A INCONTROLÁVEL PAIXÃO DE BASTIÃO.
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A INCONTROLÁVEL PAIXÃO DE BASTIÃO.

Autor: Luiz Carlos Figueiredo

Contando ninguém acredita. Em 1981, ano da graça, nós, pobres residentes deste abençoado município ficamos quase que um ano, literalmente nas trevas. Sim. O velho motor a óleo diesel bateu biela, o prefeito da época deu um calundu e… adivinhe aí quem pagou a conta (sem trocadilhos, por favor)? Fomos nós.  – E aí prefeito, vai consertar o motor quando?

– Não vai mais ser consertado. Cansei. A partir de agora ou teremos a luz de Paulo Afonso ou vamos ficar eternamente na escuridão. O governador garantiu que daqui três meses chega à energia deles, quero ver se ele é um homem ou um saco de batatas! – Dizia o prefeito jogando todas as suas fichas nas palavras do Governador. A famosa luz de Paulo Afonso era a conhecida luz da Coelba que já tinha chegada à praticamente todos os cantos, com exceção, obviamente, da nossa pacata e pecadora cidade. Sim. Era pecado o que estávamos pagando! Só podia ser!

Apesar das trevas em que convivíamos, nem tudo era tão ruim assim. Primeiro que no escuro todo gato é pardo e toda hora é hora, não tínhamos mais horário para retornar à noite para as nossas residências. Segundo que ficamos tão acostumados com o escuro que havíamos decorados todos os buracos existentes nas ruas, assim, a chance de se acidentar caindo em algum buraco era zero. Terceiro, as pessoas ficaram mais amigas, mais românticas, mais falantes, mais solícitas, mais compreensíveis – tanto que quem morava no Bairro da Lagoinha – na época, o ponto mais (equi)distante da cidade – subiam em turma. Aquela renca de rapazes e moças, correndo, brincando, se divertindo e… se pegando. No escuro podia-se quase tudo!  De quando em vez rolava um baile ou outro na casa de algum amigo à luz de candeeiro e na base da radiola a pilha. Dançar no escuro (principalmente para quem não sabia) era maravilhoso! Quem andasse pela noite toparia com aquela renca de amantes se agarrando no escurinho, alguns sentados na porta da prefeitura tocando violão, outros gastando todo o repertório de piadas e aqueles que passavam a noite “inteirinhazinha” degustando uma ou outra dose de rabo-de-galo e até os poetas (que nunca podiam faltar) fazendo versos pra lua. Alguns bicos de energia (através de pequenos geradores particulares) iluminavam umas duas ou três casas comerciais – As Casas Miranda era uma destas – e o restante das residências tinham que se contentar com lampião a gás, candeeiros, aladim (para quem tinha dinheiro) e fifós e velas para a base da pirâmide.

E de uma hora para outra o amor fluiu inenarravelmente. Todo mundo no escuro namorando todo mundo, tanto que o índice de jovens grávidas subiu vertiginosamente. Mas, apesar de tudo, Cândido Sales sempre foi um excelente lugar para se morar. Ainda não havia a conscientização da preservação das matas nativas e dos rios, assim, a pequena cidade atingia (e achava era bom) o clímax de exportação para todo o sudeste brasileiro de Baraúna, Aroeira, Jurema e outras madeiras nobres. As pequenas fazendas produziam e exportavam para vários estados a farinha de mandioca, enquanto o empresário Evânio, surpreendia a todos com a implantação de pivôs que retiravam a água do Rio Pardo para regar os plantios de café e feijão da sua fazenda (pagaríamos posteriormente um preço altíssimo por tal ignorância).

Exatamente neste período, o cantador e poeta Rosemberg Oliveira não passou em um concurso e veio dar com os burros por aqui? Sim. A agência dos correios de Cândido Sales – em face do titular Aécio encontrar-se enfermo – indicou como agente postal da velha “Candin” o nosso amigo músico. Em pouco tempo Berg se enturmou com o pessoal da cultura local, passando a se sentir em casa. Virou logo meu parceiro na composição de “Cidade do Sossego” gravada no disco de 1979, “Sertões em Vários Cantos” e passou a fazer um show semanal no extinto Cine Plaza, no programa de Calouros de Diacísio da Rocha Viana. Muitas das grandes composições de Rosemberg foram feitas no escuro (e no silêncio) das noites cândido-salenses, entre as quatro paredes do seu antigo quarto do Hotel Paraíso. Cândido Sales foi o laboratório cultural para o jovem músico – incluindo-se aí como bônus a ludibriante arte do amor e do prazer carnal, desenvolvidos com afinco pelo menestrel.

Como nada vem de graça, ao vir para este torrão o poeta/cantador trouxe de contrapeso o carteiro Michel Platini (não confundir com o jogador de bola francês), que era um jovem boa pinta, prestes a se casar com uma conquistense lindíssima! Com todo o respeito, quando a noiva de Platini dava as caras por este torrão, a “homaiada” ficava enlouquecida. A moça desfilava literalmente pelas ruas da cidade fazendo que os bares ficassem completamente vazios, já que todos os clientes corriam pra porta apenas para vê-la passar. Michel ao sentir o sucesso que a garota fazia por aqui, enchia os pulmões, estufava o peito, abraçava a garota e passava lentamente na frente de todos com um sorriso sarcástico no rosto.   O jovem carteiro tinha apenas um pequeno problema… Se botasse uma única gota de pinga na boca virava o capeta! Sóbrio, conseguia driblar as investidas das garotas do nosso torrão, bêbado ficava incontrolável. Quase todos os dias a pequena agência ficava entupida de mulheres assediando o rapaz. Rosemberg se aproveitava da situação para tocar (literalmente) os corações das “donzelas”. Enquanto ele deitava e rolava, Michel jurava fidelidade à sua linda pretendente, deixando as meninas pra lá de indignadas. Quando Berg recebia os seus proventos, emprestava uma velha vitrola, arrumava um bico de luz de uma das duas casas que tinha gerador próprio, comprava dois litros de canjebrina e munido de um balde de gelo e alguns limões, virava a noite com alguns amigos ouvindo a sua coleção de MPB (leia-se: Fagner, Amelinha, Zé Ramalho, Alceu Valença, Belchior e afins). Contrariado, o jovem Michel era sempre forçado a participar destes “eventos”. Detestava aquilo, porém, para não contrariar o colega, participava mal-humorado! Assim que o cara tomava uma ou duas talagadas da “engasga-gato”, ficava completamente enlouquecido e saía correndo pela cidade chutando tudo que era porta que encontrava pelo caminho, batendo a cabeça em paredes e gritando feito um aluado.

As mulheres o queriam mesmo que embriagado, porém, a decepção sempre tomava o lugar do prazer! Geralmente, enquanto era beijado ele acabava vomitando a torto e a direito em quem se encontrava por perto. Nesta época, além da mulherada insana, o índice de rapazes que gostava de rapazes também era altíssimo. Havia, por exemplo, um jovem farmacêutico alcunhado de Bastião que gostava tanto do prazer que afixava em seu estabelecimento uma tabela individualizando os preços, desde o beijo na tábua do pescoço até a consubstanciação propriamente dita! Não é que Bastião de uma hora para outra não se invocou de traçar Platini? Ficou tão tarado pelo pobre carteiro que o mandou botar preço para uma exclusiva noite de amor.

Mais desconfiado que cachorro em bagageiro de bicicleta, o carteiro começou a terceirizar o seu trabalho. Toda vez que tinha alguma correspondência para ser entregue na farmácia – cansado de levar cantadas – ele dava uma ou outra moeda e mandava um garotinho entregar. Diariamente, dezenas de bilhetinhos apaixonados chegavam até ele: – Eu lhe amo, você é o amor da minha vida! Largue desta sirigaita e fique comigo. Se você não for meu, não será de mais ninguém. Eu lhe mato e me mato em seguida! Não duvide, ouviu? Eu estou louco de amor por você!

As propostas eram pra lá de indecentes, inclusive, com Bastião oferecendo uma grana preta para conviverem maritalmente. Michel ficava indignado, porém, levava tudo na esportiva e continuava ignorando solenemente as investidas.

Quando a sua linda e elegante noiva vinha visitá-lo, Michel fazia questão de desfilar com ela pelos quatro cantos da cidade e quando passava na porta da farmácia, Bastião tinha um ímpeto de infezação que metia até medo. Chutava o que encontrava pela frente, gritava, arrancava os cabelos, derrubava os frascos de remédios das prateleiras, quebrava os vidros das vitrines e depois se envolvia em uma crise de choro violenta. Nesta hora, era cercado pelos amigos que lhe distribuíam amor e carinho através de beijos afetuosos, delicados afagos, calorosos cafunés, fraternais abraços e um ombro amigo para que ele descarregasse todas as suas lágrimas… apesar de todo este apoio, nada o fazia se acalmar.

Em um destes “eventos” realizado por Berg, o carteiro se sentindo pressionado, tomou logo duas talagadas caprichadas de meizinha e quando percebeu já estava era correndo nu pela cidade. Geralmente quando ele atingia este índice de loucura, quem conseguia lhe acalmar era Berg. Neste dia, com a mulherada mais doida que de costume, Bergão se envolveu entre braços e pernas e só veio dá fé da falta de Michel Platini quando chegou a notícia que ele, bêbado feito um gambá, havia sido sequestrado e conduzido completamente pelado por Bastião e mais uma renca de “chegados”. Ao perceber o perigo que o amigo corria, Bergão e mais umas duas garotas saíram do jeito que estavam no quarto – enrolados apenas nos velhos cobertores – e subiram em direção ao campinho Augusto Flores. Ao chegar toparam com a cena grotesca de Platini completamente nu, deitado de papo pro ar, coberto dos pés à cabeça de vômito sendo gulosamente lambido pelo apetite voraz de Bastião e da sua trupe.

Michel foi salvo por Berg e as garotas – que já chegaram descendo o porrete nos meninos devassos -, exatamente quando já estava correspondendo ao beijo de língua de Bastião, por pouco, o farmacêutico não concretizava o seu sonho. Bastião só parou de atirar objetos nos salvadores de Michel quando Bergão ameaçou contar toda a história para seu Zé da farmácia (noivo oficial de Bastião). Coincidência ou não, uma semana depois, o jovem Michel Platini pediu transferência para Vitória da Conquista, deixando o pobre do Bastião com o coração partido! Durante meses, era possível ver todas as noites, o farmacêutico chorando copiosamente, agarrado desesperadamente à porta da agência dos correios e telégrafos.

– Ele ainda há de ser meu! Vai ser sim ou não me chamarei mais… Bastião!

Deve estar esperando até hoje!

 

Fim

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta.

CSales, Quadra de Setembro de 2022. Minguante de Primavera