“AI, SÃO JOÃO, SÃO JOÃO DO CARNEIRINHO”…
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“AI, SÃO JOÃO, SÃO JOÃO DO CARNEIRINHO”…

Fogueira pra tudo que é lado, uma fumaceira disgramada, uns seis moleques correndo sorrateiramente por entre as sombras, o que parece ser o mais velho acende uma bomba, coloca sobre ela uma lata vazia de leite para em seguida correrem todos tampando os ouvidos, se abrigando em tudo que é parte da rua. Em seguida ouve-se uma forte explosão fazendo que a pequena lata seja projetada para o alto na velocidade de um foguete. A molecada delira de prazer. Sejam bem-vindos, já é noite de São João no sertão, a festa para todos. Pois é, aqui era assim. Por ser uma região muito pobre, quando se aproximava a “festa da fogueira”, nego virava o capeta para cumprir a parte que lhe cabia neste “latifúndio”, sendo assim, por pior que fosse a casa, o assado era garantido (geralmente, um leitãozinho inteiro em estado pururuca), um bom garrafão de pinga, um caldeirão de quentão, duas ou três garrafas de jurubeba e – em algumas casas – até um bom e velho litro de cinzano. Para os abstêmios do álcool, sempre havia café com bolos, biscoitos, broas de milho e muita pipoca. Aqui sempre foi “desjeitim”, nego sempre suou sangue, tirou leite de pedra, trabalhou feito um condenado apenas para receber bem os amigos na noite de São João. É um tempo em que nego vestia até roupas novas. Comprava uma ou duas calças coringas (na feira) para os bacorinhos, um vestido de chita novo para a patroa e se faltasse recursos, se virava mesmo com o que tinha. A camisa quadriculada que ficava no fundo do baú era criteriosamente engomada, as calças de linho branco (herança do casamento) tinham as pregas refeitas e nada que um vidro de tinta preta não desse um toque de classe que a velha botina necessitasse. Quando chegavam os convidados (uma curriola que passava de casa em casa) gritando em uníssono:

– São João passou aí? – A resposta vinha sempre na ponta da língua! – Passou! – Assim, a turma entrava, bebia, comia, proseava e muitas vezes trazia a tiracolo um ou outro sanfoneiro, acompanhado de um panderista, garantindo o rala-bucho até o dia clarear. Assim foi durante um bom tempo. Hoje, infelizmente, esta herança não tem passado de pai para filho e as tradições estão se perdendo no tempo. Basta observar as músicas tocadas nos dias de hoje – com raríssimas exceções – não são mais músicas juninas, o que é um descalabro e um desrespeito com a tradição.

A título de comparação, vamos até o ano de 1978, quando o tropicalista Tom Zé gravou a música ”Menina Jesus” relatando a trajetória dos nordestinos retornando aos seus torrões de origem, no mês de junho, para ostentarem durante o São João:

“(…) Só volto lá a passeio, no gozo do meu recreio, só volto lá quando puder comprar uns óculos escuros… Ou um relógio de pulso que marque horas e segundos, um rádio de pilha novo cantando coisas do mundo, pra tocar lá no jardim da cidade, zombando dos acanhados, dando inveja nos barbados e suspiros nas mocinhas (…)”. Falava de maneira geral do nordestino, em especial, do baiano que não nasce, estreia. Agora, imagine aí o novo-conquistense? Este é mais folgado ainda. Tão folgado que apelidou os “chegantes” da Paulicéia de “São-Pauleiros”. Estes “Filhos Ausentes” ficavam dois, três anos por lá trabalhando de sol a sol, enviando mensalmente (através dos correios), dinheiro suficiente para a família adquirir aqui uma casa própria e muitas vezes até montar um “pé-de-meia”, fazendo que eles vivessem razoavelmente bem pelo resto das suas vidas!

O retorno deste povo era uma verdadeira apoteose, chegavam munidos de camisas baby-look, calças boca de sino, tamancos altíssimos, sapato “cavalo-de-aço”, um relógio de pulso, um rádio de pilha novo para “ouvir as coisas do mundo” (sempre encostado no pé do ouvido). Só era considerado São-Pauleiro aquele que já apeava do ônibus munido do indefectível chapéu de peninha na cabeça. Isto era apenas uma das marcas registradas do chegante. O artefato era usado meio de lado, alguns davam uma “quebrada” na aba para ficarem mais incrementados.

Voltava de Viação “Vera Cruz”, uma imensa marinete com motor da Scania que trazia de uma só vez umas três dúzias e meia de “São-Pauleiros”. Quando este ônibus parava no ponto, era necessário esperar uns cinco minutos para que aquela renca de fumaça preta que saía de um cano de descarga que ficava todo retorcido do lado direito do veículo, estrategicamente colocado acima da janela do passageiro pudesse se dissipar. Quando descia um ou dois “São-Pauleiro”, metade do povoado soltava fogos. Traziam imensos sacos, entupidos até os beiços de presentes para a “parentaia”. Eram roupas da moda, óculos escuros, relógios de pulso, discos e “rádios-consola”. Chegar “estiloso” fazia parte do show (e neste quesito, o tal do novo-conquistense era imbatível), já descia do ônibus munido de um sapatão “cavalo de aço” (nome da novela global que existia na época), última moda no sul do país. Sapato este que tinha um salto altíssimo e uma “fivelona” colorida deste tamanho em cima parecendo até fivela de calça feminina. Por falar em calça, elas tinham que ser bem coloridas (amarela, lilás, abóbora, rosa choque, vermelha…) extremamente “chamativas”, com cada “bocona” que metia até medo! Eram as famosas “bocas de sino”. Os mais antenados usavam uma blusinha de lycra (daquelas bem femininas, mesmo) mostrando o umbigão estufado, e a barriga delineada, moldada na construção civil…

A chegada destes moços era um fuzuê. Alguns iam para as suas casas literalmente nos braços do povo!  Depois de algum tempo, substituíram o rádio de pilha pela radiola de matéria plástica que funcionava à base de seis “alimentos” (pilhas grandes), de preferência da marca Ray-o-vac.  A chegada de um “São-Pauleiro” subtendia-se que naquela noite haveria festa dançante, a “grande atração” era sempre o “chegante” que se apresentava impecavelmente vestido e com o cabelo lambuzado de brilhantina glostora. O São-Pauleiro era disputado à tapa pelas solteiras e sonhadoras mocinhas da cidade, dançava de forma incansável (dando inveja aos barbados) a noite inteirinha até ser cooptado pela garota mais esperta do baile. Além da radiola, eles sempre traziam a tiracolo uma meia dúzia de compactos simples e os “mais modernos” até um ou dois compactos duplos. Compactos eram pequenos discos de vinil. O simples trazia duas músicas, uma de cada lado (lado A e lado B) e o duplo, trazia quatro canções, duas de cada lado. Long Play, como era chamado os discos com cinco ou seis faixas de cada lado, não era para qualquer artista de meia tigela não, só os grandes nomes podiam gravar: Luiz Gonzaga, Wanderléia, Jerry Adriani, Waldick Soriano, Martinha, Renato e Seus Blue Caps, Roberto Carlos e Agnaldo Rayol tinham este privilégio. Só os mais abastados conseguiam comprar um LP. Os “são-Pauleiro” mais antenados, que já sabiam da “descaída”, conseguiam comprar discos a quilo na feira livre lá da Paulicéia:

– Moço, vê aí pra mim um quilo de compacto simples, por favor! -Geralmente o vendedor pesava um punhado de pequenos discos de vinil com uma variedade enorme de artistas, entre os quais, os da moda como José Roberto, Antônio Marcos, Diana, Os Fevers, Márcio Greyk, Vanusa, Odair José, Agnaldo Timóteo, Leno & Lilian, Os Vips, etc… O São João dos “São-Pauleiros” era sempre regado à batida de maracujá ou limão, conhaque de alcatrão, caipirinha (cachaça, açúcar e limão) e alguns traziam até um litro ou outro de Ron Motilla, na época, bebida de rico. Quando os “alimentos” da radiola enfraqueciam e a voz do cantor começava a ficar cansada e embolada (devido à diminuição da velocidade do prato da vitrola), era hora de capar o gato, na semana seguinte haveria uma nova festa. Era assim a primeira quinzena de junho aqui em Nova Conquista, com dezenas de São-Pauleiros chegando para os festejos juninos. Depois do dia 23, todas as noites aconteciam festas dançantes com a presença maciça dos filhos da terra, devidamente iluminados por fogueiras. Qualquer salinha virava literalmente um salão de dança com cachaça, cigarros e mulher…

Depois de um mês, era hora de voltar para o “roçadão”. Acabava o dinheiro e era hora de “capar o gato”, correndo para o batente! Como baiano que se preza não pode perder a pose, fazia-se até uma festa de despedida anunciando o triste retorno, desta vez, o pobre voltava mais “duro” que um cacete! Sem grana, porém feliz, com a esperança renovada de retornar no ano seguinte para dançar o forró. Os São-Pauleiros partiam enchendo de suspiros e esperança às mocinhas casadoiras. Para voltar os caras vendiam tudo o que trouxera: calças, camisas, sapatos, óculos, relógio, rádio, radiola, e até as cuecas… Tudo a preço de bananas. O importante era juntar algum “troco” para a passagem e para fazer uma boquinha na estrada. Todos os dias, religiosamente, tinham gente voltando para o “roçadão”, jurando estar aqui no próximo ano. Por isto que Tom Zé dizia:

“(…) Se for pra plantar feijão eu não volto mais pra cá, eu quero é ser Cinderela, cantar na televisão, botar filho no colégio, dar picolé na merenda, Viver bem civilizado, pagar imposto de renda. Ser eleitor registrado, ter geladeira e TV, carteira do ministério… Ter CIC e RG (…)”. Obviamente, nos dias de hoje não existe mais esta magia. Os nativos que ainda hoje residem na pauliceia, sequer, tem o desejo de voltarem às suas origens, muitos, devido ao duro cotidiano onde se trabalha a exaustão, outros, mal conseguem suprir as suas subsistências. Devido à tecnologia, atualmente muitos se contentam em matarem as saudades dos amigos e dos parentes através das redes sociais. Se a crise dificulta a vinda de alguns, em contrapartida, os atrativos festivos que outrora atraíam os filhos ausentes, como o “Dia da Fogueira”, deixam muito a desejar nestes tempos.

No mais sobrou apenas a história do nosso amigo “Tranca-Rua” – um dos mais famosos “Novo-Conquistenses” que ainda está vivo nos dias de hoje. Após ficar apenas dois meses em São Paulo, retornou cheio de sotaque paulista para Nova Conquista. Chegou a sua casa arrastando uma pesada mala cheia de bugigangas e falando o “paulistês” com a língua toda enrolada: – Maiêêê, cadê paiêêê?

Antes de obter a resposta, levou tanta vassourada na cabeça, dado com gosto pela sua santa mãezinha que perdeu até o tino, sendo obrigado a falar rapidamente o “baianês”:

– Ôxe, mainha, que isso? Eu estava brincando, bustica!…

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Junho, Inverno de 2023.

Já é São João, cidade!