A DEFUNTA
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A DEFUNTA

O ano era 1962, aqui mesmo no Vilarejo de Nova Conquista. Zé do Sindicado ficara famoso por ser o “desenterrador oficial dos bens das almas penadas”. Além de cavar o ouro dos mortos, nas horas vagas, era também um dos fundadores da Igreja Católica e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

Esta história começa quando Zé era apenas um rapazola que levava e trazia comida todo santo dia para o seu falecido pai, que trabalhava de sol a sol na sua rocinha. Um belo dia, lá vinha o menino desembestado pela estrada em pleno meio-dia, quando espantou-se diante da visão de uma mulher de uma beleza estonteante. Vendo aquilo, o menino deu uma brecada brusca e ficou espiando a moça, de soslaio, ao tentar passar pela distinta senhora, ela lhe dirigiu a palavra, o desconcertando completamente. – Vem aqui, moço! Está com medo de mim? Pode vir que eu não mordo não. – Diante da insistência da formosa dama, Zé foi se aproximando desconfiado. – Apôis não, o que qui a sinhora qué? – perguntou assustado. O sorriso da mulher era de abestalhar o caboclo, a pele era tão alva que parecia um capucho de algodão. Jovem, sorridente, bela e educada, a moça se vestia igual aos retratos que tinham nos almanaques distribuídos todo final de ano pela farmácia de seu Rufino. Ao se aproximar mais um pouco percebeu que aquela lindeza fedia que era uma beleza! E não era um fedorzinho qualquer não, era um fedorzão pra nocautear urubu. A primeira vontade do garoto foi passar sebo nas canelas e cair na lapa do mundo, porém, fora educado para tratar bem as pessoas, sendo assim, tampou as narinas e resolveu ouvir o que a estranha tinha para dizer. Foi aí que ele notou que a mulher era mais gelada que as garrafas de brahmas que saíam da geladeira à querosene da venda de João Caiçara. Parecia até que a moça tinha engolido a famosa “pedra d’água” cantada pelo Trio Nordestino

. – Pode falá dona muié! – rosnou impaciente. – Você não está com medo de mim não, né?

– I’eu? I’eu sô lá de sintí medo, dona minina? Num tenho medo ninhum não. Meu pai falô que home que é home tem que garantí as carças que veste… Oxem!

– E se… Por acaso, eu lhe disser que sou uma alma penada, hein? – provocou a mulher, gargalhando. – Nóis tem que tê medo é dos vivo, dona. Os morto num faiz mal ninhum não! Os vivo pega, mata e come!

– Pois é, minino, eu sou uma defunta, e uma defunta ruim, daquelas que vive vagando pelo mundo procurando paz, entende? Só vou descansar quando arguém muito corajoso realizar uma tarefa que vai me libertar. Lhe entrego essa missão por que senti que és um caboclinho macho! Se você fizer isto por mim vai ficar remediado pro resto da sua vida e ainda vai trazer a paz para a minha alma!

– Oia, dona muié, se a sinhora tiver mangando d’eu pode pará! Num tenho medo ninhum de cadáve não! Sou corajudo!

– Isso eu já sei. Você é corajoso! Mas não acha que eu estou morta?

– Ôxe! Quem dera os mortos fosse bonito igual à sinhora! Morto não é bunito assim não. Os bichos são mais feio que o velho Zifirino quando tá com caganeira! Se a senhora for mermo uma difunta, é a difunta mais bunita que existe no mundo! Diga logo o que a sinhora qué, istô mei ucupado, num sabe? Num tenho o dia todo pra ficá prosiano cum difunta não. Fala logo o que cê qué que eu pico a mula, mainha já deve de istá avexada com a minha delata!

– Eu quero que você faça uma coisa pra mim… Pode ficar um pouquinho distante, não posso tocar em você.

– Cruz credo, credo em cruz, vixe Maria mãe de nosso sinhô! – Disse o menino fazendo o sinal da cruz.  – “Avimaria”, “ocê” é mais gelada que pedra de gelo!

– Na verdade, menino… Todo defunto é gelado e eu sou uma morta vagando há anos pelo mundo, sem descanso, sem paz, sem choro, sem vela e sem reza…

– Intonce fala logo o que a sinhora quer de mim. Se eu delatá muito eu levo vara de marmelo no lombo! – Gritou aperreado!

– Em vida, eu enterrei um pote de ouro e joias, só vou conseguir encontrar a paz quando ele for desenterrado. Quero que você arranque e fique com ele! Pode ficar com tudo. mas quando terminar de arrancar grite:  – “Com Deus eu falo… Com Deus me encanto… Com os poderes de Deus e da Virgem Maria… Pode ir Florisbela, com os poderes de Deus você está liberta”. Falar e dar três batidas no pote.

– O que? Ouro? Tá caçoando d’eu? – indagou Zé, atônito.

– Não. É a mais pura verdade. Ouro e prata! Joias, brincos, baixelas, copos, talheres, muita coisa… Sua vida vai mudar para sempre! É só arrancar! Agora, tem que falar às palavras que eu lhe ensinei… Entendeu? Três vezes e dar três batidas… Só vou encontrar a paz quando eu doar este pote para alguém corajoso! –- Zé, despercebido, tentou girar em torno da mulher, ela deu um salto violento rosnando igual cachorro: – Grrrraaaaahhh… Êpa!… Minhas costas, não! Fique longe de mim! Podemos conversar à distância! Não olhe as minhas costas!

Gritou a defunta. – Uái!!! Que qué isso, dona defunta? Virou cachorro? Fala logo onde tá o diabo do pote pro mode eu rancá isso, uai!

– Tá pensando que é fácil arrancar um pote? Vai ter uma renca de livusias tentando atrapalhar, se o caboclo for fraco, larga tudo e corre. Ali está o ouro… Ó… – Ao tentar mostrar o lugar, a morta foi se deformando, mudando de cor, os cabelos negros e sedosos foram ficando brancos e escorrendo sobre o corpo, os olhos foram ficando enormes, às unhas foram crescendo, os dentes foram saindo da boca, e a linda senhora foi ficando cada vez mais cadavérica, sibilando igual uma cobra. Logo se transformou em uma velha, corcunda, enrugada, com as pálpebras caídas, um nariz arredondado e um rosto cadavérico, cuja vestimenta de gala se transformou em uns trapos pretos. Desesperada, apontava com o dedo trêmulo e esquálido para uma moita ao lado de Zé.

– Ah, tá na moita de quiabento? – Perguntou Zé enquanto a voz meiga e suave da defunta era substituída por uma vozinha fraca, fanhosa e quase ininteligível, toda deformada: – Arranca… É seu! Agora você só vai conseguir se vier ou meio dia, ou meia noite! E tem mais, tem que vir sozinho. Se vier acompanhado você não vai achar o lugar exato. Não deve chegar nem atrasado e nem adiantado, compreendeu menino? – Sim, senhora! Podexá comigo, dona difunta! – Apôis, agora fique de costas que eu vou embora.

– Hoje eu vou carpir uma roça, amenhã ao meio dia eu ranco este troço debaixo da terra! – A defunta deformada ainda disse para Zé: – Tudo bem! Fica combinado. Agora, vire-se e não olhe para as minhas costas. Não se esqueça de repetir por três vezes as palavras, entendeu? Vira pra lá! – Zé tampou os olhos com as mãos ao tempo em que a mulher dava um pipoco ensurdecedor e entre o fedor de pólvora misturada a enxofre, sumiu em meio a fumaça preta.

No dia seguinte, ele se levantou logo cedo, e, assim que sua mãe pediu para ele levar o almoço do seu velho pai, jogou as ferramentas nas costas e deu linha.  Esperou o velho comer, e, assim que o sol dividiu o céu ao meio, lá estava Zé, no local combinado, cavando a terra dura. Assim que a picareta tocou o solo, o tempo ficou nublado e a quantidade de livusia que apareceu no pingo do meio-dia foi de meter medo! Primeiro veio um redemoinho de poeira girando em torno da cintura do garoto… Depois despencou do céu uma renca de sapos, pulando e coaxando de forma ensurdecedora. Pulavam sobre Zé, que ignorando solenemente o sucedido, descia com força a picareta nas cabeças dos cururus que estouravam quando atingidos, desaparecendo em seguida. Logo os cururus foram substituídas por um bando de grilos cantando e pulando para tudo que era lado. Eram tantos, que Zé mal acertava o buraco que cavava. Foram mais de cinco minutos com os bichos saltando em cima do pobre garoto, que fechou os olhos e rezou forte. Imediatamente desapareceram todos, não ficou um, sequer. Quando Zé achou que as livusias tinham acabado, eis que surgem de todas as partes um enorme rolo de cobras de todo tamanho, abocanhando umas às outras. Coral comendo caninana, jiboia engolindo surucucu, preta digladiando com patrona e até sucuri se enrolando no pobre garoto. Mais uma vez Zé fechou os olhos e rezou para São José. Ao abrir, tudo voltara ao normal. Determinado, o garoto meteu o picareta para dentro e quanto mais cavava, mais terra voltava para o buraco. Zé parou, olhou de lado e lá estava sentada com as patas dianteiras cruzadas lhe olhando, uma suçuarana negra, enorme, com os olhos amarelados, fixados nele.  Acostumado com os bichos do mato, o menino descobriu na hora que aquela não era uma onça. Nenhum bicho tinha um olhar daqueles. Pensando assim, meteu os ferros. Trocou de ferramenta e cavoucou com vontade e em menos de meia hora tocou algo sólido dentro do buraco. Sorriu feliz e ao tentar pegar uma espécie de moringa, viu-se cercado de pássaros de todos os tipos. Voando e bicando o infeliz do matuto. Gaviões, morcegos, urutaus, curiango, bacurau e até uma coruja maluca, soltando uivos esquisitos e infernizando a vida do garoto. Na base do desespero, Zé se lembrou da oração que o seu velho pai lhe ensinara para sair de problemas:

– Santo Antônio pequenino, amansador de burro brabo, protegei este menino destes cento e cinquenta diabos… – Foi rezar e uma intensa ventania levou os pássaros para bem longe de Zé. Agradecido, o garoto se ajoelhou, fez o sinal da cruz, cavou mais vinte minutos e retirou da terra o artefato de barro, conferiu e se certificou que a moringa estava cheia até os beiços de ouro, prata e até algumas pedras coloridas. Tirou um crucifixo da algibeira, beijou, olhou para o céu e gritou com todas as forças que possuía: – “Com Deus eu falo… Com Deus me encanto… Com os poderes de Deus e da Virgem Maria… Pode ir Florisbela, com os poderes de Deus você está liberta”! – Repetiu por três vezes, deu três batidas na moringa e enquanto o menino repetia a oração, um redemoinho girava ao seu redor. Bastou terminar de falar para que a suçuarana negra se levantasse, desse um tenebroso rugido, deixando o coração de Zé quase que saindo boca afora e veio até ele, como se estivesse agradecendo, se curvou fazendo uma estranha reverência. Em seguida voltou a rosnar dando um pulo cinematográfico, desaparecendo dentro da mata!  Zé, ainda trêmulo, caiu de joelhos e fez o sinal da cruz. Neste tempo, além de pulseiras e adereços para o pescoço, garfos e facas compunham as peças de prata. Entre outras coisas, bem no fundo da moringa, havia uma caixinha de pó de arroz com algumas moedas de prata. Amarrou tudo em um pano, jogou nas costas e, como se nada tivesse acontecido, correu feliz em direção à sua velha casa. Este foi apenas o primeiro tesouro retirado por Zé do Sindicato que de lá até os dias de hoje, garante que já quebrou quatro potes de ouro dos defuntos. Atualmente, Zé do Sindicato afirma com relativa convicção que o velho Chevrolet 1968 e a fazendinha que ele adquiriu na beira do Rio Pardo foram pagos com a venda de parte daquele achado. O restante está bem enterrado, o que significa que assim que ele morrer, obrigatoriamente, terá que encontrar algum corajoso para desenterrar a moringa de ouro e prata… Enquanto isso. vai tocando calmamente a sua vidinha.

FIM

Luiz Carlos Figueiredo

CSales – BA. Quadra de Maio de 2023. Verão. Lua Nova.