A DUREZA DA MORTE…
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A DUREZA DA MORTE…

A noite caía vertiginosamente, a poeira vermelha impregnava o suor na pele dos corpos cansados, ali, montados nos animais obedientes e determinados. Faltavam ainda alguns dias para o valente Onofre Ribeiro cumprir a sua obrigação de cruzar as veredas do sertão dos Gerais, liderando os seus homens e conduzindo aquela boiada até o Sertão da Ressaca. As 30 léguas que separavam um ponto do outro iam ficando pelo caminho, a brisa da notinha amenizava o escaldante calor que dobrava os espinhaços de homens e animais… repentinamente, eis que a luz da lua reflete um objeto brilhante e antes mesmo do condutor–chefe daquela boiada perceber uma bala traiçoeira encangada no estampido de um tiro vir em direção ao seu peito, vira intuitivamente o corpo e o projétil que tinha como destino o seu coração, acaba lhe perfurando o ombro, o jogando violentamente cela abaixo. Mesmo atordoado, Onofre ainda viu os companheiros serem alvejados e sua boiada ser tangida morro acima pelos malfeitores. Os ladrões dos gerais voltavam a atacar roubando todo o gado que ele conduziria sertão adentro. Ele não sabe quando tempo ficou desacordado, acordou em uma ampla cama de lençóis brancos e cheirosos, seu ombro ainda doía, porém, o carinho da linda donzela que trocava os seus curativos, amenizara um pouco aquela dor. Estamos no início do século XIX e o destemido Onofre Ribeiro conseguia escapar com vida do maior roubo de gado acontecido na região e do atentado que quase minara a sua vida. A experiência adquirida como boiadeiro foi essencial para salvar-lhe. Socorrido pelo fazendeiro Morenão Salgado da Vila dos Montes Claros, Onofre ficou inconsciente por quase um mês, ao recobrar a memória viu-se cuidado pela menina Deolinda, a única herdeira de Morenão, um dos fazendeiros mais ricos dos Gerais. A sorte conspirava a favor daquele jovem valente e impetuoso, o cuidado da moça faria que ambos se apaixonassem repentinamente e Onofre Ribeiro se casasse e herdasse a fortuna da moça, se transformando em um dos mais ricos coronéis deste torrão.

40 anos depois deste sucedido, o casal continuava sem constituir filhos, administrando as mais prósperas terras do Sertão da Ressaca, a Fazenda Bela Vista, um mundão de alqueires que originaria o povoado do Porto da Santa Cruz, elo obrigatório entre o Sul e o Norte do país.  Em 1920 a riqueza e poder deste coronel atingiriam o clímax e a sua influência na região o transformaria em um dos homens mais poderosos da história. Neste período dona Deolinda se transformara em uma senhora tristonha e deprimida. Onofre utilizava todo o poder conquistado para aterrorizar os desafetos e traçar literalmente as mulheres da região, não importando se casadas ou não. Como nada é eterno, eis que um belo dia o fazendeiro se viu fisgado pela morena que ele viu nascer e crescer na sua fazenda, Zefinha, uma mucama de 16 anos, filha da sua principal governanta. A meiguice, sinuosidade e beleza da garota desnorteou completamente o patrão em um relacionamento tóxico e escandaloso. Zefa tinha 16 aninhos e o poderoso coronel seus quase 80. A paixão foi tão devastadora que virou até livreto de cordel.  A riqueza de Onofre (baseada no dote da sua esposa que era filha única) foi turbinada através dos negócios – nem sempre lícitos – com tropeiros, boiadeiros, caixeiros-viajantes, mascates e marreteiros que deram por estas paragens. Astuto e bom comerciante, logo o velho fazendeiro tinha gado a perder de vista em suas terras, comercializando tudo quanto há, plantando, colhendo e prosperando.

Nos anos 1920 a Bela Vista tinha centenas de empregados, muitos nascidos na própria fazenda. Zefinha (filha de Sá Bastiana) era uma destas moças que cresceu os dentes servindo à família, tanto que gozava de muito prestígio com Dona Deolinda que a tratava com muito carinho. Enquanto a mucama crescia se transformando em uma linda mulher, o coronel Onofre administrava as suas terras com mão de ferro, triplicando (muitas vezes na base da força) o seu patrimônio. Era público e notório que no auge dos seus quase oitenta anos, Onofre tivesse um harém, traçando impiedosamente as mulheres mais lindas da região, um belo dia ao voltar de uma caçada, o coronel flagrou a linda mucama se banhado na cachoeira do barro grosso, nua como viera ao mundo, com suas pequenas penugens, suas carnes tenras, seus cabelos encaracolados e aqueles dois pontinhos endurecidos nos lugares dos seios, o velho se babou todo e foi logo botando preferência e exclusividade na garota de 16 aninhos. Malandra, Zefinha descobriu que poderia lucrar sendo a preferida do velho Onofre Ribeiro. A partir daí, passou a conduzir o patrão aos mais distantes pontos do “paraíso”, bastava ter uma cama confortável e o estrago estava feito. O coronel ficou tão apaixonado que se esqueceu completamente que era o chefe daquele império, enquanto Zefa distribuía ordens à torto e a direito, desagradando completamente as funcionárias mais antigas. A coisa saíu completamente do controle quando a menina-moça chegou a se imaginar dona da fazenda, chegando ao cúmulo de nem mais se preocupar em esconder o relacionamento, inclusive, trocando beijos ardentes com o patrão diante dos olhos – e da língua – de todos.

Quando dona Deolinda ia visitar a família na Vila dos Montes Claros, a volúpia de Zefinha deixava o velho completamente descadeirado. Ó ódio que a menina despertava nas empregadas (antigas companheiras) fazia que todo santo dia uma renca de fofocas chegasse até dona Deolinda, que. escolada, fazia a política da boa vizinhança, ignorando solenemente o sucedido. Eis que uma bela noite após chegar de viagem, a patroa flagrou a mulata e o coronel rolando escandalosamente na sua cama, poderia até fingir que não tinha visto nada se a mucama, cheia de autoridade, não demorasse tanto para sair da alcova, fazendo questão de tomar um refrescante banho com sais perfumados na banheira da patroa diante dos olhos estupefatos do coronel.

Resignada, após uma bistunta, dona Deolinda perdeu as estribeiras e gentilmente “convidou” a jovem mucama a deixar definitivamente a fazenda. O coronel ainda tentou contornar a situação, porém, tendo que escolher entre a moça e a esposa, adivinha só qual foi a escolha dele? De nada adiantou Zefinha espernear, dar chilique, chorar e desfalecer… acuado o coronel se viu forçado a acatar as ordens da patroa. Colocou a amante pra fora da fazenda. Antes, pediu gentilmente ao Capataz Farofino (homem da sua inteira confiança) para entregar uma boa quantia em dinheiro para a moça e construir à surdina e em tempo recorde um lindo sobrado no outro lado do rio, distante uma légua e meia das terras da fazenda. Após uma semana morando de favor em um casebre, Zefinha mudou-se de mala e cuia, contratando um enorme carro de boi para levar os seus pertences (que não eram poucos). Logo, lá estava ela morando na bela residência recém-construída. Assim, Zefinha passava a ser a “amante oficial” do coronel Onofre Ribeiro da Silva.

A partir desta data, quando não estava “agradando” ao coronel Onofre, que uma vez por semana se vestia com uma capa negra de tropeiro e descia boiando pelas águas do rio, a menina “atendia” praticamente todos os homens do Povoado. O adjutório, antes dado de forma espontânea, virou cachê devidamente tabelado, contado em horas. Em pouco tempo a moça se transformou em uma das quengas mais ricas do Sertão da Ressaca. De birra, dona Deolinda – para se vingar do marido – pagava para as empregadas saírem espalhando pela fazenda a atividade desenvolvida pela amante. Quando essas conversas chegavam ao ouvido do velho, ele tinha um descomunal rompante de infezação, vestia a sua indefectível capa preta, munia-se da sua inseparável bengala de osso e entrava sorrateiramente na correnteza do rio que o deixava na porta da casa da mulata onde ele extravasava toda a sua raiva na cama, com a mulata. Era público e notório que religiosamente, toda semana, o bravo coronel era flagrado boiando rio abaixo, igual uma sucuri.

Eis que um belo dia, após participar de uma intensa comilança no casarão da fazenda, onde se comemorava o “sacramento” de um afilhado, o coronel Onofre conseguiu se desvencilhar dos convidados e após vestir a sua capa preta e apanhar a sua bengala, entrou apressado no rio e boiou literalmente em direção aos braços de sua doce amada. Neste dia (a mucama confessaria depois) o velho coronel parecia estar possuído, já que jamais demonstrara uma virilidade daquelas. Ficou “encruado” por mais de duas horas chegando quase a quebrar a cama. Ao chegar aos “finalmentes” soltou um grito aterrador e caiu se debatendo no chão do quarto, babando igual epilético, morreria minutos depois de infarto fulminante.

– Onofre, fale comigo, oh, meu Deus. Acode aqui, gente… socorro, socorro! – Os berros transtornados da mucama se espalharam pela região e logo a casa se encheu de curiosos. Como tudo na vida do velho Onofre era apoteótico, o infeliz, mesmo acometido de um mal súbito, fez questão de morrer de prazer com a sua “espada” erguida, apontando para o teto. Morreu de ”morte morrida” sem perder a pose, permanecendo com um sorriso nos lábios e com a genitália enrijecida, mostrando quem era o verdadeiro dono de Zefinha. A muito custo a mucama convenceu os vizinhos a conduzirem o corpo do coronel (naturalmente, vestido às pressas com a sua capa) até a margem contrária do rio onde foi achado por ribeirinhos, ainda com a sua “ferramenta” apontando para o alto. Por mais que se tentasse abaixar o “instrumento”, não teve santo que desse jeito, o infarto que o fulminou o deixou duro feito pedra. Após a comprovação do fato os moradores do lugarejo foram tomados por uma dor intensa!

Apesar de justo e duro (sem trocadilhos) o coronel Onofre era muito querido. Levado para o casarão da fazenda, o corpo foi banhado, e na presença do padre que veio às pressas da Vila da Conquista, criou-se um impasse. O que fazer com “aquilo” que teimava em se manter “empinado” em um corpo inerte? Dona Deolinda que aceitou com naturalidade a morte do marido se viu constrangida perante o órgão enrijecido do corpo (coisa que ela não via há tempos), aconselhada pelo padre conquistense, a esposa decepou “o membro inconveniente”, e sob o pretexto que o “instrumento” atrapalharia o fechamento do caixão, aproveitaram um dos buracos para enfiar dentro do defunto. O que chamou bastante a atenção – quem viu fala até hoje – foi dona Deolinda ostentar um estranho e enigmático sorriso nos lábios quando munida da peixeira amolada, retirou cirurgicamente a parte que atrapalhava. O sepultamento do coronel foi uma comoção, com muita gente prestando uma última homenagem. Houve até salva de tiros.

Em um canto, meio que escondida, atrás de um pé de gameleira, Zefinha chorou em silêncio. Esperou o corpo ser baixado a terra, e sem se fazer notar, saiu discretamente por entre as copas das árvores. A partir desta data, ninguém soube informar o destino da moça. Vendeu todos os seus bens – à preços módicos – e da noite para o dia desapareceu misteriosamente. Quanto à Dona Deolinda, mal esperou o corpo baixar à sepultura e já foi se amasiando com o capataz Farofino, que se tornou o novo coronel. Antes, porém, exigiu que o moço extraísse todos os dentes cariados, inclusive, o horripilante dentão de ouro que ostentava na sua bocarra. Foi prontamente atendida e sem questionamentos viveram felizes, tendo inclusive, uma renca de filhos!

 

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

Poeta e Escritor

Cândido Sales, Bahia. Quadras de Maio de 2024. Minguante de Outono.