CELSON GOMES PORTO. O ídolo maior de nosso futebol
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CELSON GOMES PORTO. O ídolo maior de nosso futebol

Estamos em 31 de dezembro de 1987, um sol escaldante torra as entranhas da nossa cidade, é o verão anunciando que este seria o último dia do ano e que, o dia seguinte traria um novo ano para que pudéssemos renovar às nossas esperanças. Eu e Celson trabalhávamos na empresa COCEBE – que por um longo período foi a maior distribuidora de Gêneros Alimentícios da cidade, pertencente ao empresário Oriston Mendes dos Santos – ele, Gerente do Supermercado e eu do Atacado.

– Zé Grandão (era assim que ele se referia à minha pessoa), hoje é o meu último dia de trabalho. Estou indo para Conquista logo mais e não sei se nos veremos na virada, assim, feliz 1988 e feliz aniversário!

– Vai jogar no Serrano, né? – Brinquei.

– No primeiro momento não. Vou trabalhar no armazém de Lourinho e jogar no Comercial, só que isto será uma ponte para eu chegar ao futebol profissional. Você ainda vai ouvir falar muito em mim, meu irmão. Obrigado por tudo e um abraço! – Celson trabalhou na COCEBE por aproximadamente uns 10 anos. Neste período era sem sombras de dúvida o maior ídolo do futebol de Cândido Sales e, ao lado de Badim, eram os dois maiores jogadores da região.

Na época Celson estava recém-separado e após o nascimento da sua filha, entrou de cabeça no “mundo mundano”, conhecendo de perto as tentações e os prazeres da carne. Nunca foi de beber álcool, usar drogas ou fumar, porém, ao rescindir o seu contrato de trabalho, a primeira coisa que fez foi presentear a si próprio com um opala preto envenenado e cair na lapa do mundo. Fiquei sabendo depois, que após concretizar o balanço da loja no seu último dia de trabalho, Celson passou uma noite intensa nos lençóis de cambraia dos motéis de Vitória da Conquista na companhia de uma colega que trabalhava ao seu lado. Apesar de não ter muita experiência como motorista, Celson voava com o velho veículo que, em contrapartida, só andava alinhadíssimo e com um ronco de motor digno dos bólidos da fórmula 1. Celson e a garota foram de opala naquela noite para Vitória da Conquista. Conheci Celson, menininho, com mais ou menos uns 12, 13 anos de idade quando se tornou meu colega de sala. Na época eu devia ter uns 17 anos – portanto, bem mais velho que ele. Ao perceber o jogador que ele era, o convidei para fazer a sua primeira partida no campinho Augusto Flores. O time do “Botafoguinho” que eu era o dono, fez a primeira partida contra a equipe de Divisa Alegre (MG) em um dia que a nossa Seleção enfrentaria o Santos de Vitória da Conquista. Na preliminar amassamos o time da Divisa e Celson acabou com o jogo (ainda menino) marcado os 5 gols daquela goleada. O negão (para quem não teve o prazer de conhecê-lo) era fisicamente bem parecido com Romário no auge da forma. Era mais negro e mais forte. Finalizava bem com ambos os pés e quando botava a bola na frente parecia um trator, só era parado na base da falta, isto se o zagueiro fosse muito forte. À medida que a fama do futebol de Celson crescia, ele era cada vez mais requisitado para jogar na região. Jogou várias vezes em Pedra Azul – tanto pelo time de Cândido Sales, como pelo time de Águas Vermelhas. Marcou muitos gols por toda região.

Celson gostava tanto de futebol que criou uma escolinha por conta própria. Quem participava do time treinado por Celson ainda hoje o tem como ídolo. À medida que ele passou a jogar por times de Pedra Azul (MG), ficou encantado com a escolinha de futebol do craque “pedrazulense” Macarrão. Logo, requisitou a molecada e começou a treiná-los seriamente para disputar com os times de Pedra Azul. Assim, pegou Roberão Soares para o gol, Irineu, Zé Galinha, Tatata, Ney, Veveu, Levi, Beija, Tilapa, Bonifácio e até Júnior Gordo – tendo um carinho especial por Beto de Tereza que era o mais novinho do time.

Outra questão marcante em Celson era que além de ser o craque e ídolo de toda uma comunidade, ele amava verdadeiramente o futebol, tanto que foi o responsável pela criação do mais famoso time de futebol da nossa história, o AJACS – Associação de Jogadores de Cândido Sales (acumulando as funções de atleta e presidente) que deu muitas alegrias à torcida do nosso município extrapolando as nossas fronteiras. Nos dias de jogos, era muito comum vermos (enquanto a maioria absoluta dos boleiros se concentrava para o embate) Celson, humildemente, contando apenas com o adjutório dos atletas do seu time mirim, marcando com cal – com as próprias mãos – todo o campo, colocando as redes e até esticando a corda que delimitava a torcida dos jogadores. A geração de Celson foi a que gerou os mais habilidosos craques de nossa história. Se antes tínhamos Miltinho, Diran, Zé Preto, Zezé, Wilson e Badim, esta geração foi composta por jogadores como Vandela, Isaac Pires, Piau, Milzinho, Zé Galinha, Helinho, Naíde, Nerinho, Elias, Billy Roger, Gaguinho, Vevéu, Quinquinha e, ele, o maior de todos.

5 de julho de 1985, mais um aniversário da cidade e o Prefeito Joviano Martins deu carta branca para Velho Barbeiro e Chicão (dois militantes do nosso futebol) trazerem a sensação do futebol do sudoeste da Bahia, a equipe profissional do Serrano de Vitória da Conquista. Após a confirmação da partida os torcedores entraram em êxtase. Pela primeira vez uma equipe profissional jogaria no nosso município.

Durante a semana – como não poderia deixar de ser – este foi o assunto mais comentado nas tendas de Velho Barbeiro e Diacísio. Cândido Sales finalmente veria jogadores do quilate dos goleiros Renan e Chico Estrela (que jogava com lentes de contato e pegava até pensamentos), João Cavalinho, Claudir (jogou no Bahia e chegou até o Flamengo), Gilson Calango, Camilo, Cesinha, o Zaqueirão Djalma que chegou a jogar no Vitória, Nade, os irmãos Kéu e Zó e muitos outros…

Finalmente chega o grande dia com um recorde absoluto de público (muita gente veio da zona rural) mais de cinco mil pessoas no Augusto Flores. Celson trouxe Paulo – um excelente goleiro do time da Divisa – e entrou em campo com uma zaga formada por Ney (Cassimiro), Tingão, Zé Preto e Piau – improvisado na lateral esquerda, usando uma chuteira emprestada por Billy Roger. Quinquinha, Nerinho e Naíde, Badim, Celson e Helinho (de Zé Cabeleira). O técnico era Velho Barbeiro que saltitava mais que rã se acasalando. O time do Serrano com todos estes craques entrou em campo como se pudesse ganhar na hora que quisesse. João Cavalinho cheio de graça, Nade mostrando uma técnica fabulosa, Claudir e Djalma anulando o nosso ataque. Os irmãos Kel e Zó destilando categoria. Primeiro tempo duríssimo em um zero a zero de arrepiar.  Veio o segundo tempo e o Serrano jogava para o gasto, parecia que poderia ganhar quando quisesse. Vinte minutos do segundo tempo, eis que Naíde passa para Badim que entrega de primeira para Nerinho que faz um corta luz e a bola chega a Celson e o negão com aquela saúde que só ele tinha, joga a bola na frente do zagueiro Djalma – que parecia até um armário de tão forte – ao ver que não conseguia parar nosso artilheiro, o zagueirão ainda tentou agarrar Celson pela cintura e caiu estatelado no chão.  Bem ao seu estilo Celson deu uma bomba certeira da entrada da meia lua e a bola entrou na gaveta, estufando a rede. Dá pra imaginar a loucura da nossa torcida? Cinco mil pessoas extasiadas. Uma gritaria danada, uivos, apupos, pulos aqui, gritos ali (pessoas passando mal) e uma invasão generalizada de campo com a torcida em êxtase carregando Celson nas costas deixando o jogo parado por quase 10 minutos. Depois de reiniciado, o Ajacs abdicou completamente do jogo e começou a chutar para tudo que ela lado. A bola caía no meio da torcida e desaparecia… Nego chutava para os quintais das casas (obrigando Chico Estrela, goleiro reserva do Serrano a pular como um gato os muros em busca da bola). O Serrano desesperado em busca do empate e o Ajacs jogando o jogo da vida. Billy Roger jura que foi devido ao empréstimo da chuteira dele – que ele assistiu boquiaberto do banco de reservas – a aula de bola de um improvisado Piau, jogando o fino na lateral esquerda, com uma segurança e elegância que chamou a atenção de todos.  Após o final do jogo com a vitória do Ajacs a torcida desceu a Rua José Porto cantando de alegria e a diretoria do Serrano queria levar Piau a qualquer custo. Este foi o dia em que pela primeira vez na vida, um time de Cândido Sales jogava (e ganhava) de uma equipe da primeira divisão do futebol baiano. A partir desta data, o nome de Celson passou a ser bastante conhecido (e requisitado para jogar) em Vitória da Conquista.

Após outra partida épica do Ajacs contra o Comercial (o melhor time amador de Vitória da Conquista), Lourinho – dono do time e um forte comerciante atacadista – convidou Celson para ir trabalhar com ele (em Conquista), jogaria no Comercial e posteriormente iria para o Serrano. Satisfeito, o negão realizaria o seu grande sonho, pleitear uma vaga no Serrano de Vitória da Conquista.

Eis que na madrugada do fatídico dia 31 de Dezembro de 1987, após rolar nos lençóis de cambraia – ao lado da sua colega funcionária – Celson e a garota entraram no seu opala com destino à nossa cidade, ainda com o cheiro do prazer impregnado na pele. A pista vazia da madrugada fez que ele empurrasse o pé no velho opala, assim, o grande ídolo do futebol de Cândido Sales não percebeu que algumas horas antes, quase em frente à Fazenda Olho d’água – chegando à nossa cidade – um veículo atropelou uma mula que morreu e ficou estirada no meio do asfalto. Com a cerração da madrugada e na velocidade que o opala vinha, foi impossível desviar e Celson bateu em cheio no animal capotando seguidamente por três vezes.  O destino quis que quase imediatamente um ônibus da Empresa São Geraldo (que passava no local) levasse o casal em estado grave até o posto da Polícia Rodoviária da Divisa Alegre, de lá, retornaram para o Hospital São Vicente de Vitória da Conquista, perdendo um precioso tempo.

Aproximadamente umas 5 da manhã, eu tinha acabado de me deitar após ficar até as quatro na festa da virada, quando chegou dois amigos ofegantes, me relatando o sucedido. Imediatamente rumamos para o hospital São Vicente em Conquista e ao chegarmos já tinha várias pessoas de Cândido Sales na portaria, entre as quais, Peruzinho, José Carlos Lima e Quinquinha todos bastante abalados. Esperamos até às oito da manhã quando chegou seu Zezé – o pai de Celson – com mais algumas pessoas da família. De repente, fomos informados que a garota sobreviveria e que Celson, infelizmente falecera.  Tomado pela comoção, testemunhei o desespero dos Cândido-Salenses ali presentes. Um funcionário do hospital nos conduziu até o necrotério e vimos o lamentável estado em que o corpo de Celson se encontrava com várias fraturas expostas, inclusive na caixa torácica. Todo mundo chorou naquele momento e me partiu o coração ao ver o pai de Celson desolado se abraçar ao corpo do filho. Todas as vezes que estou em um bar com amigos e alguma cerveja é aberta com a espuma saindo lentamente pela boca da garrafa, me faz lembrar imediatamente do sucedido. O corpo morto do meu amigo Celson expelia espuma pela boca como uma cerveja ao ser aberta.

Assim que foi liberado, vários carros em comboio trouxe o corpo do ídolo maior da cidade e o enterro foi uma comoção. Talvez tenha sido o enterro com a maior participação popular da nossa história. Naquele primeiro de janeiro de 1988, o mais querido jogador da história do futebol de Cândido Sales partia para sempre deixando um legado incalculável e uma lembrança que jamais se apagará.

FIM.

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales – Bahia.

Quadras de Abril de 2023. Minguante de Outono.

P.S.: Para escrever este texto peguei uma ponga nas memórias de José Custódio Pereira (Zé Preto), Roger Ferraz (Billy Roger da Viola), Dr. Gerson Filho (Gersinho), Claudir (ex-boleiro do Serrano), José Carlos Lima (Pela-Pela), Lucinero Fernandes (Nerinho), Marcos Batista da Hora (Quinquinha), José Bonifácio de Oliveira (Bonox) e Geraldo Flores (Mal Morrido). Agradecido à todos.