O número de ataques de escorpiões no Brasil aumentou mais de 150% ao longo de uma década, e os mais de 180 mil casos ocorridos no último ano são provavelmente uma fração do número real, afirmam cientistas que veem uma “epidemia silenciosa” do problema. No ano passado, 133 mortes por escorpionismo foram registradas no país.
A preocupação com o envenenamento pelo aracnídeo, para o qual os cientistas usam o termo “escorpionismo”, foi objeto de manifesto publicado por pesquisadores brasileiros na forma de um artigo de opinião na revista Frontiers in Public Health, uma das mais influentes do mundo na área de saúde pública.
O grupo, que reúne representantes de todas as regiões do Brasil, afirma que a urbanização mal planejada, misturada às mudanças climáticas, está criando condições ideais para a disseminação do animal peçonhento.
Segundo os pesquisadores, liderados pela cientista Eliane Arantes, pioneira no estudo do tema na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, a taxa de incidentes relatados já representa uma pressão relevante sobre o Sistema Único de Saúde (SUS). O sistema público, que detém os estoques de soro antiveneno para o animal, acomoda todos os casos de emergência, que estão aumentando.
No artigo, os pesquisadores alertam para o problema de que, como é comum acontecer em doenças transmitidas por vetores, o número de casos notificados é uma subestimativa do número real de casos.
“Os números oficiais mostram um quadro altamente preocupante, mas a realidade provavelmente é muito pior. O escorpionismo não é apenas um problema emergente de saúde pública, é uma epidemia oculta que cresce descontroladamente”, escrevem os pesquisadores.
A taxa de mortalidade pelas ferroadas, que oscila em torno de 1 a cada 1000 casos notificados, não é alta em termos relativos. Mas, dado o crescente número de incidentes com escorpiões, tem se tornado um problema relevante em termos absolutos. Em 2024, o Brasil registrou 133 mortes por escorpionismo.
“A urbanização rápida e desordenada, especialmente em áreas com infraestrutura precária, saneamento inadequado e gestão inconsistente de lixo, cria ambientes ideais para a proliferação de escorpiões”, dizem os cientistas. “Essas condições proporcionam abrigo abundante em escombros, sistemas de esgoto e dentro de residências, aproximando humanos e escorpiões.”
As mudanças climáticas, a outra ponta do problema, contribuem para a proliferação do aracnídeo por causa dos verões mais quentes e dos períodos alternados de chuvas intensas e secas, pois a maioria das espécies é bem adaptada a ambientes quentes e úmidos.
Escorpião amarelo é o que mais preocupa
A espécie que mais preocupa os cientistas no país é o escorpião-amarelo (Tityus serrulatus), que possui características favoráveis para se adaptar à urbanização crescente. Sua reprodução é por partenogênese (a fêmea não precisa ser inseminada por machos) e sobrevive até 400 dias sem comer.
Os pesquisadores afirmam que a expansão urbana fora das grandes capitais brasileiras está ajudando esta e outras espécies do gênero Tityus a se espalharem pelo país. Segundo a cientista Manuella Pucca, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coautora do novo artigo, existe um “mito urbano” de que escorpiões são um problema maior em áreas rurais.
— Esses escorpiões vivem em ambientes de esgoto, e o alimento preferido deles ali são as baratas, por isso é comum entrarem nas casas pelos ralos. Uma das situações em que costumam ocorrer incidentes de escorpionismo, por exemplo, é quando as pessoas vão tomar banho — afirma.
Uma vez dentro de casa, o animal costuma buscar abrigo dentro de sapatos e roupas guardados, motivo pelo qual é importante checar com cuidado esses objetos antes de usá-los.
Pucca diz que um desafio no combate a esses animais no Brasil hoje é que as informações sobre os hábitos dos escorpiões e as medidas de prevenção são pouco disseminadas. O Ministério da Saúde e instituições científicas já produziram peças como cartilhas didáticas e vídeos instrutivos, mas nunca houve distribuição maciça desse tipo de material, dada a concorrência dos escorpiões com outras ameaças de saúde pública, como o mosquito da dengue.
Uma coisa que muitas pessoas não sabem, por exemplo, é que realmente é só o SUS que está preparado para atender casos de envenenamento, e geralmente só em hospitais e postos de saúde grandes. Quem busca atendimento em hospitais privados por conta própria acaba tendo de ser reencaminhado.
Brilho no infravermelho
Para prevenir encontros com o aracnídeo indesejável, Pucca recomenda o uso de pequenas lanternas de luz ultravioleta (que podem ser compradas por menos de R$ 35 na internet).
— O Tityus brilha intensamente quando é iluminado com essa frequência de luz, e vale a pena usar esse equipamento para revistar, por exemplo, um quarto que ficou muito tempo fechado e pode ter sido invadido pelo animal — diz a pesquisadora.
No caso de envenenamento pela ferroada, o recomendado é que sempre se procure um hospital ou posto de saúde. No pronto atendimento, nem sempre o médico opta pelo uso do soro antiveneno, em geral reservado para crianças e idosos com comorbidades. A avaliação clínica é feita caso a caso.
Além de dor intensa e inchaço, o escorpionismo provoca um coquetel de outros sintomas que podem representar risco maior, dependendo da situação. A literatura médica já registrou, entre outros problemas, perda de pressão sanguínea, arritmia cardíaca, colapso cardiovascular e até edemas pulmonares em razão do envenenamento.
No artigo da Frontiers, os cientistas apontam que, se os incidentes continuarem a subir no mesmo ritmo no Brasil, o número de casos notificados de escorpionismo pode ultrapassar os 25 mil em dez anos.
Isso requer, entre outras coisas, planejamento de longo prazo em saúde pública, incluindo a ampliação de produção de soro antiveneno, que hoje é feita pelo Instituto Butantan.
“O fortalecimento das campanhas de conscientização pública sobre os riscos de escorpiões, medidas preventivas e a importância da notificação de casos é crucial para obter dados mais precisos e implementar estratégias de controle eficazes”, afirmam os cientistas no artigo.
Fonte: O Globo | Foto: Eliane C. Arantes/USP