No longínquo ano de 1986 a oposição representada pelo PMDB destronava o “carlismo” na Bahia após 20 anos de hegemonia política. O novo governador da Bahia era o ex-exilado Waldir Pires. Este sucedido mexeu com todos os municípios do estado, Cândido Sales, obviamente não poderia ficar de fora. Os cargos que o estado tinha em nosso município eram de quatro professores, um diretor, um agente de portaria e um delegado. Os cargos da educação foram preenchidos automaticamente, o de delegado sobrou, já que nenhum dos correligionários se habilitara para exercê-lo. Convenhamos… com um grupo de oposição – que apoiara o novo governador – formado por um ator canastrão, um cantor desafinado, um poeta sonolento e um atleta em fim de carreira, quem teria perfil para ser delegado? Assim, o jovem líder Bigode passou a ter nas mãos uma “batata quente”. Não poderia simplesmente devolver o cargo para o antigo grupo que se especializara na arte de promover viradas de caminhões e subtrair as cargas que eram vendidas a preços módicos ao comércio local na calada da noite, já na bacia das almas, o empresário musical Jones, que era o único a ter um curso de detetive por correspondência através do Instituto Universal Brasileiro, depois de fazer todo “doce” do mundo resolveu aceitar a missão, tendo o cuidado de confeccionar uma imensa estrela de lata – destas usadas pelos xerifes americanos – e sair marchando pela cidade, usando dois colt’s 45 na cintura e a imensa estrela no peitoral.
Em menos de sessenta dias no cargo, Jones se empolgou e saiu tocando terror a torto e a direito pela cidade, incomodando até mesmo os correligionários. Batia em desafetos, prendia os amigos, extorquia os donos de bares e boates e confiscava armas, deixando o município em polvorosa. Diante da pressão, Bigode, aconselhado por alguns amigos, deu uma bistunta e resolveu diminuir o ímpeto da autoridade recém-constituída, nomeando imediatamente para subdelegado a figura mais exótica da cidade, Dias. O subdelegado seria o assessor em tempo integral do delegado e tinha a missão de tentar evitar os excessos na condução cotidiana da lei e da ordem. O figuraça Dias era um antigo morador deste torrão, que após militar por alguns anos no exército brasileiro, se tornando – segundo ele próprio – um expert na arte da guerrilha, resolveu vir descansar aqui por um tempo. Louco de pedra, chamava a atenção pela imensa barba que lhe batia no umbigo, devidamente entrelaçados aos cabelos negros e encaracolados que (quando soltos) lhe batiam na cintura, Barba Negra – apelido que os meliantes lhe deram – chocou toda a população devido a utilizar alguns métodos pouco ortodoxos no combate ao crime. Enquanto o titular viajava acompanhando o “Conjunto Reflexo do Sol” por outras paragens, Barba negra resolvia todos os crimes que aconteciam por aqui. Apaziguava brigas de mulheres ciumentas, intimava as fofoqueiras ameaçando prendê-las, forçava os motoristas caloteiros a pagarem pelos serviços das “mulheres-damas”, fazia o casamento forçado daqueles que “tiravam as meninas de casa”, dava uma dezena de cascudos nos bêbados mais malinos, corria atrás da meninada que trabalhava na beira da rodagem e prendia todos os ladrões de galinhas que subtraiam os galinheiros. Ah! Barba Negra não era brinquedo não! Tinha uma marra estonteante. Chegava aos bares já perguntando:
– Está tudo em dias, aí? – Antes que os presentes pudessem responder ele já completava: – Fiquem sabendo que Cândido Sales agora tem lei. Se escrever e não ler, o pau vai comer! – Andava pelas ruas de “Candin” com os cabelões criteriosamente enrolados, e para não chamar a atenção dava alguns nós na barba para que ficasse menor. Tinha um “andado” todo característico, vestindo sempre a mesma calça de camuflagem, a jaqueta do exército pra lá de desbotada e um velho coturno furado na sola. Ao fazer a ronda, enchia o seu velho Ford 58 (literalmente caindo aos pedaços) de espigas de milhos, jerimuns, macaxeiras e melancias produzidas no seu meio alqueire de terra localizada às margens do Rio Pardo e saía vendendo pelas ruas e até na feira livre aos gritos de “chega mais patroa”! Era a união da fome com a vontade de comer – não necessariamente nesta ordem.
Jones não gostou nem um pouco de ter ao seu lado aquele subordinado metido a “sebo”. Na concepção dele bastavam os guardas municipais Deusdará e Antônio Liso para assessorá-lo, mas, quem mandava mesmo era Bigode, assim, mesmo a contragosto, resolveu acatar as ordens superiores. Depois de algum tempo, a população de Cândido Sales se acostumara a ver Barba Negra, sempre perseguindo algum meliante com a sua velha jaqueta surrada, seu coturno furado e munido de um porrete de todo tamanho na mão. – Teje preso, safado. Aqui é a lei. Fique quieto senão lhe quebro no pau! – Ninguém reagia. Barba chegava, amarrava o caboclo pelo pescoço com uma corda reforçada e depois de lhe dar alguns pescoções o arrastava na base do empurrão. Mesmo conduzindo o bandido, Barba – pra não perder a prática – comercializava os frutos e verduras produzidos na sua rocinha. Olha, verdade seja dita, neste tempo ainda não existiam aqueles bandidos perigosos de hoje em dia, mas, os poucos ladrões de galinha que havia na cidade comeram o pão que o diabo amassou nas mãos do subdelegado. Quem não partiu às pressas para São Paulo viu-se obrigado a se aposentar antes do tempo.
Quando acontecia um roubo, Barba Negra prendia o suspeito e depois de moer o caboclo no cacete, saía com o infeliz todo quebrado pelas ruas da cidade mostrando para todo mundo quem andara roubando a padaria do seu Baiano. O método de Barba Negra era exemplar para a maioria dos bandidos, queria mostrar que o crime não compensava, não tinha valente que não abrisse o bico diante da sova dada com gosto pelo subdelegado. E assim, a sua fama foi crescendo e ofuscando o brilho de Jones que passou a ficar até enciumado do sucesso meteórico de Barba. Quando o “Conjunto Reflexo do Sol” ia tocar em uma ou outra cidade e Jones ficava um ou dois dias fora, Barba Negra se transformava em rei! Desvendava um crime e após capturar o suspeito, saía dando entrevistas para a RDC (Sistema de Alto-falantes que se autointitulava Rádio Divulgadora da Cidade) e até para a concorrente “Voz Independente”, através do programa de maior audiência da cidade que era o do locutor Janguinha que fazia muito sucesso por aqui.
– Estamos aqui com Barba Negra, o delegado que está botando pra lascar em nossa cidade. E aí, Dias, tem prendido muitos bandidos por aqui? – Perguntava Janguinha, inocentemente.
– O banditismo está diminuído, Janga. Estou botando todos eles pra correr. Comigo é assim, ou corre ou morre! É bom eles saberem que Barba Negra não é brinquedo não. Ei, psiu! Estou falando com você que é bandido, ladrão, assassino ou maconheiro, fique esperto, Barba Negra está no seu pé, vou lhe meter no xadrez e lhe dar uma pisa, seu escroto! – Mandava diretamente o seu recado para os interessados, não estava nem aí. A fama era tanta que ele fazia questão de nem mesmo citar o delegado Jones que na teoria era o seu superior.
Os acidentes com os caminhões e consequentemente os roubos de cargas diminuíram sistematicamente fazendo que a renda dos guardas Deusdará e Antônio Liso caísse vertiginosamente. Acostumados com a mamata, os assessores tentavam de todas as formas desestabilizarem a dupla de delegados, porém, não obtiam sucesso. De quando em vez, Dias dava de cara com um ou outro bandido que queria lhe corromper a qualquer custo, quando recebia estas propostas o subdelegado virava o capeta e quebrava o meliante no pau. Quando capturava um ladrão mais escolado, que mesmo diante do cacete se negava a falar, ele usava um método nada ortodoxo. Deixava o cara “de molho” em uma cela separada, incomunicável e sem comer ou beber por dois dias e quando o relógio da cadeia batia meia-noite, o subdelegado adentrava sorrateiramente o escuro na cela, todo molhado e nu como viera ao mundo, com a barba negra batendo no umbigo e a cabeleira batendo na bunda. Vou contar uma coisa, a visão não era das mais bonitas de se ver. Quando o bandido via aquela figura pra lá de exótica, saltitante, transtornado, rangendo os dentes e rosnando tal qual um cachorro louco, trazendo na mão um porrete de todo tamanho… Meu irmão… Diante daquela cena pra lá de surreal não tinha “valente” que não abrisse o “bico”. Confessava até crimes que não tinha cometido! A vizinhança já estava até acostumada. Quando dava meia noite no entorno da delegacia o que mais se ouviam eram gritos desesperados:
– Eu falo, eu confesso! Sai daqui! Sai daqui! Fui eu, fui eu! Vá embora, vá embora! Socorro… Tira ele daqui! – Ninguém por mais valente ou teimoso que fosse, aguentava ver aquela criatura grotesca, pelada e saltitante, balançando o saco escrotal no escuro da cela, munido daquele enorme cacete na mão (sem trocadilhos, por favor).
Apesar de toda a confusão que acontecia entre o delegado e Barba Negra, devidamente turbinada pelas fofocas de Deusdará e Antônio Liso – inconformados pelo prejuízo causado pela falta da subtração das cargas -, eles só foram exonerados dois anos depois, diante do assassinato à queima-roupa do comerciante Dázio do Bar. Incapaz de solucionar o crime, a opinião pública cobrou diretamente do então Governador Nilo Coelho (que substituiria Waldir Pires) e a dupla foi exonerada.
Barba Negra ainda saiu candidato, sem sucesso ao cargo de Deputado Estadual pelo PT em 1988. Em 1997 foi assassinado covardemente enquanto dormia. Deram-lhe remédio para dormir e esmagaram violentamente o seu crânio. As investigações afirmaram que o folclórico Barba Negra foi assassinado por um dos próprios filhos.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Bahia. Quadra de Julho de 2023
Minguante de Inverno.