DESCE AÍ A SAIDEIRA…
Artigos

DESCE AÍ A SAIDEIRA…

Quem acompanha estas maus traçadas linhas sabe que as histórias consideradas as mais surreais são as sucedidas nos botecos. Hoje virou moda em “Candin” os encontros sociais nos fundos das casas. A reunião dos amigos regado à bebes e petiscos, faz que mensalmente haja um desfalque considerável nos caixas dos botecos. Eu e uns poucos amigos temos quebrado este paradigma. Por mais que o ambiente familiar seja favorável, a magia que os botecos emanam ainda fazem diferença, e como fazem!

Me apaixonei por boteco no dia em que fui à Vitória da Conquista a convite do cantador Rosemberg Oliveira, lá nos meados dos anos 1980 para assistir no antigo Cine Glória um show com Diana Pequeno, Dércio e Dorothy Marques. Saímos do show embasbacados e para comemorar fomos comer um filé no antigo Bareta, point localizado bem no centro da cidade, que ficava aberto 24 horas. Alas que lá pelas duas e tantas da manhã um caboclinho magrelo feito o diabo, chumbou e depois de fazer uma renca de mungangas subiu na mesa e queria porque queria pular de ponta cabeça dentro de um copo de canjebrina. Foram uns três ou quatro homens para conter a fúria do caboclo que depois de dominado, foi gentilmente convidado a se retirar, porém, o estrago já estava feito. A partir deste dia, comecei a perceber que a energia dos botecos é diferenciada.

Outra vez, ainda ao lado do meu parceiro Rosemberg lá mesmo em Conquista, virei uma noite inteirinha sentado em um meio fio, pegando uma carona em um som de um veículo de um condutor desolado. Na minha cabeça o cara havia levado um fora da namorada e afogava as suas mágoas em um litro “inteirizim” de uísque Natu nobilis. Sentou-se na porta do bar, abriu o fundo do carro e detonou a noite inteirinha um discaço (the best volume 1) de Bob Dylan. Foi a partir daí que passei a gostar de Like A Rolling Stone, Blowin’ in the Wind, Lay Lady Lay e Mr. Tambourine Man.

Buteco é sinônimo de magia. Claro que nem tudo são flores, vira e mexe surge uma ou outra encrenca. Até porque o tal do bêbado é pra ser estudado. Tem bêbados de todos os tipos. Os que falam cuspindo, os que falam gritando, os que ficam ricos, os que são apaixonados e até os valentões. Estes são da pior espécie. O bicho é de uma finesse que mete até medo. Já chega roubando a cena e se alguém o olhar de soslaio ele vira o capeta…

– Está me olhando porquê, meu irmão? Perdeu alguém parecido? Está me tirando? Não gosto de homem não, meu irmão! – Já estamos tão calejados que nem ligamos mais, fingimos que nem é com a gente e vida que segue. Há algum tempo existia um outro caboclo por aqui que chegava no bar, se sentava, pedia um litro de pinga, enchia dois copos e os solviam gulosamente, enquanto levava o maior papo com ele mesmo. Secava sozinho um litro “inteirizim” de canjebrina, pagava a conta e saía cambaleando. João da Caçamba que era danado e também cortava uma água lascada, certa feita encontrou este caboclinho nas tábuas de Moisés. Após segui-lo sorrateiramente até a casa do infeliz, observou zombando, a imensa dificuldade do moço para pular a janela.  Ao encontra-lo sóbrio no dia seguinte, João aproveitou para matar a sua curiosidade:  – E aí, veizim. Saiu ruim ontem, hein?  Quase caiu umas duas vezes!

– É… – respondeu o caboclo. – Bebi pra caramba! – Ao sentir a brecha João se aproveitou da inocência do moço e entrou de sola: – Ainda que mal lhe pergunte, porque você toma em dois copos? – O moço olhou assustado pra João, deu duas boas gaguejadas e bradou:

– Meu irmão, não fala pra ninguém não, ninguém acredita, mas é o Zé Pilintra. É… meu irmão. Ele chega, se senta à mesa e me força a beber tudim. Ou bebo ou levo uns cascudos. Quando termino ele me leva pra casa na base do supetão, no dia seguinte amanheço todo moído. É, meu irmão, pode crer… A coisa é séria, se eu vacilar ela me derruba no meio da rua. – A partir deste dia sempre que encontrava o caboclo pela rua, João gritava: – Tá levando uma surra do Zé Pilintra, hein? – Atualmente frequento um boteco excelente lá na Lagoinha, o “Bar do Nego” é um boteco muito bom, tem umas quatro árvores enormes na porta com uma sombra magnífica. Lá, além do ambiente saudável ainda saí um fígado com mandioca de se lamber os beiços. A cerveja é geladíssima, o preço é ótimo, o atendimento é bom, porém, nosso amigo barman tem um pequeno defeito, fica “medicado” o tempo “inteirim”. A gente chega – eu e mais uns dois amigos – mais ou menos meio dia e o nosso atendente já está pra lá de Bagdá. Falando com a voz embolada que ninguém entende absolutamente nada.

“Isturdia” ao chegarmos, tinha apenas um cliente, Zé de Combé, o mais tradicional “cachaceiro da cidade”. Cheguei, fiz a saudação de praxe e enquanto solvia a minha gelada fiquei observando o choque de realidade que atualmente a tecnologia provoca nos idosos. Apesar de ser pra lá de escolado (deve ter mais de setenta anos de pinga), Zé travava uma batalha apoteótica com o seu smartphone. Enquanto eu observando de longe, ele futucava o microfone do aparelho e gritava quase em desespero: – Toca Vicente Celestino, “miséra”! –  Esperava a resposta e a assistente virtual respondia com uma calma budista: – Não entendi. Qual o destino? – Diante da incompreensão Zé de Combé faltava botar um ovo! – Que destino o que, diabo? Vicente Celestino é um cantor, um cantor, entendeu? Toca aí uma música dele.  – A vozinha irritante dizia: – Não entendi. Qual o destino? – Zé ameaçava ficava tão irritado que ameaçava jogar o aparelho fora, porém, sentia que aquilo iria pesar no seu bolso, assim, pagava a sua penitência. Me diverti observando o embate. Neste dito dia quem me levou lá foi o poeta e cantador Jaivan. Apesar dos seus setenta e tantos, Combé ainda é o boêmio mais famoso da cidade. É claro que ele já está assim meio “gastadim”, porém, do alto dos seus setenta e tantos ainda corta uma água lascada. Os Combé chegaram do Pajeú (São José do Egito) em meados dos anos 1970 e foram ficando por aqui até os dias de hoje. A maioria é chegado a uma canjebrina. Zé é o mais folclórico deles e tem uma renca de histórias hilárias. Me contou por exemplo que em 1971, no auge da carreira, o cantor Waldick Soriano foi fazer um show na sua terra natal e como um inveterado fã do baiano de Caetité, pagou uma fortuna por uma roupa preta, uns óculos escuros, um chapelão arrumado e após contratar um taxi pelos olhos da cara apeou travestido de Waldick na porta do cinema onde o show aconteceria. Foi uma gritaria lascada, a maior algazarra, a mulherada desmaiando, gente chorando de emoção e Combé rodeado pelos fãs que lhe distribuíam abraços e beijos. O negócio só foi desfeito quando chegou o verdadeiro Waldick que ficou encabulado com a semelhança. A adoração ao sósia deixou o cantor até enciumado, mesmo assim, levou Combé à tiracolo para assistir ao show em cima do palco. Após a apresentação, Zé convidou Waldick para conhecer o baixo meretrício e amanheceram o dia tomando aguardente Pitu, cada um com sua “mulé-dama” no colo…

Mas, voltando ao assunto, assim que demos de cara com Zé de Combé o cumprimentamos e ele já completamente chumbado não deu de pedir pra Jaivan cantar uma música pra ele? Sim. Queria ouvir Waldick Soriano.

– Rapaz, sou seu fã! Canta aí pra mim Paixão de um homem!

– Ô meu irmão, estou sem o meu violão aqui. – Após matutar um pouquinho, falou o que Zé queria ouvir: – Aguenta aí que vou lá em casa buscar pra tocar pra você. – E assim fez. O cantador gosta de dizer que ao contrário dos canários do rei que canta para os monarcas, ele é canário do reino e canta em qualquer lugar (já dizia Tim Maia). Assim, entrou no seu carro e foi buscar o violão. Aquela renca de mesas me separando de Zé Combé e eu só o observando. Apesar da distância eu apurava os ouvidos para ouvir o embate das gerações. O septuagenário digladiando violentamente com a moderna tecnologia.

– Bora fí da gota, toca Waldick Soriano aí, merda! – A voz metálica da assistente respondia com uma irritante indiferença: – Não entendi. Repita. Não entendi. – Mesmo de longe eu conseguia ver as orelhas de Zé quase que pegando fogo. Depois de uns vinte minutos nesta pendenga, o carro do poeta Jaivan retorna e ele já desce armado do seu instrumento:

– Pronto, Zé. Chega aí meu irmão, vou tocar uma moda prucê!

– Moço, você voltou! Não estou nem acreditando! Vai mesmo tocar pra mim? É sério, Jaivan? É mesmo?

– Claro. Quer ouvir o que? – Perguntou o poeta olhando para um Combé visivelmente emocionado. – Toca qualquer coisa aí. Só de você ter ido pegar o violão para tocar pra mim já está bom. – Assim, Jaivan desfilou um pot-pourri de xote, xaxado, baião e arrasta-pé ancorado em Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, Gordurinha, Jacinto Silva e Gonzagão e, emocionado, Zé faltava chorar:

– Oh, meu Deus. Que coisa linda. Me alembrei do meu pé de Serra lá em São José do Egito. Toca mais uma aí. Quer beber o que cantador? Quer tomar uma cerveja, eu pago. – Abstêmio do álcool, o poeta recusava todas as ofertas. Lá pra tantas resolveu cantar uma seresta e aí Zé de Combé desabou. Abriu a boca chorando: – Oh, meu Deus! Essa aí é linda demais. Tá me trazendo saudades da minha santa terrinha. Você é um profissional, Jaivan, canta demais… – E assim, Jaivan que iria tocar uma ou duas modas fez um pequeno show de quase uma hora. Nesta altura Zé de Combé já estava completamente moqueado. Não sabia se chorava, cantava ou sorria. Foi quando Jaivan deu por fé do horário e precisou partir. – Tchau Zé! Valeu. Tô indo! – Indignado, Combé chorava: – Não vai agora não cantador, toca mais uma. – Dá não, Zé. Tenho que ir. – Entrou no carro e partiu. Nesta altura a voz de Zé estava mais embolada que a do dono do bar. Ainda com lágrimas nos olhos tomou mais umas três ou quatro canjebrinas misturadas à Coca-Cola, ficou me olhando por algum tempo, e falou com a voz trôpega: – Carlim… vou me embora que estou bêbado feito um gambá. Tchau!

– Valeu, Zé. Vá descansar.

Zé se levantou com imensa dificuldade, aprumou o corpo e saiu bamba, cambaleando, trocando as pernas e ainda secando as lágrimas. Depois de quase cair, aprumou o corpo e seguiu o seu destino ainda com a música de Jaivan ressoando nos seus ouvidos.

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de junho de 2024. Crescente de Outono.