O que se passa na cabeça de um urubu? Saber exatamente o que ele fazia ali em cima, nem mesmo ele sabia. Planava delicadamente em uma ou outra corrente de vento, sem fazer o mínimo esforço, deixando se levar pelo vento, girando gostosamente no ar quente e circulante, hora lentamente, hora em uma velocidade estonteante. Uma ou outra brisa gelada acariciava a sua carranca enrugada amenizando o calor causticante, o levando confortavelmente de um ponto ao outro. As horas passavam lentamente e de olhos fechados ele se sentia diferente dos que voavam ao seu redor. Na prática nunca fora chegado a voar, em bando, ainda pior. Mas, ali estavam todos, olhando com desprezo lá de cima, uma casinha lá longe, uma chaminé com fumacinha branca se destacando, postes eretos fincados ao chão com fios paralelamente esticados, cheiros variados de farta comida em decomposição… Enfim: “Oh vidinha lascada de boa”!
Sem entender o porquê, sentia uma força estranha o puxando em direção a aquele torrão. Estamos em 1989, a cidade, uma “Candin” liberta de um coronelismo que durara duas décadas. Onde os “caciques” da Arena 1 se revezavam no poder com os da Arena 2. Para os que não estudaram esta época, ARENA era um partido político nacional que imperava no Brasil, em especial no Nordeste – tendo a Bahia como um dos “currais” mais respeitados dentre todos.
O sistema era bipartidário, ou seja, apenas dois partidos, “um governo e uma oposição”. A Aliança Renovadora Nacional batia de frente com o MDB, Movimento Democrático Brasileiro que era taxado de comunista em todo o Brasil e, excetuando as grandes capitais, não conseguia ganhar da oligarquia totalitária dos coronéis nordestinos. Tempo em que as eleições para Presidente eram indiretas e abria-se timidamente a votação direta para governador. Já nos “currais”, votava-se nos coronéis (confirmando literalmente o que o Mestre Luiz Gonzaga dizia):
– Vai votar em quem, Dezim?
– No Coroné! – Dizia com uma firmeza que metia medo.
– E ocê, Zé de Tonha? – Ni quem o Coroné mandá, ué?…
Era comum chegarem aqui pequenas caravanas de políticos representando o MDB e fazerem em pleno meio de semana – na porta do Mercado Municipal -, inflamados discursos contra o poder! Figurinha carimbada na região e presença constante aqui era o agora ex-deputado (estadual e federal) Elquisson Soares:
– Não podemos mais suportar este governo militar sanguinário imperando em nosso país! Fora com eles, fora com eles, fora com eles! Vêm aí eleições diretas para Governador, vamos dar um basta nisto! Sua arma é o seu voto! Votemos contra a ditadura, votemos a favor da liberdade e contra os capachos dos militares! – Dizia o então futuro deputado espumando os cantos da boca em uma inenarrável ira. Tudo muito legal se houvesse plateia! Não tinha! Eles todos sabiam que discursar no meio da tarde em pleno meio de semana em cidades como “Candin”, era atirar no próprio pé, mas, mesmo assim, insistiam. Presenças garantidas na praça apenas Elói (o aluado flautista que prestava serviço na casa da falecida Dona Preta – mãe do ex-prefeito Eduardo Pontes), Permino – louco de pau –, Goiás o nosso doido de estimação e uns dois ou três estudantes “revoltados” que odiavam a ditadura, mas que tinham que comparecer ao evento escondidos dos pais (que obviamente, votavam na Arena). Assim, após uma hora de inflamados discursos, sem um aplauso, sequer… Elquisson guardava o seu megafone (é bom lembrar que não tínhamos energia elétrica) no saco e com a sua “comitiva” de duas ou três pessoas antes de cair na lapa do mundo ainda tinham que ouvir Goiás gritar: – É todo mundo da minha “Ganga”! – Também discursava por aqui o falecido Rômulo Almeida, na época um dos mais destacados políticos da Bahia e o Doutor Advogado Djalma Nobre. Eles saíam e os eleitores continuavam votando no coronel!
Toda pequena cidade do Nordeste era assim! Nós não éramos diferentes. Passara por aqui uma legião de maus administradores que ficaram vários anos se revezando no poder e a cidade visivelmente se degradando. A política sempre foi muito forte aqui, tanto que na calada da noite conchavos políticos – que visavam apenas dar uma rasteira no povoado de Quaraçu -, mudaram o nome da cidade para Cândido Sales.
Em tempo de eleições os moradores apelidaram os comitês de Arenas. Faziam até música – paródias compostas pelos mais ferrenhos eleitores: – “Arena 1, não vai roer, eu vou fazer de barro um prefeito para você” … – Era o divertimento de uma população politiqueira. Na época existia apenas um único instrumento (um enorme zabumba) e era “tocado” com uma volúpia indescritível por Paulo Açougueiro, sempre no mesmo ritmo… Tum-tum, Tum-tum-tum, Tum-tum. Fazia-se um “trenzinho” com dezenas de pessoas (umas atreladas às outras) e dançavam a noite inteirinhazinha. As músicas eram adaptadas ao ritmo imposto pelo tocador: Tum-tum, Tum-tum-tum, Tum-tum. Não existia energia elétrica, assim, os comitês (Arenas) funcionavam à base de fifós, candeeiros de carbureto, Aladins e lampiões a gás. O espaço físico ficava tão lotado que saía gente pelo ladrão.
Mas, voltemos ao nosso amigo urubu e o seu voo solitário. Ignorando solenemente toda esta narrativa lá estava ele, planando tranquilamente no vácuo de uma corrente térmica, enquanto a sua trupe buscava desesperadamente uma ou outra carniça que lhe serviria de banquete naquele 2 de janeiro ensolarado. Ele sabe-se o porquê, olhava para aquele vilarejo metida a cidade, com pessoas afobadas andando pelas ruas, algumas com destino definido, outras nem tanto. Dentro da Prefeitura recém-ocupada pelos ganhadores ele via uma renca de jovens perdidos tal qual barata tonta, sequer, sabia o que fazia ali. Na Avenida Rio Branco – que corta ao meio o coração da cidade -, pessoas em filas procuravam adentrar a recém-inaugurada agência do Banco do Brasil e um pouco abaixo, a praça da feira com o seu movimento caótico de feirantes comercializando uma infinidade de variedades. Se houvesse um “centro”, ele seria exatamente ali.
Indiferente a tudo isto, o orgulhoso urubu seguia o seu destino. Depois de deixar o seu bando para trás, o “metido” começou a dar voos rasantes na Praça da Prefeitura. Voava de um lado para o outro com uma tranquilidade indescritível até se acomodar no topo de um poste. Sentou-se, equilibrou-se, abriu as asas como se esperasse os aplausos. Dentro da Prefeitura rolava o caos. A antiga administração não deixou, sequer, um documento e nenhum equipamento, apenas cadeiras e escrivaninhas em estados calamitosos, A cereja do bolo era um fedor insuportável que deixava o caboclo com falta de ar. Uma coisa horrível que dobrava o estômago! Parecia que alguém havia jogado algum animal morto ali dentro.
O prefeito recém-eleito ditava as portarias e os decretos que seriam publicados no dia seguinte e a única máquina de datilografia existente (alguém trouxe emprestada) trabalhava mais que barbeiro em véspera de festa! Alguém ditando um velho rascunho, “dedos datilografando em uma engrenagem de pernas por ar” e lá fora, o nosso amigo urubu dando rasantes sobre o Centro Administrativo. Voava e se sentava no topo do poste, petequeava de um pé para o outro, mantinha o equilíbrio e voltava a voar sobre o prédio.
Não demorou muito e lá veio um correligionário apaixonado denunciar o referido: – Seu Jaimilton, seu Jaimilton… Tem um “arubu” rondando a prefeitura, há de ser mandiga daqueles “féla de uma égua”! Cuidado que “arubu” é um bicho azarento!
– Que nada, seu Filó! – Respondeu um tranquilo Jaimilton – o coitado deve estar com fome diante deste calor todo!
– Ele foi mandado! Deve de tá quereno arguma coisa d’cês! O bicho está “pulano” mais que passista de frevo no teiado! Deve de ter sido mandado pru argum mandingueiro!
– Se avexe não! Se for mandinga “nóis disfaiz” e manda de volta dobrada para quem mandou! – Falava Jaimilton sorrindo, com uma tranquilidade assustadora. – Alas que deve ser este fedor medonho que está incomodando o bicho, seu Filó!
– Tenha cuidado, seu Jaimilton! Esse povo num é brinquedo não! Tem uma renca de mandingueiro no “mêi” deles!
– Eu sei, seu Filó! Mas nós também temos as nossos catimbós. Está vendo lá dentro? É Orím da Coelba pagando a promessa que fez “pra nós ganhar” e está cortando o cabelo do filho dentro da prefeitura.
Pois é. Orím é o apelido de AILSON DE CASTRO LESSA que na época trabalhava na Coelba. Oriundo da cidade de Botuporã na Bahia, ao chegar a Cândido Sales dois anos antes se decepcionou com o descaso que imperava por aqui e acabou se “apaixonando” pela causa que levou Jaimilton ao poder. Fanático até os dias de hoje, na época, Orím fez uma promessa durante a eleição para Jaimilton vencer! Não foi que venceu? Assim que houve a posse, a primeira coisa que ele fez foi pagar a promessa levando seu primogênito para que tivesse o cabelo cortado dentro da Prefeitura.
La fora o diabo do urubu continuava infernizando a vida de todos! Pulava de um poste para o outro, ameaçava cair, se equilibrava, abria as asas, estufava o peito e logo passou a chamar a atenção de um monte de correligionários. Voava, pegava uma térmica, planava, descia e passava rasante sobre o Centro Administrativo. Os correligionários atiravam tudo quanto há no bicho tentando tangê-lo para longe, quanto mais tentavam mais o bicho ficava arisco!
– Xô “arubu” catimbozeiro! Xô! Sai daí diabo, sai… Xô, fora, fora!
Você está pensando que ele ligava? Qual nada… Ignorava solenemente quem tentava tangê-lo! De repente alguém pegou uma destas enormes vassouras de “vasculhamento” e tentou acertá-lo, e ele, depois de dar um voo rasante sobre o prédio da Prefeitura, se equilibrou na ponta de um poste bem no centro da Avenida Rio Branco. Depois de saltitar por alguns minutos sobre a cabeça do poste caiu na besteira de se sentar nos fios de alta tensão que conduzia a energia elétrica para a pequena cidade. Provavelmente você já deve ter visto vários pássaros pousados em fios de alta tensão e não acontecem nada, os especialistas explicam que a distância entre as patas dos pássaros é bem curta, não é suficiente para gerar um potencial elétrico entre dois pontos, como o urubu é uma ave maior e mais pesada que um pássaro, o que se viu a seguir foi aterrador… Um estouro assustador (similar a um trovão) iluminado por uma descarga enorme de raios elétricos.
A explosão foi tão forte que a cidade todinha ficou sem energia no exato momento que o bicho despencava pesadamente no chão. Caiu mais preto do que já é normalmente se transformando em um tição duríssimo! Os primeiros curiosos que correram para vê-lo informou que as pontas das suas asas ainda saíam fumaça quando atingiu o solo!
– Viu aí, capeta dos “zinferno”! “Ocê” é forte, “mar nóis é mais forte”! Mais forte são os poderes de Deus! – Bradou seu Filó abraçando-se à Jaimilton que também chegara para testemunhar o fato. O prejuízo elétrico foi tamanho que luz só voltaria dois dias depois – comprometendo definitivamente a transição. Todos os funcionários foram à rua testemunhar a morte do urubu. Enquanto o tição esticado no meio da rua atraía a atenção, um curioso botou uma escada na porta do Centro Administrativo e descobriu que sobre o telhado tinha um grande gato em decomposição – daí o fedor medonho que incomodava a todos. O gato foi retirado e enterrado juntamente com o urubu eletrocutado.
No dia 2 de janeiro de 1989 Cândido Sales entrou para a história como o dia em que um urubu morreu eletrocutado, comprometendo o primeiro dia de trabalho da nova administração.
Luiz Carlos Figueiredo.
Poeta e escritor
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Janeiro de 2025.
Lua cheia, verão!