A FOME E A VONTADE DE COMER!
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A FOME E A VONTADE DE COMER!

Lugar pequeno é o diabo! Um marasmo lascado, uma “fofocaiada” danada, garotas dando bola para rapazes tímidos (e rindo da cara deles), homens casados, atrevidos, tomando boca com as moças de família (recatadas e do lar), um carro ou outro cruzando a estrada recém-asfaltada, uma marinete parando enquanto os seus passageiros são bombardeados por dezenas de ambulantes, um hotel aqui, uma tenda de barbeiro ali, um quiosque vendendo pinga acolá e lá no canto, completamente separada de tudo quanto há, construída em alvenaria reforçada, a farmácia, cujo farmacêutico se desdobra atrás do balcão, atendendo gregos e troianos com uma paciência de monge, receitando medicamentos e adquirindo um inabalável respeito dos seus clientes fiéis.

1960 é o ano. Na época, farmácia que era farmácia, precisava ter uma placa pendurada na porta com o nome “PHARMACIA” com peagá! Dentro da minha vivência como “Novo conquistense” lembro que a primeira farmácia que surgiu por estas bandas foi a de seu Rufino! Se não foi a primeira, com certeza, ele foi um dos primeiros farmacêuticos da nova terra (depois viriam: seu Moisés. seu Osvaldo tio de Napoleão, Humberto, seu Ubaldino pai de Renan, Dona Rosa, Osvaldo da Farmácia – pai de Toninho Reis -, Joel e tantos outros).

Rufininho – como era conhecido -, era a elegância em pessoa, um gentleman! Era baixinho de uns 30 e poucos anos, pai de família exemplar, com uns quatro filhos (Eder, o galego era quem mais atazanava este torrão, morreu de acidente há algum tempo em Vitória da Conquista) e de conduta irretocável. Andava impecavelmente vestido e sempre tinha um “dedo de prosa” para trocar sobre quaisquer assunto com quem ultrapassasse os limites da sua propriedade. Não media esforços para tratar os enfermos. Curava tudo quanto há. Vermes, barriga inchada, caganeira, dor de cabeça, baço inchado, disenteria, espinhela caída, gota, frieira, hemorroidas, resguardo quebrado, quebranto, gôgo ou qualquer outro difruço, era só procurar seu Rufino que o remédio era “tiro e queda”!

Nesta época, fazendeiros como Célio Alves, Candim Sales, José Claudino (“Colodino”) e Joaquim Lacerda eram as grandes fortunas da região. Tinham madeira, gado (e outras criações), terras de bater a pau… Religiosamente, todo dia de feira – sábado – era fácil encontrá-los papeando na farmácia de seu Rufino. Gente de toda região vinham se receitar com o refinado e educadíssimo farmacêutico, já que médico nesse tempo era mais escasso que cabeça de bacalhau. Assim, se alguém precisasse de um lugar alegre e descontraído para se socializar era só comparecer à “Pharmacia do seu Rufino” e trocar um ou dois dedos de prosa.

No Boqueirão – vilarejo do interior do nosso município -. existia uma família muito respeitada que tinha uma pequena fazenda com algumas cabeças de gado, plantações de mandioca, feijão e milho, onde seu Bartolomeu cuidava da sua família composta por dona Heliodora e suas três filhas, Senhorinha (a primogênita), Joana e Maria. Senhorinha tinha uma educação refinada, era extremamente prendada, e mesmo sendo uma “senhora/moça” era muito bonita e bem apessoada. Por ser extremamente exigente, passara do tempo de se casar (naquela época tinha este tipo de coisa). Assim que se viu envelhecendo, a moça começou a se preocupar. Enquanto as suas irmãs mais moças iam se casando ela ia ficando pelo caminho. Quando caiu em si, já chegava aos 40 sem, sequer, conhecer o gosto de um beijo apaixonado.

Verdade seja dita, Senhorinha era linda de ofuscar as vistas de quem a via. Cabelos loiros, corpo de “carne batida”, seios fartos, lábios grossos e andar desconcertante. Não que ao longo deste tempo não tenha aparecido pretendentes na sua vida, porém, ninguém tocara verdadeiramente o seu coração, assim, optara por esperar o verdadeiro amor. Prendada e conceituada a moça fazia doces deliciosos que eram vendidos na feira, costurava com maestria, inclusive, incomodando as modistas da sede, sem falar que era uma cozinheira de mão cheia, fazendo pratos delicados. Desde os 18 anos que ela estava apta para o matrimônio, porém, dizia que só se casaria por amor.

Quando viu as suas duas irmãs mais novas contraírem matrimônio, Senhorinha perdera completamente as esperanças e já se preparava para virar titia, quando em um belo dia os seus olhos azuis cruzaram por acaso com os olhos negros de Fenelon Mascate. Ao ouvir alguém bater na porta da casa grande em um final de semana, a moça que se encontrava sozinha em casa, abriu a porta e quase caiu de costas quando se deparou com o menino Fenelon. Este caboclo era um mascate da Vila do Poção (Hoje cidade de Poções) e ao chegar à casa do velho Bartolomeu, pai da linda Senhorinha, tentando vender alguns penicos e panelas, deu a sorte de só encontrar na residência a meiga donzela de 40 anos. Foi um amor devastador! Mal se olharam e mutuamente se apaixonaram. Fenelon, apesar de ser um musculoso jovem de 20 anos, já tinha construído com o suor do seu rosto no ofício de caixeiro-viajante um belo de um “pé de meia” (trabalhava com os pais desde os 12 anos de idade). Bastou ver a garota para arriar completamente os quatro pneus, saindo completamente da sua zona de conforto. Diante dos olhos azuis da formosa dama ele percebeu que passaria o resto da vida ao lado dela.

– Bom dia moça… Meu nome é Fenelon, sou caixeiro-viajante, estou vendendo panelas, bacias, artefatos de couro e penicos. Seu pai está? – Ficaram se olhando por alguns segundos e, tímida, Senhorinha balbuciou:

– Desculpa, meu pai está ausente…

– Moça, perdoe meu atrevimento! Não tenho o hábito de falar assim, mas a senhora é a mulher mais linda que já vi na minha vida! – Ao ouvir, Senhorinha ficou atônita. Não sabia o porquê, mas era o mesma que ela sentia. Logo, balbuciaram algumas palavras, um leve toque de mãos, um abraço apertado e saiu o tão sonhado beijo molhado… Não demorou muito tempo e lá estavam eles diante do altar da pequena igreja da comunidade matrimoniando-se diante de Deus e de um Padre Conquistense! Fogos, sorrisos, festa regada a acordeom, muito forrobodó, cumprimentos, presença das notáveis figuras da região e uma renca de presentes doados pelos influentes fazendeiros. A festança foi uma das maiores já vista na região com uma comilança desenfreada, acompanhada de bebedeira de tudo quanto há e logo só se ouviam os gemidos sensuais de ambos se acariciando, excitados e despidos no escurinho da alcova de núpcias, especialmente construída para o ato.

Entre um beijo e outro, trocaram juras de amor, prometendo se amarem eternamente e na hora da consubstanciação da concretização, os dois ficaram sabendo que ambos (mesmo ela tendo o dobro da idade dele) eram virgens. Riram do fato e entre uma e outra caricia, partiram para a tão sonhada empreitada! As mãos hábeis da donzela retiraram rapidamente as vestes do noivo, e após beijos ardentes e carícias indescritíveis o garoto foi jogado sobre a cama reforçada construída especialmente para o evento. A alcova ficava um pouco distante da casa, porém, a curiosidade das irmãs acabou salvando a vida do menino Fenelon.

Depois de quase meia hora de mãos deslizando pelos corpos nus, beijos e gemidos incontrolados, uma insaciável Senhorinha ainda vestida de noiva, tirou a calçola e saltou sobre Fenelon que estava “riscando as paredes” de vontade. Ao tentar introduzir de supetão a parte enrijecida do marido, ouviu-se um rangido intermitente e após soltar um gemido aterrador, o pobre do noivo deu um pulo tenebroso da cama, se estatelou no chão berrando mais que porco castrado, se esvaindo em sangue.

– Me acode, Me acode, Me acode! Estou morrendo, me acode!

Era ele berrando de um lado e ela gritando do outro. Ninguém entendia absolutamente nada! – Acode aqui gente, meu marido está morrendo, por Deus, ajude, ele está morrendo…

Foi quando as irmãs que se escondiam atrás das paredes (para testemunharem o ato) correram até o salão, interromperam o forrobodó…

– Acode lá, gente, por Deus, veja o que está havendo no quarto dos noivos… –  O desespero das irmãs fez que metade dos convidados corressem até o local e estourasse a porta de madeira. Ao adentrarem o recinto deram com uma cena pra lá de macabra: ainda com o vestido de noiva todo lambuzado de sangue, Senhorinha chorava sobre o travesseiro enquanto o pobre do Fenelon rolava literalmente de dor no chão do quarto recém-cimentado, com a genitália endurecida completamente esfolada, em carne viva, cujo couro fora brutalmente empurrado até o pé da sua barriga. Enquanto o sangue jorrava com uma pressão absurda, o infeliz se contorcia em dores rolando pelo piso da alcova.

– Acode aqui, gente! Ele está esvaindo em sangue. Arrume aí um pano molhada, depressa, temos que salvá-lo agora. – Gritou o sogro Bartolomeu. Enquanto o pobre

era enrolado às pressas em um lençol, alguém providenciava uma velha rural para trazê-lo rapidamente até a farmácia de seu Rufino que sem alternativas, utilizou o único recurso que dispunha naquele momento, costurar sem anestesia o tecido rasgado do corpo do infeliz.

– Pelo amor de Deus, Seu Rufino. Eu sou muito novo pra morrer, salve a minha vida por favor, salve-me, salve-me…

Diante dos pedidos desesperados e do delicado procedimento que o ferimento exigia, Seu Rufino teve que usar toda a sua perícia para salvar a vida do pobre rapaz. Primeiro exigiu que dois ajudantes fortes o segurassem na maca e com a delicadeza que o momento exigia, pegava o couro esfolado e puxava com uma pinça, enquanto cingia a delicada parte com uma agulha de costurar sacos de estopa. Toda vez que furava a carne o infeliz tremia de dor, no terceiro furo o pobre já berrava mais que bode sendo castrado, no quarto furo dava cada pulo que faltava bater com a cabeça no teto da farmácia. Os ajudantes tiveram que usar toda a força que possuíam para mantê-lo preso à maca enquanto o competente farmacêutico fazia a sutura.

– Pelo amor de Deus, pare que não aguento mais. Pare, por Deus, pare, pare, pare… – Sangue espirrando pra tudo que era lado e seu Rufino com o seu avental impermeável todo lambuzado e tome agulhada e linha de pescar, costurando o couro esfolado. No quinto furo Fenelon revirou os olhos e desmaiou. Para voltar a si foi necessário alguém trazer às pressas algumas capelas de fumo de rolo e enfiar nas ventas do infeliz que depois de dez minutos de agonia acordou todo embriagado. Gastou-se um infinidade de gazes e algodão para envolver o órgão afetado, deixando fora do curativo apenas o buraco da passagem da urina que mesmo assim provocava uma dor insuportável! Foram dias de tortura para o pobre coitado. Sempre que ia urinar, sentia tanta dor que pedia pra morrer.

Que Fenelon sobreviveu, não temos dúvidas! A dúvida ficou em saber se Senhorinha que morreu com quase 90 anos conseguiu perder a tão sonhada virgindade, já que as más línguas sustentam com relativa convicção que ela morreu sem parir, portanto, donzela. Quanto à Fenelon, estas mesmas más línguas afirmam que ele morreu velhinho sem conhecer os prazeres da carne.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e poeta

Cândido Sales, Bahia. Quadra de Setembro de 2024. Lua cheia de inverno.