DA SUCUIÚ À SUÇUARANA. RELATOS DO PORTO DE SANTA CRUZ.
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DA SUCUIÚ À SUÇUARANA. RELATOS DO PORTO DE SANTA CRUZ.

Nos meados dos anos 1950, os fazendeiros do pacato território do Porto de Santa Cruz entraram em polvorosa com o surgimento de uma temida quadrilha de ladrões de gado que viera dar por estas bandas, provocando um caos em praticamente todas as fazendas. Toda semana, tempo chuvoso ou não, lá estavam os ladrões aproveitando a calada da noite para adentrar os currais, subtraindo uma renca considerável de gado. A coisa ficou tão feia que foi necessário os fazendeiros se reunirem em tempo recorde para oficializar uma “parte” na Delegacia Regional da Vila da Conquista.

Neste tempo um dos moradores mais conhecidos da região era o madeireiro Floriano Bicudo, um caboclinho jovem, forte, alto, negro, pilheriador feito o diabo e que carregava a fama de ser tão trabalhador que valia por cinco homens, tanto que não lhe faltavam empregos. Além de ganhar o seu sustento derrubando árvores de aroeira e “braúna” incrustradas no seio da mata, a diversão do negão era sair em noite de lua cheia caçando tatu e tomando as suas irresistíveis conenas que ele levava no seu cantil, devidamente alojado no seu alforje.  Em uma noite enluarada lá estava o lenhador labutando com um tatu severado, perto da fazenda do Coronel Miguelão…

– “Sorta essas unhas peste, ô diabo de tutu disgramado”! – Gritava ele fazendo a maior força, puxando um tatu peba pelo rabo! – “Qui bicho danado de forte! Sorta, capeta, sorta miserávi temoso”… – Por mais que fizesse força, nada de conseguir puxar o peba que lutava bravamente pela sua vida, cravando desesperadamente as suas garras na beira do buraco. Depois de pelejar por mais de duas horas sem obter sucesso, Floriano teve que apelar, ou seja, fez o que era muito comum na época, enfiou literalmente o dedo dentro do tatu que ficou completamente desorientando. Quando o Peba já se imaginava  chiando dentro de um enorme caldeirão de água fervente, ouviu-se o motor de um caminhão – coisa raríssima por aqui naquele tempo.  Desconfiado, Floriano, depois de um salto digno de um acrobata, se escondeu em uma moita que depois ele descobriu (por motivos óbvios), ser de urtiga. Ao butucar os “zóios”, mesmo morto de medo, contemplou aquela coisa grande e esquisita que trazia uma espécie de curral na cacunda, entupido até os beiços de gado. Sem precisar pensar muito, o jovem Bicudo descobriu que ali estavam os famosos ladrões de gado que atazanavam a região. Diante do temor, o jovem fundou-se ainda mais dentro da moita distribuindo rezas para todo tipo de santo.

Se os ladrões tiravam os fazendeiros da zona de conforto, os que não tinham posses se viam obrigados a sobreviverem no fio da navalha, já que vira e mexe tinham que sair desembestado na frente de uma ou outra onça suçuarana ou dando de cara com as cobras sucuris que descansavam na beira do Rio Pardo, fazendo que a comunidade ribeirinha andasse o tempo todo com os cabelos em pé.  Embora, se constatassem que pouca gente já tivesse, de fato, visto a famosa cobra, os relatos diários eram tão intensos que faziam que metade do povoado evitasse tomar banho após o pôr do sol.

Era comum saírem alardeando aos quatro ventos que fulano ou beltrano foram perseguidos pela enorme serpente que tinha mais de dez metros de comprimento e seria mais grossa que uma aroeira centenária, tendo por hábito, engolir de uma beiçada só, um garrote de dez arrobas ou mais, deixando os chifres de fora só para tirar uma chinfra.   Estes relatos deixavam os pobres moradores desnorteados, até porque, vira e mexe, lá estava para quem quisesse ver uma ou outra carcaça de boi, bode, ou carneiro devidamente traçados pela suçuarana, ou até mesmo os chifres de algum gado que a sucuri, só de pirraça, tinha cuspido fora.

“Maroca de Quelemente” era uma senhora benzedeira, de muito prestígio no povoado. Respeitada por ter sido parteira de praticamente todas as crianças ali nascidas, a velha após uma bistunta não saiu alardeando com toda convicção que já tinha tido um tête-à-tête com a cobra descomunal?  Sim, falava para quem quisesse ouvir que em plena enchente deu de cara com a cobra “sucuiú” bem na porta da casa dela!

– Pois foi seu Nonô, quando eu abri a porta, em plenas águas de “júin”, num é que eu me deparei com aquele rolo de cobra todo enrolado? Parecendo inté um “pinêu de cartepila”, descendo tranquilamente o “ri”… Só deu tempo d’eu me apegar com São Binidito e “rezá” o credo! A bicha já tava até de boca reganhada “inxalano um fedô miserávi de inxofre e quando eu tavo quase sendo ingulida gritei com todas as minhas força”: – MAIS FORTE SÃO OS PODERES DE DEUS! – Foi eu “gritá” e a bicha deu um pipôco e desceu correnteza abaixo. Fiquei com tanto medo que tive que me apegar “inté” com São Cipriano que “truvô” as vistas da danada da sucuiú. Só num mim “inguliu pruquê” Deus “num” quis!

E entre um relato ou outro a história saía rolando de porta em porta.  Tinha gente que dizia que Maroca teria sido comida e cuspida de volta por ter o gosto pior que abacate estragado. Diziam também que a cobra ficou com pena da velha porque ela tinha uma renca de filhos pra criar, e até os que falavam que a sucuri não aguentara foi o bafo de fumo mascado que Maroca exalava da boca e que ao sentir o fedor, caiu desmaiada sendo levada pelas águas do Pardo. Verdade ou não, a história espalhou rapidamente pelo povoado inteirinho. A partir destes comentários, as pessoas, por medo, passaram a tomar banho em grupo. Era comum ver dez, vinte pessoas tomando banho coletivamente no meio da tarde.  Pior era quando surgia algum gaiato, gritando:

– Oia a cobra!  – Não ficava ninguém dentro d’água. Era um desespero total, negro correndo sem roupas, respeitáveis senhoras, “nuazinhas”, em um histerismo danado, gente desmaiando, velhinhos tremendo, alguns tendo ataques epilépticos e o caos reinando absoluto. A coisa ficou tão preta que até o principal alimento do povoado, o peixe, faltou na mesa dos ribeirinhos. O povo tinha medo até de pescar! Recusavam-se até em pegar água – para matar a sede – depois que anoitecia. Logo um fedor insuportável passou a fazer parte do cotidiano dos moradores do povoado. Quem chegava ali, sentia uma catinga medonha, vendo-se obrigados a tamparem até as narinas!

À medida que o tempo foi passando, a curiosidade fez que caravanas escolares passassem a visitar o Porto levando os seus alunos à tiracolos (alguns trêmulos de medo) para conhecerem a “loca” e o poço da cobra “sucuiú”. E aí, começaram a transferir tudo de ruim que acontecia no povoado para a conta da cobra: Pessoas deixavam de pagar suas contas e diziam que a cobra tinha comido o dinheiro, esposas relatavam que a cobra veio em sonho pedir para largar o marido moribundo, adúlteras usavam a cobra para justificar terem sido flagradas na cama com um amante, alguns largavam até a família e fugiam na calada da noite dizendo que foi a mando da cobra, mulheres apareciam barrigudas acusando a cobra de engravidá-las e até o jovem “Jandirim”, rapazote meio afeminado, que apesar do jeito e dos trejeitos afirmava com relativa convicção que era muito macho, resolvera sair do “armário” assumindo a sua condição de homossexual, para atender um pedido da cobra.

– Só estou fazendo o que a sucuri me mandou fazer, entenderam? – Mudou-se de “mala e cuia” para a casa do professor Clarindo que o desposou maritalmente. Afinal de contas, como negar um pedido da cobra? E assim o povoado se transformou em um caos e a culpa era da “sucuiú”. Diante do medo que imperava no Povoado, os ladrões aproveitaram a balbúrdia e deitaram e rolaram nas fazendas da região, roubando todo o gado.

Foi exatamente aí que Floriano Bicudo já com o tatu peba seguro pelo rabo, inclusive, já sentindo o sabor do bicho na boca, deu de cara com os cruéis e destemidos ladrões. Entre o imediatismo da surpresa e a sensação da descoberta, o negão esbugalhou os olhos presenciando saltar da carroceria uma meia dúzia de jagunços armados até os dentes, laçando com maestria uns dezesseis garrotes do Coronel Miguelão, deixando tudo enfileirados na carroceria do caminhão. Amedrontado, Floriano escondeu-se ainda mais dentro da moita de urtiga ouvindo o proseado dos ladrões:

– Se aparecer alguém, meta bala! – Gritou o que parecia ser o chefe do bando, que pelo jeito, não estava ali pra brincadeiras. Assim, trêmulo e agoniado, Floriano, graças ao clarão da noite enluarada pode ver com os próprios olhos – que a terra haveria de comer algum dia -, os tão “afamados” ladrões de gado (procurados desde o norte de Minas até o sertão da Bahia) praticando mais um roubo na região. Assim que giraram a manivela do caminhão (inserida na parte dianteira do motor), desembestaram pela estrada real, em direção ao norte de Minas.  Morrendo de medo e se certificando que os facínoras já estavam longe, Floriano saiu em uma carreira tão desembestada e ao tentar atravessar o rio, tropicou na cobra “sucuiú” que já foi logo, de um bote só, se enrolando todinha no pobre coitado, o arrastando imediatamente para o fundo do rio.

Todo mundo sabia no povoado que Floriano Bicudo não era homem de mentiras. Mas, se ele não tivesse levado aquele pedaço da cobra como prova, ninguém acreditaria nele. Quem testemunhou, conta até hoje… Metade do povoado compareceu ao boteco de João Saracura apenas para ouvir o relato do negão que pra lá de ofegante e mais ralado que coco, sentou-se no balcão da venda e contou todo o sucedido com riquezas de detalhes para quem quisesse ouvir.  Falou que assim que a fera se enroscou com ele, tentando levá-lo à força para o poço sem fundo que ficava debaixo da loca dela, após uma bistunta, ele usou a experiência adquirida como lenhador para desvencilhar um dos braços, puxou o facão corneta que estava na cintura e com apenas um golpe cortou a bichana em dois pedaços. O pedaço da cabeça fugiu dando um berro aterrador, que, comparando mal, pareceu até um bode sendo capado, turvando as águas pardas de sangue. O pedaço do rabo foi capturado quando tentava fugir por terra, sendo levado à força por Floriano Bicudo que mostrou para quem quisesse ver, a rabeira da “sucuiú” medindo uns três metros e meio. Muita gente ficou horrorizada com o tamanho da cobra.

 Naturalmente (como não era besta), Bicudo exigiu dos presentes uma pequena contribuição em moeda corrente, alegando que o referido dinheiro seria utilizado pra comprar “injeção contra teto”, já que, ferido na labuta, poderia vir, posteriormente, a sentir os efeitos colaterais da peleja.

Olha gente, pode acreditar… Floriano Bicudo juntou tanto dinheiro (tantas foram às pessoas que pagaram para ver o pedaço da cobra), que a partir deste dia largou o ofício de madeireiro e passou a viver, apenas, como contador de histórias.

 FIM

LUIZ CARLOS FIGUEIREDO

Poeta e Escritor

CSales, BA. Quadras de Maio de 2022, Crescente de Outono.