A OFERENDA.
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A OFERENDA.

Já disse aqui mesmo através destas mal traçadas linhas, que durante vários anos este povoado foi sustentado pelos transeuntes da rodagem Br-116. Metade da população desenvolvia algum tipo de serviço para forçar os passantes a deixarem algum trocado por aqui. A disputa mais ferrenha dava-se através dos quiosques de madeira que vendiam tudo quanto há. Tinha gente que para vencer a concorrência não tinha limites, como por exemplo, o comerciante Solon que acreditando que podia turbinar as suas vendas, saltou o cercado do cemitério – logo após o gemido do bacurau -, e com as próprias mãos revirou uma cova rasa, levando o osso do braço do bebê prematuro de Alzira de João “Cangaia”. Bebê, que rezava a lenda, nascera morto, com cara de bode, duas asinhas nas costas e dois chifrinhos pontudos na cabecinha deformada, tendo (por isto) que ser enterrado às pressas e às escondidas. Os concorrentes mais ativos de Solon eram Durvalino que fazia um molho pardo de lamber os beiços e Galego de Maria Chibunga, vendedor de chimangos. Um era sovina e o outro avarento. Durvalino era tão pão-duro que dava esmola e pedia o troco. Quando começaram a perder espaço para os concorrentes, os usuráveis viram-se obrigados a se unirem em torno de uma mandinga feita por Mãe Clara de Oxum (famosa babalorixá).

– Olha bem… – Falou Mãe Clara. – Posso fazer o que vocês querem, porém, vou avisar logo, não vai ficar barato. Como é público e notório, Durvalino é meio mão de figa e você Galego, não gosta muito de gastar, assim, o melhor é vocês fazerem juntos e dividir as despesas. Tem que pagar adiantado, topam? – Um olhou para o outro, o outro olhou para o um e resolveram fazer a mandinga.

– Nesta sexta-feira 13 vocês mesmo têm que botar um despacho na primeira encruzilhada que acharem pelo caminho. Tem que ser feito por vocês, não podem mandar ninguém no lugar, senão, não surte efeito. – Mais uma vez, um olhou o outro e aceitaram. – Vai custar quanto, Mãezinha? – Perguntou Durvalino, paparicando a mãe de santo pra ver se diminuía o preço.

– Vai ficar cem contos pra cada um. Anota aí o que vocês têm que trazer amanhã… – Entregou uma caneta e um papel para cada. –  Duas velas pretas das grandes, uma vela vermelha, duas garrafas de Pitu, dois maços de Continental sem filtro, dois charutos com fumo de Arapiraca, dois metros de fita de seda com dois dedos de largura, uma amarela e outra vermelha e uma galinha preta de pescoço pelado, assada e recheada com farofa de dendê. Tem que ser preta e do pescoço pelado, deu pra entender? Não tragam nada diferente senão a mandinga vai por água abaixo. Agora podem ir e retornem amanhã cedinho pra gente preparar a oferenda e encomendar o santo. – A mandinga quase não deu certo devido à conhecida “morrinhagem” de Durvalino. Encarregado de adquirir a galinha, ao invés de comprar uma preta, resolveu afanar uma pedrês logo do poleiro de Maria Chibunga, que não por acaso, descobriu o afano ao constatar uma marca de nascença que a bicha, mesmo morta (e depenada) tinha no olho direito. A confusão armada por Maria Chibunga chamou a atenção do vilarejo inteiro. – Seu escroto, ladrão fila da puta! – Queria porque queria dar na cara de Durvalino, exigindo a imediata intervenção de Mãe Clara, que utilizou todos as suas habilidades para acalmar os ânimos e fazer a dupla voltar a se entender, argumentando, inclusive, que o feitiço poderia virar contra os “feiticeiros”, no caso, eles dois. Diante dos fatos, Durvalino, o sovina, teve três dias de febre altíssima, se contorceu em dores por várias partes do corpo, delirou feito um demente, sonhando com um monte de “livusias”. Quase infartou quando desembolsou dois contos de reis (o equivalente a três vezes o valor real da galinha) para pagar a Maria Chibunga, tendo ainda que comprar outra galinha preta para atender ao feitiço.

Na sexta-feira 13, logo após os bacuraus darem o aviso, lá estava a dupla, conduzindo nas próprias cabeças o despacho dividido em duas enormes bacias de flandres. Assombrados com a estreia inusitada na arte da “macumbaria”, os caboclos adentraram a mata tremendo de medo até sair em um cruzamento onde uma estrada subindo cruzava com outra descendo. Entre o imediatismo do medo e a tensão das más intenções comprovadas, os homens se jogaram quase que simultaneamente ao solo, espalhando desordenadamente a oferenda.

– “Espaia” as velas, bota a farofa do lado – orientava Galego, enquanto Durvalino olhava desolado para a galinha que custara uma fortuna e ele, sequer, comeu um pedacinho. No fundo, consolava-se com a esperança de que o despacho pudesse dar certo. Assim – pensava ele -, com a freguesia recuperada, bastaria elevar um pouquinho os preços para compensar todo o prejuízo.

– Se der certo ele vai “vê” o que é bom pra tosse! – disse Galego. – “Nóis” vai “tumá a friguisia” dele todinha e “vamo ficá” podre de rico e “dexá” ele na lona. Quiá, quiá, quiá… – Ria Durvalino, nervoso. – A favor de Durvalino, podemos dizer que a sua “sovinice” o fizera manter distância de gastos desnecessários. Jamais gastara dinheiro à toa, porém, diante das circunstâncias, o jeito foi apelar para as forças ocultas. No fundo, aquele investimento era bem empregado. Queria apenas desfazer a mandinga da pata de anjo, até porquê quem se propõe a invadir um cemitério nas caladas da noite, afanar um braço de um recém-nascido com cara de bode e chifres na cabeça, não pode ser do bem! Aquilo era coisa do “Canhoto” …

Galego já tinha mais intimidade com a coisa, não perdia um samba de Mãe Clara de Oxum. A sua mulher Maria Chibunga era a principal filha de santo do terreiro. Bonita (meio gordinha, é verdade), barraqueira quando provocada, rebolativa quando desejada, alta quando queria (às vezes dançava na ponta dos pés) e expressava sua sensualidade através da sua indefectível cabeleireira encaracolada que lhe batia no meio das costas. Na ausência de Mãe Clara ela era a incumbida de dar os passes que descarregavam as más energias.

Mas… lá estavam os homens nas horas mortas, vagando em meio às livusias da encruzilhada, morrendo de medo de serem descobertos. – Vai logo, vai logo, acende as velas. – Gritava Durvalino. – “Vamo triminá” logo isso e “picá a mula” daqui, já tô todo “arrupiado”. – Dizia Galego! Assim que riscou o fósforo um barulhão fez-se ouvir trazendo a tiracolo um assobio e uma rajada de vento. Atônitos, os homens viram os galhos das árvores balançarem violentamente. Logo, um monte de mungangas ininteligíveis fez se ouvir encobertos pelo manto da noite. O barulho provocado pelo vento parecia assobiar um réquiem. Um pouco depois apareceu na frente da dupla uma renca de saguis saltitantes… os micos rebolavam freneticamente em volta da oferenda! Galego suava em bicas enquanto Durvalino “butucava” os olhos pálpebras afora. Os saguis se transformaram em uma renca de leitõezinhos grunhindo em um barulho disgramado. Eram porcos de toda cor… pretos, brancos, rosas, reluzentes… pulando estonteantemente em uma coreografia infernal… Galego e Durvalino pra lá de assustados só pensavam em cair fora dali, mas, quem disse que as pernas os obedeciam? Logo uma bola de fogo começou a rodopiar em torno da dupla que abriu o berreiro, se agarrando um ao outro enquanto a bola virava uma gigantesca “rasga mortalha”, dando rasantes sobre eles. Diante daquele pavor, Galego só pensava em correr, porém, correr para onde? Depois de alguns minutos a ventania foi se dissipando, revelando a enorme lua cheia no céu. Uma lua lindíssima, estonteante, deixando a noite clara como o dia. Galego olhou para Durvalino e não conseguiu sair um milímetro de onde estava. Em pânico ficaram ali, quietos, de cócoras, abraçados um ao outro, como que hipnotizados. Lá no alto da estrada que subia, os homens enxergaram um negrão enorme, todo cadavérico, vestindo um terno de linho branco com gravata cor-de-rosa, usando um chapéu coco e pedalando tranquilamente uma bicicleta contra pedal. Neste tempo as poucas bicicletas que existiam não tinham freios manuais, como hoje. Para brecar, era necessário o condutor girar o pedal ao contrário, daí a origem do nome. Bom, mas lá no alto da estrada surgiu o elegante e esquálido negão, com a sua contrapedal, um sorrisão de todo tamanho no rosto, cuja dentadura brilhava à luz do luar. A calça de linho branco que o negro trajava parecia pertencer a algum finado menor, já que, meio coronha, dava-lhe no meio das canelas, destacando o sapato bico fino sem meias, tão bem engraxado que reluzia o clarão da lua cheia. Nesta altura, não tinha um cabelo no corpo da dupla que não tivesse arrepiado. Aparentemente não havia nada demais. Era só um homem negro (enorme, é verdade), incrivelmente bem vestido para estar ali naquele momento, vindo em direção à dupla de “usurentos”, pedalando e gargalhando e quanto mais pedalava… não saía do lugar… a bike parecia vir desembestada, porém, um olhar mais atento a mostrava na mesma distância. Galego quase tendo um infarto, Durvalino querendo cagar de medo e aquele negão sorridente, pedalando insistentemente em suas direções. De repente, eis que o negro dá uma violenta “contra pedalada”, para bruscamente e dá um pipoco ensurdecedor, se transformando em uma gigantesca bola de fogo, espalhando pedaços para tudo que foi lado! Dois minutos de silêncio sepulcral e aparece rolando ladeira abaixo a roda dianteira da bike, parecendo uma roda de fogo, vindo em direção à dupla! O artefato passou zunindo na orelha de Durvalino, que pulou e se agachou. Depois de algum tempo, suado e trêmulo, abriu os olhos e viu o estrago. Ao olhar para Galego, contemplou todo o horror que o colega sentira ao vê-lo caído, quase desfalecido, com ambas as mãos cobrindo os olhos.

– Galego de Deus, “vamo simbora home”, “nóis tamo” labutando com o canhoto, “vamo caí” fora daqui “home”. – Falou, puxando o companheiro pelo braço, quando se levantaram, quase tiveram um troço! Diante deles, de cócoras, com as pontas do sapato bico fino reluzindo, eis o negão sorridente, bebendo a garrafa de pitu pelo gargalo, fumando um dos charutos e se lambuzando todinho de farofa de dendê.  – Eita farofinha boa, sô! – falou rasgando um pedaço da coxa da galinha preta! – “Ancês” aceita um pedaço? – perguntou a entidade. Bem que Galego ainda tentou responder, mas quem disse que a voz saiu? – “Adisculpa nóis”, moço… “Num aceitamo” não! – gaguejou Durvalino! – “Nóis taqui cumprino um pidido” de Mãe Clara de Oxum! – E ancêis acha que eu num sei? – bradou o negão com sua voz de trovão! – Aquilo é uma rapariga safada?! – xingou! – Quiá, quiá, quiá… E “ocêis caíru” nessa? Aquela vaca é uma “mintirosa”! “Ocêis vão vortá” lá e “dizê” pra ela, “quela” tá me “deveno” é muito! E “inconto” ela “num mim pagá, os “trabaio” dela vai “faiá tudim”! Quiá, quiá, quiá… – riu com a boca mole e banguela. De repente ficou sério, olhou para a dupla com os olhos de brasa e falou com a sua voz de trovão! – E agora ocêis pique a mula daqui “iantes q’ueu” acabe mim “borreceno”! – Nóis pode ir “imborá? Mermo”? – Gaguejou um incrédulo Durvalino! – Se eu “triminá” isso aqui… – falou o negão todo lambuzado de farofa, com fiapos da galinha escorregando queixo abaixo – … E “ancêis” inda tiver aí parado “oiando” eu, “vô infiá” estes charutos acesos no “fiofó doceis” … – Não precisou nem repetir. A dupla subiu a estrada que descia em uma desabalada “carreira”, parecendo até Agenor de Luzia no dia que foi pego em cima da mulher de Bastião. No alto da ladeira, Galego de Maria Chibunga juntou o resto de coragem que lhe restava e resolveu olhar pra trás. Viu o negão dar uma gaitada estridente e um pipoco ensurdecedor, virando um bando de fumaça preta. Sabe Deus como os homens conseguiram chegar até a camarinha. A partir deste dia, Durvalino se mudou de mala e cuia e Galego de Maria Chibunga entrou para a lei dos crentes. Como a mandinga falhou, Solon ficou ainda mais rico e abriu um belo restaurante.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e Escritor

Cândido Sales, Bahia, Quadra de Agosto. Minguante de Inverno.