AMOR COM AMOR SE PAGA!
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AMOR COM AMOR SE PAGA!

Em meados de 1976 do século passado, Candin tinha um comércio pra lá de turbinado. O distrito comercial era formado por dois postos de combustíveis, três mercearias, duas farmácias, duas padarias, um lote de restaurantes e quatro casas de artigos de couros e lembranças da Bahia. A empresa que mais se destacava era a farmácia de seu Aristides, um magérrimo senhor de quase 60 anos que distribuía criteriosamente os seus medicamento em um invejável espaço físico, repleto de engenhosas prateleiras envidraçadas, entupidas até os beiços de remédios.

Alas que de uma hora para outra, abriu-se por aqui um lojão enorme de artefatos de couros e lembranças da Bahia. A fachada chamava a atenção pela quantidade de produtos… chapéus de couro (daqueles usados por cangaceiros, posteriormente, adotado por Gonzagão), arreios completos para montaria, alpercatas de rabicho, redes de balanço, lençóis de rendas cearenses, bonecos de barro do Mestre Vitalino, espelhos artesanais, pentes de osso fornido, facas esmerilhadas, facões corneta e até berimbaus artesanais. O dono era conhecido pela alcunha de Soterópolis, um velho Nagô de uns 70 anos de idade, descendente de escravos, adepto do candomblé, bom de prosa, bom de pesca, bom de briga, empresário tarimbado, e, se isso tudo ainda não bastasse, ainda era um cozinheiro de mão cheia. O caboclo fazia uma moqueca de robalo de se lamber os dedos.

Quando o velho Aristides soube da inauguração do lojão, fez muxoxo, fechou a cara e entrou em um grau de infezação de meter medo. Deu logo um rompante, estraçalhando completamente o seu balcão de vidro. Você que está lendo estas mal traçadas linhas, deve estar se perguntando: O que remédios tem a ver com lembranças da Bahia? Nada, absolutamente nada. A raiva do farmacêutico não era do comércio em si, mas… de Sotero, o proprietário. Ambos detinham o gosto peculiar de traçar garotos bonitos e bem dotados. A chegada de Soterópolis fez o velho Aristides botar as barbas de molho, se sentiu ameaçado, a partir daquele momento teria que dividir “seus” garotos com o velho nagô. Sotero já conhecia Aristides de outros carnavais.

Ao constatar como era fácil lidar com a molecada daqui, Sotero, feliz da vida, promoveu logo um desfile só com o sexo masculino. Os vencedores seriam escolhidos atendentes do seu lojão. Teriam carteira assinada, trabalhariam fardados e ainda fariam as refeições no próprio trabalho, tudo de acordo com a lei.  Foram mais de 50 inscritos com mães excitadas trocando empurrões nas filas. O teste final era desfilar usando uma minúscula sunga na passarela cor-de-rosa, onde três jurados criteriosamente escolhidos dariam o parecer final.  Logo, só se viam os garotos digladiando, tentando passar a perna no concorrente. Após um acirrada disputa, três jovens foram escolhidos. Não demorou muito para as más línguas saírem dizendo que além do trabalho formal, eles eram forçados a dormirem com o patrão. Assim, todo santo dia tinha quebra-pau na loja. Experiente, o velho Nagô acalmava os ânimos distribuindo beijos à granel no cangote de cada um. Assim que reinava a paz, ele levava todo mundo para degustar uma moqueca regada à canjebrina, onde se apresentava de calçola, fazendo a alegria da molecada.

Em pouco tempo, o farmacêutico Aristides constatou que seu concorrente inflacionara a “diversão”, pagando caríssimo pelas noites de prazer. O pior era a fome insaciável do velho Nagô, traçava impiedosamente metade dos garotos do vilarejo. Puto da vida, Aristides começou a usar a arma que tinha, disponibilizou a sua velha rural para treinamento full time para os garotos que quisesse tirar a carteira de motorista. Ele próprio ministrava o treinamento… a contrapartida era o aluno ficar completamente pelado dentro da rural. Logo a concorrência tomou proporções inimagináveis, forçando Soterópolis a gastar uma fortuna promovendo festas apoteóticas todo fim de semana na sua residência. Festas estas, regada à guisado de caranguejos, acompanhado de caipirinha de vodca, vetando a presença feminina.

Certa noite, curtíamos a escuridão em uma roda de viola na porta da prefeitura, com gente contando piadas, cantarolando, e recitando poesia… quem aparece? Zé Poesia, um “ex-sãopauleiro”, jovem e todo moderninho, famoso por ter feito teatro na pauliceia. – Rapaziada, tomei uma grana de um otário aí, tá sabendo? Vou pagar bucho pra todo mundo, vamos descer lá pro Nego Dazo, quem paga sou eu.  – A galera aplaudiu! Eram aproximadamente umas dez da noite. Ao nos aproximarmos ouvimos aquele barulhão de vozes embriagadas, falando em uma altura medonha. De repente Zé Poesia arreganha os olhos, apura os ouvidos e todo desajeitado grita pra galera:  – Xi, galera! Sujou! Sujou! Meia volta, meia volta! – Meio contrariado eu ainda tentei contestar: – O que foi meu irmão? Qual é? Você não disse que faria uma presença pra turma? – Zé Poesia fez um gesto pra eu ficar quieto e quando íamos saindo de fininho ouvimos uma voz conhecida: – Êpa! Peraí, peraí… Não é que é o meu compadre Zé Poesia? Por onde você tem andado, cabra? – Era Soterópolis, pra lá de mamado.

– Sóter, meu amigão! – Disfarçou Zé Poesia abrindo um sorrisão em uma falsidade lascada! – Dê cá um abraço, meu irmão! Há quanto tempo? – Falou abraçando Soterópolis que estava mais bêbado que um gambá! O poeta – dentro da malandragem que lhe era peculiar – andara pegando (soube algum tempo depois pelo próprio) um adiantamento e fugiu dos “compromissos”. Neste dia, o universo conspirou para que ele trombasse com o velho Nagô.    – Meu irmão, está me caloteando?

– Que é isso, Sóter! Eu e esta patota aí, estamos montando um espetáculo teatral. Não tem sobrado tempo pra nada. – Enrolou o poeta.

– Você vai me pagar hoje! Vai cumprir o que me prometeu, vamos lá pra casa, agora! – Intimou o cozinheiro. – Hoje não vai dar não, Sóter, estou com a turma aí, a gente só vai comer um bucho e voltar pro ensaio! – Argumentou Zé Poesia.

– Está me tirando, meu irmão? Você tem que cumprir a promessa.

– Moço, Dazo já está esquentando o bucho!

– Aí, Dazo!…  Tem como cancelar o pedido do rapaz, aqui?

– Claro, Sotero, tem sim.

– Cancele que ele hoje ele vai comer galeto assadinho lá em casa!

– Hoje não, Sóter, tenho a maior consideração por você, mas eu estou acompanhado e não vou dispensar a turma não. Viemos comer uma buchada. Desce os buchos aí, Dazo! – Ordenou!

– Desce não, Dazo. – Gritou Sotero. – Hoje ele vai de galeto!

– Olhe bem. Eu só vou se Carlim for junto, pode ser? – Soterópolis me olhou de cima a baixo e bradou:  – Ué, o que tem de mais? onde come um, come dois, ué!… Pode levar!

– Gente, o bucho vai ficar pra outro dia, valeu? – Falou Zé Poesia dispensando a galera e me colocando na reta. – Se você não tiver este frango lá, meu camarada? Eu vou me retar!

– Eu sou lá homem de mentir?! – E assim, lá fomos nós para a morada de Soterópolis. O velho estava tão bêbado que demorou cinco minutos para acertar o buraco da fechadura. Tateando, conseguiu acender o candeeiro, nos conduziu à uma salinha diminuta que mal cabia a mesinha e o fogão. – Quero ver se este frango existe! – Brincou Poesia enquanto Soterópolis abria a gaveta do forno e puxava um franguinho deste tamanhinho (tão pequeno parecia um pinto), todo tostado e o jogava sobre a mesinha.  – Taí, ó. Falei que tinha é porque tem. Comam aí. Matem a vontade de vocês! – Cabreiro, eu tirei uma asinha, dei uma mordiscada tímida, Poesia (agora já se sentindo em casa) bradou:

– Que é isso, meu irmão! Está com vergonha? Esta casa é nossa! Faça assim, ó… – Meteu a mão no franguinho arrancado uma das coxas que já veio atrelada com mais da metade do bicho. Meteu novamente a mão, arrancou a outra coxa e já foi me dando. – É assim que se come frango, ó. Mate aí, vá! Sem vergonha. Coma à vontade! – Quando Soterópolis viu que só havia sobrado a carcaça, deu uma bistunta, pegou com uma das mãos o que restara do frango e berrou:  – Tropa de “morta-fome”! Vá comer na casa do caralho, rebanho de filas da puta! – Falou, butucou os zóios e mandou o que restava do frango na cara de Zé Poesia que se abaixou em uma ligeireza lascada! Olha. Se alguém me contasse, dificilmente eu acreditaria. Mais o que narro é a pura verdade. Ele jogou o frango, o poeta se abaixou, a carcaça bateu nas quatro paredes (uma após outra), caindo bem no meio da bandeja, exatamente onde estava. Caiu e ficou girando igual um pião. Assustado, Zé Poesia butucou os olhos em Sotero:  – Que porra é essa, Sóter! Endoidou, foi? – Branco igual uma vela, o velho Nagô balbuciou:  – Oh, poeta! Me perdoa! Perdi a cabeça! – Diante da fraqueza de Sotero, Zé Poesia estufou o peito e falou grosso:

– Meu irmão, eu lhe tinha o maior respeito. Daqui pra frente você morreu pra mim, Sóter! E quer saber de uma coisa?… Não lhe como mais! – Foi Zelão falar e Soterópolis se desesperar. Ajoelhou-se, agarrou-lhe as pernas e chorando se esgoelou:  – Não, Poesia, pelo amor de Deus! Não fala isso, não posso viver sem você!  – Pra mim você morreu, seu escroto! Não me procure mais! Vamos cair fora, Carlim, desculpe ter te trago aqui! – Eu saí de pinote para o lado de fora da casa, e constrangido, tive ainda que testemunhar Zelão sair com Soterópolis desesperado se arrastando, agarrado descontroladamente nas pernas dele. – Não me abandones, Zé Poesia! Por favor! Se você me deixar eu me mato! Não me deixe, eu lhe amo, eu lhe amo! Óh Deus, não deixa ele fazer isso não!

– Tudo terminado entre nós! Você faltou com o respeito! Acabou! – Saímos rapidamente enquanto só ouvíamos os gritos desesperados do comerciante… – Oh, meu Deus! O que faço agora? Não vou conseguir viver sem você! Volte, Poesia! Volte! – Fingi que não entendi absolutamente nada. Zé Poesia nunca mais tocou no assunto! Soterópolis mudou-se para Nazaré das Farinhas. Quem ficou muito feliz foi o farmacêutico Aristides. Voltou a monopolizar a rapaziada!

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Dos Confins do Sertão da Ressaca

Cândido Sales, Ba. Quadras de julho de 2025.

Lua Nova de inverno.