Olha ele aí de novo, pulando!… Sim. Depois de três anos – devido à pandemia – eis os festejos de Momo de volta! O Brasil sem carnaval é o mesmo que uma criança sem mamadeira. Aqui em “Candin”, desde 1990 que esta festa acontece no Balneário do Porto de Santa Cruz, que além de ser a entrada para o Sertão da Ressaca é também o embrião que gerou este torrão. Pra início de conversa, antes que alguém fale o que não deve, melhor eu já ir dizendo que quem criou verdadeiramente o carnaval do Porto de Santa Cruz foram Almir, Pio, João da Caçamba, Badim, Baé, Milzim e este locutor que vos fala. Estamos falando de 1979, quando a bordo de um velho Ford 1963, usarmos todo o prestígio de Almir para emprestamos todos os instrumentos da velha Banda Marcial do antigo Colégio Orlando Spínola. Por “todos”, entendam… dois pequenos tambores, um velho bumbo e três caixinhas – todos furados. Óbvio que já existiam os festejos de carnaval por estas bandas, porém, quem o levou para o Porto fomos nós.
Nos meados dos anos 1970, já existia neste torrão o velho Cordão dos Caretas (mascarados, travestidos de carrancas) que tomavam as ruas da velha Nova Conquista liderado por Pernambuco – pai do falecido Ratinho – e com o auxílio luxuoso de Diacísio da Rocha Viana tocando a sua acordeom. A festa era tão importante que puxava a nata da sociedade Nova-Conquistense para as ruas. Se tinha uma coisa que não havia neste tempo era a tal da discriminação social, tanto que pra apimentar o cortejo, Diacísio e Coringa combinaram uma disputa de blocos para saber qual era o mais animado. De um lado o “Bloco das Mariposas’ formado pelas formosos e lindas “Damas-da-Noite”, puxado gentilmente por Diacísio. Do outro lado o “Bloco Social” capitaneado por Coringa. As “meninas-de-vida-fácil” participavam normalmente dos festejos para delírio dos homens e muxoxo das donas-de-casa. Mesmo assim, ninguém botava gosto ruim. A disputa foi tão acirrada que houve até um empate técnico. Gentilmente, Diacísio abriu mão para que os Sociais vencessem a peleja.
Praticamente toda a população do vilarejo saiu às ruas para participarem efetivamente desta disputa. Claro que o bloco de maior sucesso era “Os Caretas” com as suas vestes confeccionadas em sedas coloridas – enriquecendo o evento. Moradores importantes do vilarejo como o jovem Valmar (o vendedor de bodoque na feira pública), o empresário Salvador da Casa (de artigos) de couro, o menino malino Zé Carlos (que depois viria ser da Coelba), Toinho da Primavera (o principal comerciante da região) e até aluados como Fostino, Permino, Carolo, Jovina, Olavo Olho de Prata e Goiás participavam destes festejos. Na alegria, todo mundo abraçava todo mundo. Goiás, por exemplo, era até beijado e pulava abraçado a um ou outro comerciante pra lá de “mamado”. Como é sabido por todos, o nosso “doido de estimação” não era lá muito chegado a tomar banho, porém, durante o cortejo, quem estava ligando pra isso? Queriam mesmo era extravasar a alegria incontida. Pulavam até o amanhecer do dia ao som de marchinhas como “A Cabeleira do Zezé, Mamãe eu Quero Mamar, Jardineira, Índio quer Apito, Alah-la-ô, Você tá Pensando que Cachaça é Água, Aurora, Me dá um Dinheiro Aí” e uma infinidade de outros grandes sucessos da Rádio Nacional.
“Os Caretas” tinha uma crueldade de meter medo! O cordão dos mascarados se divertia tocando terror na meninada que como eu, batia ali da casa dos dez e doze anos de idade. É impossível não se lembrar do estalido do chicote de Pernambuco – líder do bloco -, mascarado com uma carranca horrível deslocando ar e fazendo até adultos tremerem de medo. Estes festejos já rolavam em “Candin” desde a década de 1960. Além dos Bailes do antigo Clube Social organizados por Diacísio da Rocha Viana e Joaquim Barbeiro, os “Caretas” era o ápice dos festejos de Momo. Apesar das poucas ruas existentes na época, Silo Porto, Coringa, Seu Lindolfo, Vavá, Toinho da Primavera, Oriston e muitos outros saíam ao som da acordeom de Diacísio, do Pandeiro de Areré (Piolho de Cabaré) e até do sax de seu Lindolfo. Distribuía alegria para os marmanjos, terror para as crianças e estresse para a cachorrada (principalmente para Javali, cachorro do velho Olavo) que acompanhava todo o cortejo latindo em desespero.
Em 1981, os então “estudantes soteropolitanos” Henrique, João Rielson, Valmir de seu Ernestino, Miltinho irmão de Oriston, Isaac Santana e outros, criaram o Bloco “Os Biritas”, e, para fazer jus ao nome, só participava quem tivesse alguma experiência como secador de litros. Na época o abadá tinha o singelo nome de “mortalha” e era da cor preta. O Bloco era animado por uma aguerrida Bandinha de Sopro vinda sabe-se lá de onde e além dos criadores, contava ainda com a luxuosa participação de foliões como Badim, Zé Preto, Zequinha, Almir, Pio, Miranda, Tãozinho, Negro Dázio, Jaivan Acioly, o locutor-que-voz-fala e mais uma renca de amigos. Durante o dia Os Biritas desfilava pelas ruas da cidade e a noite comparecia na única boate existente por aqui. “O Casarão” tinha luz negra, globo e até luz estroboscópica. Sei que algum dos “soteropolitanos” trouxe a tiracolo o primeiro disco vocalizado do Trio Elétrico Dodô & Osmar turbinando os festejos que antes só contavam com marchinhas e sambas-enredos. Como nada é normal por aqui, os integrantes dos Biritas travaram entre si uma briga apoteótica. Parte jogavam a tradicional pelada carnavalesca “Time-de-Saia X Time-de-Vestido”. Até os mais inveterados machões se travestiam de mulher para não perder o baba. Como o horário da pelada coincidia com o horário do desfile do bloco, Henrique deu uma bistunta e sequestrou a única bola do baba. O gesto desencadeou uma perseguição cinematográfica por toda a cidade com seus integrantes trocando bofetes.
Voltando ao Porto de 1979, esta turma capitaneada por Almir tomou de assalto o lugarejo, levando à tiracolo alguns litros de canjebrinas, devidamente misturados a mel e limão e após assarem três quilos de carne do sertão em uma churrasqueira improvisada nos lajedos da beira do rio, degustaram sofregamente esta carne com pirão de farinha e bêbados feitos uns gambás, deram o maior vexame, improvisando uma batucada bem no centro do povoado, enlouquecendo completamente os pacatos moradores. Na trupe não existia nenhum virtuose na arte da batucada, imagine então bêbados e com os instrumentos desafinados? Fizeram logo uma fila indiana em torno da cruz centenária fincada na porta da igreja (de estilo rococó) e entre o canto pra lá de desafinado de “SE VOCÊ PENSA QUE CACHAÇA É ÀGUA E MAMÃE EU QUERO MAMAR” enlouqueceram completamente a população local com um barulho ensurdecedor, regados aos cantos embriagados e trôpegos das velhas marchinhas de carnaval. Lá pras tantas, Baé completamente moqueado, deu um bistunta e sequestrou o short de banho de João da Caçamba que morto de bêbado não esboçou nenhuma reação. Completamente pelado, o finado se invocou de subir na cruz da igreja, foi quando a esposa do caçambeiro interviu dando uma bronca tão disgramada em Baé que mesmo estando bêbado, deu um calundu e se sentou no balcão do bar de João Saracura chorando a tarde inteirinha. Deu um trabalhão para o trazermos para “Candin”! E assim, entre mortos e feridos, nascia uma década antes, o famoso Carnaporto que existe até hoje.
Em 1990, o Poder público só oficializou o Carnaporto porque Séba – um antigo “consertador” de aparelhos de tv – resolveu ligar um velho motor de casa de farinha e energizar a aparelhagem de som, em um tempo em que não havia luz elétrica por lá. Neste ano os moradores do povoado foram apresentados quase que à força ao primeiro festejo eletrizado daquele torrão. Em 1992 os festejos de Momo atingiram o seu ápice naquele balneário, além do desfile de grandes bandas, uma infraestrutura foi montada para dar o mínimo de conforto aos seus foliões. A construção de banheiros, chuveiros e churrasqueiras coletivas fizeram que dezenas de ônibus trouxessem foliões de outras cidades para prestigiarem o evento!
Mas, o maior folião que nossa cidade tinha neste tempo, era Jerim, um caboclinho extremamente trabalhador e ligeiro feito o diabo. Parecia até o personagem Papa-Léguas (criado por Chuck Jones com histórias desenvolvidas pelo escritor Michael Maltese que teve seu primeiro episódio exibido em 1949). Jero era tão veloz que era conhecido em toda cidade como ligeirinho. O caboclinho tinha três paixões em sua vida, mulher, cachaça e carnaval – não necessariamente nesta ordem. Este moço – acometido recentemente de um AVC, – gostava tanto de carnaval que chegou a ir à Salvador (sem um centavo no bolso) apenas para ver o Olodum. No Porto, quando “medicado”, dançava a noite “inteirinhazinha”. Parecia até ter uma pilha duracell. Quando chapava era um Deus-nos-Acuda, não deixava ninguém em paz! Degustava o que tivesse pela frente.
Alas que um belo dia, ao tentar lascar uma tora de madeira, Jerim errou a machadada e acertou o peito do próprio pé. Avesso à anestesia e pontos, preferiu tratar o ferimento com emplastro de folhas do mato e garrafadas de raízes amargas. O pé ficou a coisa mais feia do mundo, um talho que cabia um dedo indicador dentro. Sem poder andar, podia se ver o outrora “Ligerim” usando um cacetinho de madeira e pulando em uma perna só para se locomover bem lentamente.
Eis que em 1989, evitando concorrer com o carnaval de Salvador, A prefeitura de Vitória da Conquista – cidade que fica à 80 quilômetros de distância de “Candin” – resolveu recriar com pompa a Miconquista, micareta da cidade. Artistas como Daniela Mercury, Netinho, Ivete e Chiclete com Banana abrilhantavam o festejo. Um dia antes do evento, Jero que estava se recuperando do acidente resolveu ter uma audiência com o seu chefe do trabalho. Todos os colegas morreram de pena quando viram “Ligerim” adentrar o escritório caxingando amparado no cacetinho de madeira.
– Fala meu amigo, Jero. Tá melhor? – Quis saber o seu patrão.
– Estou não patrão. Olha aí o estado do meu pé! – Botou o pé em cima da mesa e após desamarrar um pano cheio de mastruz mostrou aquele talho de todo tamanho revelando uma carne branca igual carne de peixe. A coisa foi tão feia que o patrão chegou a virar o rosto. – O médico disse que eu preciso fazer um tratamento urgente pra não perder o pé. Quero que o senhor antecipe o meu salário para que eu possa fazer o tratamento urgente! – Penalizado, o patrão mexeu os pauzinhos e logo o referido salário estava limpo e seco nas mãos de “Ligerim”, – Pronto, Jero. Pode fazer o tratamento. – Jerim ficou tão agradecido que encheu o chefe de beijos.
No primeiro dia da Miconquista, o chefe foi de mala e cuia. Depois da passagem de vários trios, ele parou na Bartolomeu de Gusmão e ficou esperando a passagem do último. Eis que bem longe surge a luz de um trio. Aos poucos vem surgindo no horizonte aquele sonzeira de reggae e todo animado o patrão ficou esperando a passagem do carro elétrico. Assim que se aproximou mais um pouco ele detectou dançando bem na frente, um negrinho rastafári. Pula aqui, dança ali, joga capoeira, planta bananeira, jogando a cabeça para um lado, o corpo para o outro e tome reggae. A empolgação do folião chamou a atenção do chefe. Se não fosse pelo dreadlocks ele juraria que aquele era Jerim, porém, com o pé naquelas condições ele não poderia nunca estar ali fazendo aquele monte de mungangas. E o trio veio se aproximando e o cara foi parecendo com Jerim, foi parecendo, parecendo e se aproximando e o chefe não aguentando de tanta curiosidade correu até o caminhão elétrico e ao tocar no dançarino cabeludo, este se virou e ao ver o chefe deu um pulo e caiu no chão segurando o pé! – Ai meu pé, ai que dor, ai, ai, ai – Sim. Era realmente Jerim usando uma peruca rastafári e dançando todas. Em estado de choque o seu chefe ainda o viu sair mancando e desaparecer completamente no meio do povo. Falar o que?
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales – Bahia. Quadras de Fevereiro. Lua Nova de Carnaval.