O morador mais ilustres deste torrão (como é do conhecimento de todos) é Zé Sindicato. O homem já fez coisas do “Arco-da-Véa” por aqui. É conhecido e patenteado por fazer um verdadeiro intercâmbio entre o mundo dos vivos e dos mortos. Sim, Zé não aguenta ver um defunto que já vai trocando dois “dedin” de prosa com o falecido. Durante a entrevista que fiz com ele em meados de 2015, me relatou uma renca de histórias deliciosas, como a do “escuro de 1947” que fez as pessoas pensarem ser o fim mundo e se amontoarem uns em cima dos outros dentro da diminuta capelinha do Boqueirão Grande, do pacto que fez com alguns defuntos para cavar e desenterrar potes de ouro e de como ajudou a construir a Igreja Católica Matriz, fundando simultaneamente o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cândido Sales.
Em 1966, após uma calorosa pregação do Padre Pedro Callegari, Zé ficou incumbido de filiar os lavradores no recém-criado STR. O padre sabia que esta era a única forma do trabalhador rural sobreviver à velhice que era quando mais careceria de um amparo, assim, bastou sancionarem a lei, para Zé – a mando do Padre – sair a campo, cadastrando as famílias que viviam da terra.
– Bota aqui o dedo, o governo vai aposentar todos que tiverem com a idade avançada e não puderem mais trabalhar. – Nesta mesma época (1967) existia do munícipio de Itaobim, no Vale do Jequitinhonha, 140 quilômetros distante de Cândido Sales, uma Charqueada, trabalhando de vento em popa, produzindo e exportando carne do sertão para “os estrangeiros”. A charqueada dos Gerais não matava exclusivamente gado, se sobrasse, iam cavalos, éguas, mulas, burros e até jumentos. Se achassem pelo caminho, os abatedores não queriam nem saber se os bichos estavam com bicheiras, tosse, gogo, perebas, caindo dos quartos… se encontrasse na pista, metia os cacetes, jogava na garupa do caminhão e os transformavam em carne do sertão. Quando os céticos topavam diariamente com um ou outro caminhão boiadeiro – com aquela imensa gaiola como carroceria – entupido até os beiços de jumentos, saiam desembestados cidade adentro espalhando a fofoca pra quem quisesse ouvir: – Eu vi, eu vi, com estes zóios que a terra há de comer… o carro da charqueada tava lá na rodagem pegando tudo que é jumento, mula, burro, e até cavalo… Pegaram até a égua Catarina de Derotides. A bicha estava toda mochilada, cheia de carrapatos, um mosqueiro desgraçado em cima e eles não quiseram nem saber. “Piaram” a coitadinha e jogou com tudo em cima junto à uma renca de animais. Estão levando tudo para a charqueada,
Nos dias de feira, a carne mais barata e, obviamente a mais consumida era o jabá, que chegava em enormes mantas prensadas com uma infinidade de gordura. O povo só comprava pra sair alardeando no dia seguinte que bastava botar a bicha no fogo pra ela pular feito uma desvalida e algumas até relinchava. Não era que tinha gente que acreditava? O povo já estava até se acostumado com o gosto da “carne de jumento” quando surgiu a conversa que os jegues da região estavam ficando escassos e o jeito foi o governo capturar os “veizins” doentes e enviá-los para a charqueada para transformar tudo em carne de jabá, afinal de contas, a exportação de carne para o exterior não podia parar. Quando os “veizim” souberam da história, entraram em um desespero tão medonho que deu até medo. Logo, alardearam por toda a cidade que quem se filiasse ao Sindicato iria virar carne de jabá. Tá pensando que Fake-News é coisa de hoje? Quando esta notícia caiu nos “zuvidos dos véi”, deu uma confusão lascada… uma correria danada, uma gritaria medonha, o medo exalado pelos poros e nem o padre deu jeito. Teve velho que ficou mais de uma semana escondidos debaixo da cama, tremendo de medo. – Não diz que estou aqui não. Não quero virar jabá não! Fecha a porta, apague a luz!
– “Num” é “mintira” não, “Filisberto”! João Espinhela Caída que não é “home” de mentira, disse pra quem quisesse ouvir que viu com os “zóios” que a terra haverá de comer uma renca de “véi, piados” dentro do carro de boi. “Chei” de remela na cara, tinha uns “inté” cum gogo! Levaram todo mundo pra Itaobim! – “Cê” tá doido, “home”? Eu lá quero virar carne do sertão? – Indagava Felisberto. – Bem que eu percebi que a carne q’ueu comprei “onti” estava toda “vermêa” e com gosto ruim. Vá ver que era de “véi”. Agora que estou astuciando que aquilo era carne de gente! Estão matando os “veios” e vendendo como jabá! O gosto era “horrive”! – Sustentava um outro. Por falar nisso tem mais de duas “sumanas” que “num” vejo Zé Muquirana, será “q’uele” virou jabá? Ô gente, vai ver “q’ueu inté cumi o bichim”.
– Oia, dizem que quem está de conluio com essa tal charqueada é o Sindicato que o “Pádi” está fundando aqui. Basta o caboclo se “inscrevê pra mode” o governo dá fé “adonde o miseráve mora e na calada da noite “pega o infiliz no laço” e leva pra charqueada.
O governo vai “querê véi” vivo pra que? – Dizia outro com uma inenarrável certeza. – Véi só serve pra bufar!
Logo começara a acusar Zé do Sindicato de ser um “agente do Governo” a serviço da igreja, que tinha a missão de capturar e conduzir à força os pobres velhinhos para serem transformados em jabá. menos velhinhos, menos indenizações de aposentadorias. Neste tempo o povoado do Porto de Santa Cruz que fica à menos de duas léguas daqui era o grande comércio da região. Lá tinha um casal de idosos extremamente habilidosos no comércio. Bartolomeu e Dona Antônia eram sexagenários e nunca tiveram filhos. Assim que estas notícias começaram a se espalhar, Dona Antônia começou a ficar preocupada.
– “Bertolambeu”, tão dizendo por aí que tão matando os véi. Ancê toma juízo e para com esta raparigagem que eles podem “pegá ocê”! – Enquanto ela administrava o armazém da família com uma invejável competência, seu Bartolomeu (quase um ancião), torrava dinheiro se divertindo nas farras do bordel existente no povoado. Isso quando não vinha no lombo de um animal até o cabaré da Curva da Morte aqui em Nova Conquista, onde ficava a noite inteira entrelaçado em alguma mucama. O velho era tão assanhado que botou por conta, uma goianiense recém-chegada, chamada Florilda, que tinha menos da metade da idade dele. Depois de perder a virgindade com um rapazola no interior de Goiás, ela foi jogada no olho da rua pelo seu velho pai, que após uma incontrolável crise de “infezação”, pegou os seus (como ela mesma dizia) panos de bunda, colocou em uma velha mala de sola e jogou bem no meio do riacho que cortava a cidade. Sem parentes ou aderentes e sem nenhuma perspectiva de vida, a linda e curvilínea morena Pataxó pegou uma carona e não por acaso, apeou por estas bandas. No dia que o velho Bartolomeu butucou os “zóios” nesta linda goiana, se apaixonou na hora. Pagou uma fortuna para botá-la por conta, alugando e mobiliando uma alcova somente para que todas as noites pudesse despreocupadamente rolar nos lençóis de cambraia da jovem. A idade não foi empecilho para o ímpeto sexual do velho que usava o que podia para apagar o incontrolável “fogo” da morena. Fundava a cara nas garrafadas de catuaba e tiborna, misturadas à caracu e ovos crus. Enquanto o velho ficava perdidamente apaixonado, se entrelaçando todas as noites entre as voluptuosas coxas da morena, Dona Antônia tocava com mão de ferro o armazém do casal, triplicando o patrimônio da família. A velha trabalhava tanto que nem queria saber o que o marido fazia todas as noites na rua. Chegava tão cansada que muitas vezes dormia ali mesmo no sofá, sem, sequer, tomar banho.
Um belo dia, eis que Florilda já com um pé-de-meia arrumado às custas do velho Bartolomeu, resolveu que voltaria de mala e cuia para a sua terra natal. Diante do choro insistente e das propostas pra lá de indecentes feitas pelo comerciante, a jovem resolveu fugir com ele. O velho (que guardava as suas economias enterradas no quintal de casa longe do olhar da esposa) fugiu com a amante levando apenas a roupa do corpo e a fortuna que desenterrara na calada da noite.
No dia seguinte, por mais que aparecesse testemunhas afirmando que o marido a deixara, dona Antônia negava-se veementemente a acreditar na história, afirmando com toda convicção que Bartolomeu tinha sido levado para Itaobim e transformado em carne de jabá. Em pouco tempo acabou virando uma demente, inclusive, mandando lacrar com tijolos todas as portas do armazém (cheio até os beiços de mercadoria) diante dos olhos estupefatos do povo. A partir daí ela passou a gritar pelas apertadas ruas do povoado, suja e maltrapilha:
– Ah, meu Deus! Fizeram jabá do meu marido! Meu esposo virou carne do sertão! – Foram meses errando sem rumo pelo povoado, só não morreu de fome e de frio porque contou com o adjutório da comunidade. De uma hora para outra o armazém lacrado virou até casa mal-assombrada, despertando a imaginação da população que sustentava existir dentro do prédio um monte de livusias. O que mais cortava o coração era ver em dia de feira a pobre da esposa chorar copiosamente agarrada a uma manta de charque. – Ôh, amado Bartolomeu, o que “fizero com ocê”? Olha só o que “suncê” virou? Ó meu Deus, virou uma manta de jabá! Oh meu pai! – Muitas vezes era necessário duas ou três pessoas para forçá-la a largar a manta de carne! – Deixa eu “ficá, mais” ele, deixa!
Depois de quase um ano de sofrimento, eis que para a surpresa de todos não retorna pra lá de cabisbaixo ao povoado, o famoso comerciante Bartolomeu? Sim. Voltou sem um tostão no bolso e completamente falido. A morena tomara-lhe todo o dinheiro que ele possuía e o deixou entregue às baratas. Temendo a língua do povo, em menos de uma semana, o velho se desfez de todo o seu patrimônio e foi-se embora na calada da noite levando a tiracolo – a agora demente – dona Antônia, que, sequer, o reconhecera. Nunca mais a população teve notícias do famoso casal.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Escritor e Poeta
Cândido Sales, Ba. Quadras de Novembro de 2023. Crescente de Verão.