A BOA FILHA À CASA TORNA
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A BOA FILHA À CASA TORNA

No ano da graça de 1967 a Jovem Ana Julia foi despachada às pressas  para São Paulo, com apenas 14 aninhos de idade. O pai da garota era o Sr. Macário, um fervoroso evangélico, quando o povoado de Nova Conquista contava com apenas três igrejas. A católica, construída na entrada da hoje Avenida Costa e Silva, fundada pelo jovem Zé do Sindicato, a Adventista do sétimo dia, liderada pelo farmacêutico “Oswaldo da Farmácia” e a Batista, que era frequentada pela família da jovem. Semanalmente o povoado era tomado por dezenas de evangélicos vestidos com as suas túnicas negras, oriundos da Igreja Batista de Vitória da Conquista, conduzindo estranhos artefatos, grandes estandartes, megafones, bandeiras, brasões, distribuindo gratuitamente livros, revistas, panfletos, etc… Era comum acordarmos ao som das trombetas com grandes cultos sendo realizados na praça da feira, com os crentes entoando hinos: “(…) Foi na cruz, foi na cruz onde um dia eu vi meus pecados castigados em Jesus (…)” Pessoas importantes do lugarejo se converteram a essas religiões, a esposa do Coronel Cândido Sales, a senhora Melânia da Silva foi uma delas, inclusive, doou um bom pedaço de terra para a construção de um templo, no coração de “Candin”. Hoje é o Edifício Paula Reis construído (entre outros) pelo comerciante Tonico. No dia de feira já era os adventistas que atacavam. Tocaiavam as barracas de carne de porco, tentando evitar que as pessoas consumissem o que era condenado por eles. O sujeito chegava ali todo escabreado, olhava para um lado, olhava para o outro e quando pedia um quilo de costelas ou de pernil suíno saía sabe se lá de onde, um ou dois crentes armados de suas bíblias: – Não comam esta porcaria! Porco é coisa do cão, coisa do sujo! Se comer você não entrará no céu.

– Mas o véi “Manele” falou que este porco é limpinho, ele dava até banho no bichinho com sabão e tudo! – dizia o infeliz, babando para comer um torresminho crocante!

– Limpo coisa nenhuma. O nome já diz… Porco é porco, sujo é sujo! Vá lá e devolva agora, troque por gado. – Diante da pressão o pobre ia lá e devolvia. O açougueiro que dependia das vendas para sobreviver, ficava puto da vida. Tanto que depois de um tempo, passaram a contra atacar a perseguição dos evangélicos, usando paus, pedras e facão.

– Sai daqui capeta dos “zinfernos” que tipo de crentes são ocêis?! Vão se lascar lá na beira do rio, vão trabalhar e deixa a gente vender as nossas carnes, lote de vagabundos! –  Era pedra, peixeira e facão contra bíblias e cabos de guarda-chuvas! Sorte que entre mortos e feridos, sobreviviam todos!

A família de Macário era paupérrima. Mas, assim que a linda Ana Julia, do alto dos seus 14 aninhos, foi enviada para a Paulicéia, a coisa mudou de água para vinho. Apesar de magérrima, com os seios por nascerem e braços e pernas finíssimos, a garota chamava a atenção por ter os olhos azuis da cor do mar, e pelos cabelos longos, negros e anelados. Os pais conseguiram algum dinheiro emprestado (para a passagem), encheu uma lata com farofa de frango e empurrou a pobrezinha quase que à força para o “roçadão” via Viação Vera Cruz. Ana sofreu bastante nos primeiros dias, “trabalhou” por longos três anos. A partir do primeiro mês, imediatamente após a partida, mandou uma missiva para os pais, triste e chorosa, porém, nestas mesmas maus traçadas linhas, afirmava com relativa convicção que só voltaria a Nova Conquista quando pudesse tirar a família daquela “miséria”. No segundo mês mandou um envelope recheado de cédulas novinhas. No terceiro mês, a contribuição da filha foi aumentando e logo os Macário’s já era a família mais importantes da congregação. Em muito pouco tempo construiu e mobiliou um casarão. Os filhos passaram a andar luxando, de sapatos “Vulcabrás” e tudo(calçado de borracha. No sol – em especial nos desfiles do 7 de setembro -, o “bicho” esquentava tanto que não tinha cristão que usasse por mais de dez minutos). A mudança de vida dos Macário’s despertou muita inveja entre os membros da congregação, tanto que durante um culto, o pastor passou por um completo constrangimento:

– Agradecemos o dízimo gentil da família Macário. Vida longa para a sua pequena filha Ana Julia, que neste momento trabalha duro em São Paulo… – efusivos aplausos e um gaiato resolve provocar: – Pastor, o que ela faz lá de importante pra ganhar tanto? – Diante do silêncio absoluto, Macário externou toda a prepotência recém-adquirida, bradando:

– Minha filha Ana trabalha em uma das maiores fábricas de São Paulo! É por isto que ela sustenta a igreja e pode, inclusive, sustentar um lote de “pé-rapado da sua laia”… – Diante do esporro o gaiato abaixou-se por entre o povo, e “deu nas canelas”. Macário estufou a imensa barriga, abraçou dona Maria e saiu furioso da igreja…

Passado algum tempo, um imenso carrão adentra o lugarejo, trazendo na boleia ao lado do motorista uma linda morena de lábios carnudos, batom vermelho, olhos azuis, cabelos escovados e de uma beleza estonteante. Ao ver alguns engraxates na beira da pista, a moça pôs delicadamente a cabeça pra fora da janela e perguntou:

– Nova Conquista ainda é aqui?

– E há de mudar? É aqui sim senhora! Reza a lenda que foi aqui que o Judas perdeu as botas! De dia falta água e de noite falta luz.

– Vocês continuam os mesmos! – sorriu a linda morena, mostrando uma coleção de dentes brancos e saudáveis. – Dou duzentos Cruzeiros para quem me mostrar onde mora o senhor Macário…

– Macário crente, um barrigudo? Eu levo ocê lá! – gritou o mais astuto já pulando no estribo e se segurando no retrovisor do caminhão-baú. O carro subiu uma ladeirinha, desceu outra e logo estava parado na porta da melhor casa da rua. Duas buzinadas e já saía dona Maria se deparando com a sua querida filha!

– Julia?! Meu Deus do céu! Corre aqui, Macário, sua filha chegou! –  Macário saiu nu da cintura para cima, se abraçou com a filha, foram chegando os irmãos e dezenas de curiosos. Gastaram duas horas descarregando o baú. Ferro de engomar, mesa fornida, cadeira redonda, cômoda espelhada, espelhos reluzentes, pratos decorados, talheres importados, retratos ampliados de artistas de cinema, sofá de veludo colorido, tapete antiderrapante, bule com chaleira, batedeira de ovos, tudo quanto há… Logo a residência se encheu de gente. Amigos, “inimigos”, irmãos de igreja, invejosos, parentes próximos, parentes distantes… Dona Maria (e Macário) enchendo a filha de beijos e abraços e a cereja do bolo era a onipresença do pastor. Sutilmente Macário pediu para a moça vestir algo mais composto. Contrariada, Ana obedeceu, afinal de contas estava de volta à Bahia e precisava agradar aos seus pais. Botou uma saia comprida, uma blusa de mangas e sentou-se no confortante sofá recém-adquirido. Conversa vai, conversa vem e o líder religioso tocou na “ferida”: – Aninha, rezo todos os dias por você. Uma moça tão novinha dando um duro lascado em uma imensidão de cidade daquela, tendo que acordar todo santo dia cedinho, para trabalhar pesado naquela fábrica…

– Fábrica?!! – Falou a garota surpresa. – Sim. Você não trabalha em uma fábrica? – insistiu o pastor! – Eu?!! – Sem se controlar, a jovem soltou uma gargalhada pra lá de escrota, constrangendo o Pastor e por tabela o seu querido e velho pai.

– Ué, querida filha, você trabalha em quê?

– O senhor acha que se eu fosse operária eu teria condições financeiras de dar esta vida a vocês? Se eu ganhasse a mixaria que se paga para os operários eu teria trazido um caminhão de móveis para vocês? – A mãe, pressentindo o problema, foi saindo à francesa, o pastor tentou mudar o rumo da prosa quando do alto da sua arrogância, Macário perdeu a oportunidade de ficar calado:

– “Intonce”, se você não é operária, “ocê” trabalha em quê?

– Eu?!! O senhor não desconfia não pai? Eu sou Meretriz, pai! Sou uma Mixê! Uma Puta, uma rapariga safada, uma quenga sem vergonha, uma devassa, uma prostituta! Eu troco o meu corpo por dinheiro… Entenderam?- Tomado por um ímpeto incontrolável, Macário voou sobre a filha dando-lhe uma renca de cascudos, ignorando completamente os gritos dos irmãos, do pastor e de dona Maria…

– Vagabunda! Eu lhe “induquei” pra isto, sua safada? Suma daqui. Saia agora da minha casa! – pegou a garota pelos cabelos e a jogou rispidamente no meio da rua diante dos olhos curiosos dos vizinhos. Correu até o quarto e passou a jogar malas, sacolas e todos os pertences da moça no meio da rua. – “Suverta” daqui com suas bugigangas, pecadora, fuleira, indecente! – Voltou ao quarto e sapecou  no terreiro um baú pesadíssimo… – Suma daqui, sua vagabunda safada! Não lhe considero mais minha filha não! – Ao cair, o baú abriu-se todo, revelando milhares de cédulas de mil cruzeiros… Ana, imediatamente, pegou todo o dinheiro esparramado e devolveu ao baú, enquanto ela fechava o baú os olhos do pastor e do seu velho pai quase saltaram pálpebras afora… Quando a garota se preparou para sair, Macário gritou:

– Ana Julia, você disse que trabalha em que mesmo?

– Meretriz, pai! Sua filha é uma Meretriz! – falou furiosa, se virando e saindo… – Espere filha! Espere! Por favor, espere! – gritou Macário, calmo igual a um ancião! – Eu entendi tudo errado! Você falou meretriz? – Sim… – confirmou a garota. – Eu vendo o meu corpo para lhe sustentar, seu velho escroto. Você, esta igreja safada e toda a nossa família! É isso que você queria ouvir? – Ah, bom! – falou o velho, calmo igual um monge. – Eu pensei que você tivesse dito… Atriz! Atriz são aquelas mulheres que vivem beijando descaradamente na televisão, né?. São umas imorais! Laia de gente que, sequer, acredita em Deus! Pode voltar filha, volte para a sua casa! Desculpe o seu velho pai, foi tudo um mal-entendido! Entre, a casa é toda sua! Maria, receba nossa filha!  – Correu, abraçou-se à filha e diante da perplexidade geral, falou em alto e bom som:

– Se você fosse uma atriz eu juro por Deus que eu ia lhe expulsar de casa, mas, Meretriz? O que há de mal nisto?  – E enchendo a filha de beijos, bateu violentamente à porta na cara dos curiosos.

Fim

Luiz Carlos Figueiredo

Escritor e Poeta

Quadra de Setembro de 2023, Quarto-Minguante de Inverno.