Quem morou na Nova Conquista em meados dos anos 1970, conheceu uma figura extremamente folclórica conhecida pela alcunha de Preto do Acarajé. “Seu Preto” como era chamado, era um senhor magérrimo que tinha um beição de meter medo! Baixinho, gostava de usar uma calça frouxa com a camisa por dentro dando duas voltas em um cinto de sola desbotado. Tinha uma alegria contagiante e era um daqueles negros, tão negro (hoje o politicamente correto é chamá-los de afros americanos), que chegava ser azul. Seu Preto, normalmente já conversava em uma altura esquisita, quando tomava suas talagadas, a única voz que se ouvia no meio da roda de amigos era a dele. Cantarolava, contava causos, inventava histórias, dançava, pulava, zombava dos amigos, não deixava ninguém quieto e ria em uma altura disgramada. O negro era um exímio namorador. Passava uma mulher ele piscava, passava outra, jogava beijos, e se achava a última cocada…
Preto tinha duas paixões: uma – por ser genuinamente baiano – adorava o candomblé. A outra: era meio que metido a treinador de futebol. Apesar destas paixões, tirava o seu sustento de um velho tabuleiro de acarajé que ele expunha orgulhosamente no meio da praça e diga-se de passagem, naquele tempo já confeccionava um acarajé ou um abará de lamber os dedos. Oriundo do Sul da Bahia, só Deus sabe como veio dar por estas bandas. Metido a sabido, quando questionado na área de futebol, afirmava com relativa convicção já ter treinado com muito sucesso vários times do sul da Bahia. Na época era impossível saber se ele mentia ou não. Quando contrariado ficava puto, distribuía esporro a torto e a direito e acabava convencendo seus “desafetos”.
A verdade era que volta e meia, lá estava ele inserido no meio dos boleiros. Não jogava mas apitava os treinos e em algumas ocasiões, quando o time daqui jogava contra times da Divisa ou Veredinha, quase sempre era o árbitro. Foi um dos primeiros a usar uniforme de juiz. Usava uma roupa toda preta que lhe valeu o apelido de “Berne da Cabeça Preta”! Às classes mais abastadas da recém-emancipada cidade não gostava muito de seu Preto, torcia o nariz para o neguinho baixinho, magérrimo, dentuço, beiçudo e pescoçudo que fazia um acarajé gostoso feito o diabo. Só que em contrapartida ele não estava nem aí. Vivia a vida dele do jeito que gostava. Quando Diacísio e Pernambuco puxava o cordão dos mascarados em pleno carnaval, quem estava lá? Ele, seu Preto do Acarajé pulando na frente. Era um dos foliões mais animados. Quando chegava o período de São João quem organizava as festas ao lado de Diacísio para a apresentação das quadrilhas juninas? Preto do Acarajé, sempre dançando agarrado em uma ou outra mucama em um entusiasmo impressionante. A voz era bem negra, típica dos cantores de blues do Mississipi. A gargalhada parecia um trovão. Agora, o que mais ele gostava de fazer – com a devida licença dos Paralamas do Sucesso e de Lulu Santos – era sequestrar a fonética e violentar a métrica. O cara não falava uma palavra certa. Adorava assaltar a gramática. Suas preleções eram divertidíssimas. Pedia para os jogadores fazerem um círculo, estufava o peito e bradava:
– Meus “atléticos” … – Se referido, obviamente aos seus atletas. – “Pricisamo fazê” um grande jogo de “futibó”. – Como podem ver… cada palavra para ele tinha um sentido todo especial. – Gerson vai ser o “centrofó”! Carlim vai “sê” o “quartibeque”, Veão vai de “centerbeck” e Pio vai ser “center-half”. Vamo jogá cum raça. Se a bola passá o “atlético” num passa… Vamo metê os cacete neles! “Num” é pra “dexá passá” nada! Agora vão tirar a “xilografia”, assentá o nome “d’ocêis na sula” e depois faça um bom jogo”.
Este era Preto do Acarajé! Sula, na linguagem dele era a súmula. Xilografia era o famoso retrato de monóculos que todos os times tiravam ao adentrar o campo. No mais, técnica, tática, esquema, tudo isto passava longe de seu Preto. Pedrinho conta que ele foi nomeado “Preparadô Fixo” pelo famoso boleiro. O time só era escalado quando Pedro passava para ele a relação dos jogadores aptos para a partida. Ela não estava nem aí se o time só tinha 13 jogadores. Dois, fazendo chuva ou sol, eram os mesmo reservas de sempre. Quase nunca entrava, mesmo assim, seu Preto (não era alfabetizado) pegava a lista manuscrita em um pedaço de papel colorido daqueles de enrolar pão e ficava mais de uma hora “estudando” os detalhes com a folha de cabeça pra baixo.
Na época existia por aqui quase uma dúzia de terreiros de candomblé. Seu Preto escolheu logo o de Mãe Edite – que ficava no centro da cidade para frequentar -, ali na Rua 7 de Setembro onde ficou instalado por um bom tempo o Pelotão da PM. O candomblé acontecia no sábado e era frequentado pela nata da sociedade local. Logo, Preto se tornou um dos Ogãs mais famosos. Muita gente adorava ver o solo que ele tirava dos atabaques. Recebia alguns santos, cantava algumas chulas e logo teve a sua cabeça feita se tornando “Pai Preto do Acarajé”.
Dona Edite era uma senhora gorda, moralista fervorosa e que tinha um inenarrável prazer em colocar em primeiro plano os seus deveres religiosos. Tinha uma enteada loira, lindíssima que devia na época ter uns 14 ou 15 anos. Meiga e sensual, a garota só andava extremamente bem vestida para os padrões deste torrão. Desfilava pelas ruas exibindo os seus longos cabelos encaracolados. Apesar de muito nova, ela tinha ciência que era a garota mais desejada da cidade. Recatada, não dava um bom dia pra ninguém, embora, soubesse mais que ninguém que a maioria dos homens que compareciam ao terreiro, tinha apenas um objetivo: desejá-la ao vê-la sambar irradiada. Não foi que de uma hora para outra Preto do Acarajé com aquele beição de todo tamanho não passou a mão na garota loira? Pois é! Passou, casou e ainda tirou onda. Foi curtir lua de mel em São Jorge dos Ilhéus deixando um monte de concorrentes sonhando com a galeguinha.
Ao voltar da lua de mel, foi nomeado braço direito de Mãe Edite e quando alguém fazia alguma piada com o seu casamento ele ameaçava utilizar a capoeira de Angola que se dizia mestre. Nunca precisou comprovar essa habilidade, porém, quando a conversa saía do prumo, o negro arregaçava as pernas da calça e quem tinha juízo capava a mula.
Certa feita Zobinha (filho do finado Tutu), Arnaldo que trabalhava nas Casas Miranda e eu resolvemos criar um time de futebol. Fizemos uma vaquinha –correndo uma subscrição pelos comércios da cidade e fomos comprar um uniforme para o time em Vitória da Conquista. Na prática, este time seria o antigo time da “Rua” que espancava semanalmente o time do Ginásio Orlando Spínola. Arnaldo se auto intitulou Presidente, eu Vice e Zoba, Secretário. Após a contribuição de cada um de acordo com a sua disponibilidade monetária lá foi Zobinha e eu até Vitória da Conquista comprar o primeiro uniforme da nossa história. Entramos na viação Santo Elias e assim que chegamos ao comércio local corremos várias lojas e após contarmos e recontarmos “o apurado” só deu para comprar o uniforme do Botafogo que estava em promoção sendo o mais barato – a ideia inicial seria um uniforme do Flamengo que para variar era um dos mais caros. Naquela época tudo era vendido separadamente (camisa, calção, meias, números e escudo).
Após separamos a grana da condução, o apurado deu para comprar onze camisas, os números e apenas um escudo que seria usado por Arnaldo, o maior acionista do clube. Entrávamos em campo com a camisa alvinegra e cada um com um calção de cor diferente. Arnaldo, por ter a única camisa com escudo era o capitão do time. O nosso primeiro técnico foi Dedé, que volta e meia invadia o campo querendo bater no juiz! -Vossa Excelência, o senhor está roubando, Vossa Excelência! – Botava os braços nas costas em sinal de respeito e “esculhambava” o coitado do juiz. Dedé, apesar de esforçado, não deu muito certo. Perdíamos mais que ganhávamos. Assim, em face dos maus resultados, viu-se obrigado a renunciar ao cargo e Preto do Acarajé assumiu. Divertíamo-nos com as suas preleções.
Muito tempo depois, lá estava Preto fazendo o que mais gostava, ou seja, apitando os nossos treinos. Gostava tanto que adentrava o campinho de terra batida munido de uma renca de apitos semi profissionais, de cores e formatos diferentes que ele levava atrelados um aos outros pendurados no pescoço. Apesar de ser apenas um baba, ninguém queria perder, tanto que existia uma rixa lascada entre os times. Na época Badim era o nosso patrimônio futebolístico, jogava uma bola lascada e gostava de driblar o time adversário todinho. Em dia de jogo isso era o que mais acontecia, só que nos treinos, Pio que era o zagueiro xerifão e melhor amigo e Badim não permitia.
Pio nunca foi assim um zagueiro de ponta, mas era um excelente cabeceador (tinha uma impulsão inigualável) e apesar de amigo de Badim, não permitia que o negão fizesse a graça dele. Quando o negão dominava a bola, driblava um, driblava dois, Pio ia no meio dele e metia os ferros. Era bater e o negão ficar dez minutos se contorcendo. Eu que desenvolvia o ofício de parceiro de Pio na zaga, muitas vezes ficava com pena das porradas que Badim levava. Nossa linha de zaga era formada por Edmilson em uma das laterais Pio, Eu e Toninho (irmão de Badim). A ordem era descer a madeira no driblador. Badim pegava a bola e partida em velocidade, driblava um, driblava dois, e quando chegava no terceiro o pau comia o fazendo se esborrachar no chão. A pancada era tão violenta que ele se contorcia por uns dez minutos… gritava e gemia pra depois se levantar sorrindo, limpando a poeira.
Um belo dia, um treino duro para caramba, os dois times jogando a vida e eis que uma bola não sobra pra Pio que acerta um “bicudaço” bem na cara de seu Preto do Acarajé que era o juiz? Sim, um chute tão violento que o fez engolir literalmente o apito. Não é brincadeira, não, engoliu mesmo. O time de Badim vinha com tudo, a bola sobrou pra Pio que meteu a bicuda acertando a cara de Preto bem no instante em que ele estava com apito na boca. A violência foi tanta que o apito se esfarelou e entrou nas gengivas de seu Preto. O golpe foi tão forte que o negro cambaleou igual aqueles lutadores peso pesados quando atingidos no queixo. Andou desnorteado de um lado para o outro, tropicou e só não caiu porque foi seguro por Miltinho. Absorveu o golpe, conseguiu se agachar. Corremos para perto dele e Miranda foi o primeiro a perguntar:
– Tudo bem, seu Preto? O Senhor se machucou? Quer que o levemos pra Farmácia de seu Rufino? – Fizemos aquela rodinha em torno dele, alguns segurando, outros preocupados e quando já íamos levá-lo para a farmácia, algumas gotas de sangue começaram a pingar da sua boca e ele começou a retirar pedaços quebrados do apito das gengivas e de dentro dos dentes… – Minha boca está dormente… – Respondeu com a voz engasgada! Alguém trouxe um copo de água gelada, ele deu uma gargarejada e quando levantou a cabeça os beijos tinham dobrados de tamanho. Todo mundo morrendo de pena do coitado e Pio rolando de de rir. Ficou só no susto. Entre mortos e feridos salvaram-se todos.
Preto ficou algumas semanas com um inchaço descomunal nos beiços (que já era enorme e dobrou de tamanho), porém, quando perguntado como estava, ele respondia com a voz embargada:
– Estou bem, o diabo é quando suspiro forte vem o som do apito e este gosto na boca não sai nem com reza braba!
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadras de janeiro 2025.
Minguante de Verão.