A PELEJA DE JOÃO ENCRENCA E O SANFONEIRO DO DIABO.
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A PELEJA DE JOÃO ENCRENCA E O SANFONEIRO DO DIABO.

É engraçado como esta história nasceu livreto de cordel e a parceria tripla com os violeiros Billy Roger da Viola e Jaivan Acioly transformou o causo em moda de viola. No momento está sendo um conto e em um futuro próximo  a tendência é virar livro/romance. Enquanto esperamos, vamos à narrativa.

Desde muito pequenino que Joãozinho era um encrenqueirinho dos diabos. Ah, moleque encrenqueiro! Sua ligeira passagem pelas escolas foi traumática. Brigão e boca suja, o caboclinho era o terror dos professores. Dona Marieta – sua mãe – era intimada quase toda semana para dar explicações sobre o comportamento do filho. Levantava as saias das meninas, botava galões de água em cima da porta para molhar quem entrasse, jogava caçote nos professores, puxava os shorts dos coleguinhas em plena aula, enchia o quadro negro de putaria e quando tentaram fazer que ele se ajoelhasse sobre alguns grãos de milho, logo depois de quase arrancar o nariz do colega com uma mordida, o malino quebrou uma régua grossíssima na cabeça do professor Tertuliano, pulando em seguida uma janela de mais de dois metros de altura. Foi definitivamente expulso da escola. Já meio topetudo, com 12 anos de idade deu uns cascudos caprichados no próprio pai. O velho Jesulino, que gostava de tomar umas e outras, embriagou-se e deu uns safanões na sua querida esposa Marieta, tomando as dores da mãe, Joãozinho sacou um estilete e deixou o pai mais riscado que tecido de alfaiate. Envergonhado o velho partiu na madrugada do mesmo dia, deixando mãe e filho para trás. Se o filho bate no próprio pai, imagine o que não faria com um desafeto?  Assim, caiu na lapa do mundo andando 17 léguas e meia de pés. E João foi crescendo “desjeitim”. Chegava na feira, comprava fiado e não pagava, se o dono fosse cobrar, ah, recebia era uns sopapos! Quando a ficha caiu que o vilarejo morria de medo dele, inventou que era bisneto de Lampião e respaldado pela fama, virou doutor em desmantelar feira e acabar festas. Todo final de semana, Joãozinho, agora com 15 anos de idade arrumava um tumba na feira, não deixava uma bruaca ou barraca de pé. Geralmente os contendores ficavam mais retalhados que manta de toucinho, João, por ser jovem e forte sempre levava a melhor. Com 17 anos ficou ainda mais encrenqueiro, se alguém o olhasse de soslaio ele não queria nem saber, metia a faca. Já tinha duelado e vencido Pedro Boa-Morte, Joca Bacurau, Betão de Arimatéia e até Zelão Rasga-Mortalha –  os  mais temidos valentões do sertão. A partir daí, bastava João chegar no cabaré para os caboclos botarem o rabo entre as pernas e saírem de fininho. Agora… a fama de Joãozinho se consolidou mesmo, quando ele deu uma pêa lascada no Cabo Totonho, o deixando todo rasgado no meio da rua. Foi aí que ele recebeu a alcunha de João Encrenca. E olha que o cabo Totonho nunca foi de levar desaforo pra casa. Não mudava de roupa pra quebrar relento no pau. Certa noite, tava dormindo o sono dos justos quando foi retirado às pressas da sua cama para ir até o cabaré de Ana Calanga onde Joãozinho, bêbado feito um gambá, deu um cacorê e arrebentou tudo. Quebrou no pau todos os “clientes” que ali se divertiam e após deixá-los na lona, deixou o cabaré mais quebrado que xerém. Neste dia, nem a banca de sinuca escapou – e olha que era feita com madeira fornida –  e após botar os frequentadores pra correr, se invocou de dar uns cascudos em Ana Calanga, foi quando bateu de frente com um contrariado Cabo Totonho, ressaqueado e puto da vida por ter sido acordado no meio da noite. – Teje preso, João Encrenca. Aqui é a lei, teje preso e se reagir é pior! Seus dias de malfazejo acabaram!  – Disse convicentemente o policial ameaçando sacar o cassetete. Ao tentar agarrar o arruaceiro, o pobre cabo, que rezava a lenda, até da Volante já tinha sido, levou tanta porrada que ficou até desorientado. Pra começo de conversa, a primeira coisa que Joãozinho fez foi lhe arrebatar o cinturão, tomando a pistola e o cassetete de uma só vez, depois rasgou o fardamento do policial todinho, fazendo questão de usar o quepe todo mochilado com a aba virada pra trás. Após  moer – literalmente – o pobre coitado na pancada, o conduziu pela orelha, batendo de currião (como os pais faziam com os filhos antigamente) pelas ruelas do vilarejo e diante dos estupefatos olhares da população o prendeu na única cela que existia na delegacia, tendo o cuidado de soltar antes a meia dúzia de relentos que ocupava o xilindró. Os quatro guardas que serviam ao antigo delegado, ficaram com tanto medo de apanhar que bateram até continência para João. A partir deste dia virou o terror da região, descendo a pêa em gregos e troianos. João estava adorando aquela vida de valentão. Chegava em festas de casamento, comia o melhor prato, exigia que a noiva se sentasse no seu colo, e muitas vezes dançava a noite inteirinha com a futura esposa, depois saía bulindo com as mulheres alheias na frente dos maridos que evitavam entrar em confronto com o matador. Beliscava a bunda de uma, passava a mão nos seios de outra e saía distribuindo beijos a torto e a direito. Se fosse contrariado, dava um calundu, apagava o candeeiro e todo mundo era obrigado a dançar nu no escuro, podia ser homem ou mulher. Joãozinho tocou tanto terror no vilarejo que por mais de 5 vezes, pistoleiros contratados armaram tocaias para matá-lo. Escapou de todas elas, matando o pretenso matador e jogando a cabeça do desafeto no meio da praça para que todo mundo visse. Como sempre saía ileso do atentado, espalharam na região que ele tinha o corpo fechado e só morreria se lhe decepassem a cabeça com um facão banhado em água benta. A lenda trouxe ao vilarejo “Manel de Tota”,  matador afamado das bandas do Raso da Catarina. Este por ter um facão benzido pelo padre Cícero, caiu na bestagem de desafiar João Encrenca para um duelo no meio da praça principal, e diante dos olhos incrédulos dos moradores, ficou mais furado que tábua de pirulito, sendo conduzido às pressas em um carro-de-boi para a casa do Véi Amaro Rezador. Não resistiu às quase três horas na estrada esburacada. Foi mais um a entrar para a lista de “despachados” de João Encrenca.

Alas que um belo dia, Zefa filha de Honorato cismou de “ajuntar os troços” com Joca de Bastião que era o fazendeiro mais rico da região. A fazenda de Bastião era um colosso. Um casarão requintado do século XV, coreto no quintal, meia dúzia de banheiros, quartos a perder de vista e uma cozinha com mais de 40 empregados. Joca estudava na capital para se formar doutor advogado e não resistiu ao charme e à sinuosidade das curvas de Zefa. O casamento entraria para a história pelas dezenas de galinhas abatidas – e assadas no forno a lenha -, aipim, carne de bode, melado, leite de onça e canjebrina tirada do alambique. E só pra pirraçar ainda tinha dez capões em molho pardo, uma dúzia de porcos-baé assados em pururuca e quatro bois no rolete. A festa foi tão grã-fina que teve até convite, escrito na caligrafia de seu Tomaz que era o professor com a letra mais bonita da região. Eis que chegado o dia, Josefa e Joca trocam alianças, recebem as bênçãos do padre Salustiano e depois da efetivação do ato, os convidados se fartaram de comer e beber. Trouxeram até um sanfoneiro do Norte para agitar o baile, um negão de quase dois metros de altura, dos braços desta grossura e que tocava feito o diabo. Ao saber da festança e do descaso que fizeram com a sua pessoa, João Encrenca virou o capeta. Se sentiu desprestigiado e para aumentar a sua raiva solveu no gargalo quase um corote de aguardente. Em seguida vestiu a sua roupa domingueira, armou-se de tudo quanto há e colocou na cintura a sua faca estripadeira de estimação (onde ele riscava quantos desafetos já tinha despachado para o andar de cima). Furioso, já chegou jogando a porta no meio do terreiro e munido de dois colts 45, atirou a torto e a direito: – Ninguém corre. Quem correr eu mando “pros zinfernos”! – Aquele desassossego todo, uma gritaria absurda, mulheres desmaiando, homens mijando nas vestes, menino chorando e Bastião, como um respeitável dono da casa foi tirar satisfação e levou logo um cocuruto no nariz. Vendo o seu pai sangrando e se sentindo impotente, Joca tentou consertar as coisas: – Eu sou o noivo, seu João Encrenca, me esqueci de convidar o senhor, desculpa a minha falta, prometo que lhe convidarei na próxima vez! – Não vai ter próxima vez, sabe porquê? Por que todo mundo que está aqui dentro hoje vai virar defunto. Vou mandar todo mundo pro “zinfernos”! – Gritou e já foi apagando os candeeiros. Diante da balburdia, sem ter com quem brigar, João  deu uma bistunta e garguelou o sanfoneiro! – Toca um forró animado aí “ fí da peste” e tem que ser arrasta-pé! – Enquanto quase todo mundo desmaiava, João Encrenca agarrava a noiva e saía requebrando pelo salão, o medo era tanto que a bichinha rebolava mais que quenga. – Anima esse forró, sanfoneiro, tá economizando os dedos? É pra dançar todo mundo pelado, podem ir tirando as roupas, “ home, muié e minino”, todo mundo, ouviram? – De repente, o negão sanfoneiro empacou e parou de tocar. – A festa acabou, chega! – Gritou o negão com sua voz de trovão. Furioso, João deu um pescoção em Zefa, puxou a sua estripadeira, agarrou o negão e colocou a peixeira na garganta do cabra. Ao olhar pro caboclo sentiu seu sangue gelar. Ali na sua frente, ainda munido da sua pé-de-bode estava a figura do diabo gargalhando:  – Há, há, há… finalmente “ocê” caiu na minha armadilha, João Encrenca! – Oxen, que diabo é “ocê”? Me larga, o que “ocê qué”? – Dizia o valentão tentando se desvencilhar – Eu vim aqui “pro mode” levar sua alma, quer ir mais eu, “vamo”? Quer mais eu “rumbora”… – Estupefato os presentes contemplaram aquele bicho corcunda, mal-amanhado, pés redondos, dois chifres na testa, asas nas costas, olhos da cor de brasas, rabo em forma de ferrão, rodopiando, “mungangando” e soltando fogo pelas ventas bem no meio do salão. Trêmulo, João Encrenca largou as armas e tentou correr, pra que? Levou uma baita ferroada no lombo, dada pelo rabo do negão, caindo quase que desfalecido. Dentro  do recinto quem ainda não tinha desmaiado, aproveitou pra desmaiar. A visão tétrica do bicho moendo João Encrenca na pancada era para quem tinha estômago. Enquanto João apanhava grunhindo feito cadela, o caos se espalhava. Gritos, apupos,  labaredas, gemidos, vômitos, diarreias, correria e tome pancada… Nesta altura o arruaceiro estava mais mochilado que chapéu de gaúcho. Cheio de hematomas e todo cagado, assim que achou uma brecha deu um salto cinematográfico pela janela e caiu bem dentro de um chiqueiro. Pra lá de enlameado quase foi devorado pelos porcos. Cai aqui, levanta ali, corre acolá e o sanfoneiro atrás, batendo e gargalhando – Toma, valente, toma, “ocê num” gosta de brigar? “Intonce arreceba”! – Pulando mais que caçote, João passou sebo nas canelas e depois de ficar alguns minutos enganchado em uma cerca de arame farpado, chegou em casa todo melado, metade era lama e a outra metade cagado. A porta estava trancada e ele já chegou levando a porta nos peitos, se escondendo, trêmulo, debaixo da cama enquanto ouvia ao longe as risadas estridentes do sanfoneiro. Passou dois dias rezando tudo o que aprendera na vida.

O povo do vilarejo (assim como a família dos noivos) negaram-se veementemente a comentar o sucedido. João ficou dois dias escondido, sonhando com o encapetado. Assim que tomou coragem, correu pra igreja, se arrependeu dos pecados, deixou de lado a valentia, mudou o nome pra João “Fulô” das Alegrias, trocou a peixeira por uma viola  e foi viver de cantoria, contando causos e malinando nas cordas da sua viola. Nunca mais quis saber de encrencas.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadra de outubro de 2023. Lua cheia de Primavera.