– Ai meu Deus! Desce daí Totonho. Você vai cair, moço! Você vai morrer! Pelo amor de Jesus Cristo, desce daí! Se você morrer estaremos lascados!…
– O mundo é bonito pra caramba! Aí está ele, “todím” de cabeça pra baixo! O céu está descendo, a terra está subindo… O chão
tremendo, será que é assim que a gente bate a caçoleta, meu “Padin Ciço”? Tô “veno” tudo mais “verméi” que sangue de galo… Se morrer for assim, “inté” que é “bonzim”! – Dizia Totonho, abilolado de ponta cabeça, trepado na árvore de Surucucu.
Estamos em 1978, “Candin” ficando cada dia mais aluada e lá no fundo do campinho Augusto Flores (Bairro Nova Conquista), eis um “lote de vagabundos” preocupados, suando, tentando demover de Totonho a ideia de ficar igual um morcego, pendurado de ponta-cabeça na árvore.
O pé de Surucucu era o point onde a rapaziada se reunia à noite para trocar dois dedos de prosas, dar uma ou outra “furunfada” e até apertar (e acender) “unzinho” admirando a constelação de Órion no breu da noite. Totonho era filho de Seu Tonico da Padaria, adolescente problemático, encrenqueiro profissional, cujo hobby era sair pelas ruas trocando canetadas – utilizando como arma a ponta da sua Bic – e que após ser devidamente batizado em uma roda, deu logo umas duas ou três baforadas em um charuto de “Maria-Joana”, cujo efeito foi devastador.
Completamente aluado, lá estava o infeliz trepado de cabeça pra baixo no surucucu, se balançando pra lá e pra cá, correndo o risco de cair de cabeça ao tempo em que enxergava um lote de livusias. Os que participaram da “iniciação”, estavam “trancando”. E se acontecesse o pior?… “Candin” neste tempo era um “oásis”. A única droga que rolava no lugarejo – além do lança perfume – era a “Maria Joana” fornecida pelo carismático “Sivaldo, o índio, que selecionava criteriosamente a sua clientela. Só vendia para a nata social…. Dizia ter um nome a zelar e não podia se envolver com malandros. Assim, seus clientes eram conceituados estudantes, militares graduados, ricos empresários, políticos diplomados e comerciantes estabilizados… só fornecia para quem tivesse bons antecedentes…
Sebastião Alfaiate, por exemplo, era um destes clientes. Após tomar um litro de canjebrina, foi convidado para dividir uma bituca de cannabis com Zezim de Zulmira, ficou tão alucinado que quase bateu a caçoleta. Apertou, acendeu e tragou. Abilolado, seguiu de joelhos por quase um quilometro, um cortejo de formigas. Depois de ver aquela procissão de “sararazinhas” transportando folhas (alimento dos fungos para o sustento das suas crias), seguiu o cortejo puxando conversa:
– Aí Dona formiga, trampo pesado, né? Tô ligado que vocês estão levando a mistura pro formigueiro, n’um é? Oí, queria morar com vocês, tem jeito? Se tiver que comer folha, eu como, tá sabendo? Virei vegetariano, manjou? Carne não está com nada, o negócio é capim! – Seguiu as formigas até o formigueiro e – por motivos óbvios – não conseguiu entrar. Desolado, caiu na bobagem de colocar o “zoião” bem no buraco, tentando enxergar dentro do formigueiro e saiu com a cara mais inchada que as pernas de Maria Gorda, repleta de picadas das sararás. Diante da dor, Sebastião ficou completamente curado e abdicou definitivamente da maconha! Nunca mais quis saber de drogas!
Já… Joãozim de Zé de Arimateia, um cabeludo metido à hippie que existia por aqui, deu o maior vexame da sua vida. Após baforar um charutão com uma erva importada do Pará, entrou em um lance tão medonho que provocou um escândalo colossal! Completamente nu, escapou dos seguranças e invadiu a festa de formatura do magistério. Descontrolado, subiu na mesa do banquete, e se invocou de mergulhar de cabeça em um copo de champagne:
– Vou saltar, segure o copo aí garçom que eu vou pular de agulha, tá ligado? – O vexame só não foi maior porque ele foi capturado. Entre gritos e palavrões levou uma dúzia de cascudos e foi jogado no olho da rua.
Vandim Pé-de-Valsa, era todo metido à dançarino. Depois de um árduo dia de labuta, convidou Herculano de seu Otávio para “abaterem um mesclado” – mistura de cannabis com crack. Como Herculano não enjeitava nem injeção na testa, topou na hora. Logo, no finalzinho da tarde lá estavam eles na estrada do Porto de Santa Cruz montados em uma moto caindo aos pedaços. Impacientes, desceram na primeira cancela que encontraram e depois de solverem gulosamente o conteúdo do cachimbo, começaram a ver estrelas jogando capoeira, arco-íris se contorcendo e óvnis dando rasantes. Lá para as tantas, o condutor deu uma dor de barriga e resolveu “bater um barro”. Como estava ressecado, sofreu para desenvolver a atividade e quando terminou, se limpou com um “mói” de folhas que encontrou no caminho. No escuro não percebeu que era urtiga. Diante da dor que lhe queimava impiedosamente o fiofó, se esqueceu completamente do amigo, montou nesta moto e “caiu na lapa do mundo”. Herculano ao ouvir o barulho da motocicleta se desesperou e berrando à pleno pulmões correu atrás, mas quem disse que foi ouvido? O jeito foi retornar na canela, xingando tudo quanto há. Enquanto Herculano rogava as pragas, Vandim seguia desembestado na moto se contorcendo, imaginando ter o amigo ao seu lado, sentado na garupa:
– Carái véi! Meu rabo tá queimando igual pimenta malagueta, merda! Segura aí, vou passar lotado no mata-burro! Cuidado para não cair! Quando a gente chegar vou arrumar um talco, tá ardendo demais… aaaiii… cacete! Oia a areia aí, a “mota” pode derrapar, segura aí pra não cair, morou?
E assim, morrendo de dor, Vandim veio conversando como se o amigo estivesse ao seu lado, só percebeu a ausência do companheiro quando parou na porta do principal boteco da Lagoinha. Ao se virar, não acreditou no que viu…
– Ôxe, que diabo é isso? Cadê ele?!!! – Desesperado, começou a imaginar o que tinha acontecido. Será que ele tinha caído em algum lugar? Será que descera da moto em movimento? O que havia sucedido? Por mais que tentasse, não se lembrava de absolutamente nada! Assim, mesmo com o fiofó ardendo, saiu pela cidade procurando Herculano! Depois de rodar metade da cidade resolveu voltar com tudo em direção ao Porto, foi quando encontrou com o colega com os pés esfolados e “rezando” tudo que era impropérios na sua direção!
– Graças a Deus! O que houve com você? Caiu da garupa?
– O que houve comigo? Vá se lascar, “fí” de rapariga! Você me deixou vir andando, seu drogado da porra! – Aliviado Vandim pulou da moto e rolou de rir enquanto Herculano xingava o que podia.
Manelim era o retratista da cidade. Fumava uma maconha lascada. Todo santo dia tinha que “fazer a cabeça” acendendo um charuto de todo tamanho! Depois de saciado, saía em busca de um boteco, sentava-se na mesa, pedia um litro de canjebrina e duas canecas de alumínio que eram enchidas até os beiços. Após ficar um tempão brigando consigo mesmo, enxugava o litro sempre dividindo nas duas canecas. Alegava que um parceiro lhe acompanhava na degustação. Depois de bêbado feito um gambá, pagava a conta e saía trocando as pernas, até cair na calçada da casa onde morava, dormia pesadamente até o dia seguinte. Isso era uma constante. Certa feita, João da Caçamba não aguentou e pra lá de curioso, perguntou na bistunta o porquê de ele beber em duas canecas? A resposta foi constrangedora:
– João, só vou contar porque lhe considero! Nem beber eu bebo. De uns tempos pra cá deu de me aparecer um espírito beberrão. O bicho tem uma sede lascada! Ninguém pode vê-lo, só eu. Um negão deste tamanho, dois metros de altura, boca banguela e feio feito o cabrunco. Esta entidade já chega me metendo o rei. Me faz beber à força. Se recusar, estou fodido! É por isso eu encho as canecas. Depois que a gente seca o litro ele sai me empurrando pelas ruas! Ah, meu irmão, só Deus sabe como eu tenho sofrido na mão deste pinguço! Ele falta me matar de bater. Ou bebo, ou apanho! – A partir desta data, sempre que João encontrava o retratista trocando as pernas, gritava no meio de todo mundo:
– Apanhando do negão, hein Manelim?!!! Toma mais uma!
Mas voltando à situação de Totonho, lá estava ele, tal qual um morcego, pendurado de ponta-cabeça, elevando ao máximo a tensão dos companheiros. Balançava para um lado, balançava para o outro, ia pra cair, se segurava e arrancava um suspiro dos presentes.
– Pelo amor de Deus, Totonho. Desça daí, se você cair vai quebrar o pescoço, caralho! A árvore é alta! Se você cair vai ficar todo mochilado! – Implorava os amigos morrendo de medo do caboclinho se matar!
– Ái que delicia é o mundo… agora eu sei o que é o avesso, do avesso, do avesso… ô coisa linda! – Dizia Totonho pra lá de embasbacado. – Eu agora vou voar igual um passarinho… – Conversa vai, conversa vem e alguém teve uma ideia nada original:
– Quer saber de uma? Vou chamar seu Tonico, o filho é dele, ele que embale este problema! – Gritou Rosemiro já correndo em direção à padaria. Meia hora batendo, seu Tonico (um daqueles nordestinos pra lá de enfezado) abriu a porta com cara de poucos amigos. Ao ver o maconheiro na sua porta, quis morrer…
– Tomara que você tenha um bom motivo para estar esmurrando minha casa há estas horas da noite? Vocês sabem muito bem que eu detesto maconheiro!
– A coisa é séria, seu Tonico. Totonho seu fí está querendo se suicidar!
– O que? – Perguntou um incrédulo padeiro ao tempo em que Rosemiro explicava tintim por tintim, ocultando, obviamente, a parte da maconha. Agoniado, o velhinho saiu correndo trajando apenas a velha ceroula rasgada, tendo Rosemiro, trôpego, a acompanhá-lo. Quando o pobre pai chegou debaixo do surucucu e viu a cena, endoidou:
– Totonho, fi de uma jumenta, o que fazes dependurado de cabeça pra baixo nesta árvore, seu chibungo? Viraste morcego? Se cair daí eu juro que lhe mato!
– Oí, pai! Massa! Tudo na paz de Jesus Cristo… Oí, coroa, tô ligado na sua, tá sabendo? “Vou batê pra tu pra tu batê pra tua patota”! – Falou o caboclinho como se estivesse flutuando, recitando a música de Baiano e dos Novos Caetanos.
Descontrolado, seu Tonico deu um “puxavanco” e Totonho desabou feito uma abóbora. Caiu e ficou de bunda pra cima. Após tirar um cipó de goiabeira, o velho moeu o filho de pancadas. Totonho levou a maior surra da vida!
– Toma cabra safado, toma, toma, toma! – Gritava o infeliz descendo o rei! Foi batendo até na padaria, Totonho correndo na frente e os amigos atrás. A surra foi tão pesada que o garoto ficou acamado por três dias, inclusive, carecendo dos eficientes serviços do farmacêutico Rufino.
Quem imaginava Totonho ser um caso perdido, apostou errado. Depois desde dia, o moço parou de beber até refresco e virou um exemplo pra cidade.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Poeta e Escritor.
Cândido Sales, Bahia. Minguante de Verão.