre a vida e a morte tudo o que a igreja buscava saber. Isso – pensava ele – o promoveria no mínimo à Bispo. Assim, empurrou o pé na velha rural e veio “voando” para dar ao moribundo a extrema-unção. Ao chegar topou com um homem completamente debilitado, feio feito a peste e mais esquálido que um faquir, pra lá de ofegante e só o couro e o osso. Mal conseguia balbuciar algumas palavras. Bertolino estava prestes a morrer. Após fazer as suas orações, o padre encostou a cabeça no corpo do moribundo e falou:

– Berto, meu filho, você está partindo para a eternidade, fale agora filho, esta é a sua última chance… Revele o seu segredo. Alivie a sua alma… Confesse para Deus os seus pecados, qual a importância do bode barbicha em sua vida? O que aconteceu com o ovo do galo preto chocado no seu suvaco? Saiu o que de dentro? Não esconda nada de Deus… Qual é o segredo de vocês? – Foi neste exato momento que Bertolino disse com um fio de voz:

– Oh, padre, como você é ingênuo, tão bobo, tão medíocre, tão inocente… Você acha que eu revelaria algum segredo pra você? O segredo da maçonaria é manter o segredo… Rá, rá, rá…  – Diante da resposta o padre perdeu completamente a compostura…  – Que porra é essa? Você me fez sair de Conquista pra ouvir isso? Fale canalha, fale! Conte-me tudinho! Seu bosta de merda!

– Você quer que eu revele os segredos da maçonaria? O segredo, padre… O segredo… Na vida ou na morte é manter segredo. Você perdeu o seu tempo! Não tenho nada pra lhe contar. Não preciso mais de você. Pode ir embora!

– O quê? Você está pensando que é só assim? – gritava o padre desesperado – Você vai falar tudo o que eu quero ouvir por bem ou por mal!  – Não… Não tenho nada pra lhe falar, padre… Você é muito mais pecador que eu… Passar bem seu Anfilhófio… tchau e fique com o seu Deus! – Balbuciou, virou-se na cama e… morreu! “Desjeitim”! – Bertolino seu fila da puta, não morra agora não… tem que ficar vivo, você tem que falar comigo agora, revelar o segredo… Fale diabo, confesse, cacete! – Gritava o padre sacudindo violentamente o cadáver enquanto os fiéis olhavam estupefatos!

– Ele me enganou! Este fila da puta me enganou! Fala miserável véi, careca dos infernos!  – De nada adiantou. Bertolino partira para a eternidade com um sorriso sarcástico no rosto, tirando onda com a cara do padre. Diante do sucedido, o padre teve uma terrível crise de “infezação”, deu logo alguns safanões nos sacristãos que queriam contê-lo e começou a quebrar tudo o que existia dentro do quarto… Espelhos, moringas, cadeiras, travesseiros, canecas e até o penico cheio de fezes que foi furiosamente atirado contra a parede!  – Ele me enganou, esse fila da puta me enganou! Este safado me passou a perna! Não revelou o segredo que eu queria. Levou com ele para o túmulo. Canalha, safado desgraçado! Tomara que seja queimado no fogo do inferno!  – Gritava ao tempo em que – mesmo contido pelos presentes – esganava violentamente o cadáver.  Foi um escândalo! O padre só parou quando foi dominado e amarrado com alguns cordões de São Francisco. Para abafar o sucedido a paróquia transferiu em tempo recorde o pároco para o estado de Sergipe. Quanto à Bertolino, morreu feliz e teve um enterro digno, com a presença maciça dos maçons.

A partir daí, todo ano nas noites da quaresma uma reunião espontânea acontecia na praça principal… Uma renca de curiosos parava diante da casa do finado olhando fixamente para a cumeeira da casa…  Depois de um tempão esperando sempre aparecia um para dizer:  – Viu ele, João? –

– Não, vi não!  – Olha lá na cumeeira, tá vendo? É o bode preto de barba branca! Ele nunca falha! Daqui a pouco ele solta o berro rouco…

– Olá gente, olá ele! É ele, é ele… – Ninguém conseguia ver absolutamente nada! Até alguns anos atrás ainda existiam curiosos que iam toda sexta-feira da Paixão visitar o túmulo de Bertolino na esperança de vê-lo se levantar da sepultura e revelar o tão temido segredo…

Esperam até hoje!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Quadras de Fevereiro. Minguante de Verão, 2024.