Alzira de João “Cangaia” foi uma moradora deste torrão que, engravidada sabe Deus por quem, quando os pais descobriram o bebê já estava nascendo. Dizem que devido ao tempo em que a barriga da moça ficou amarrada (escondendo a gravidez) o bebê nascera morto e deformado.
Na época o velho cemitério da Rua Rui Barbosa era recém-fundado e eis que na calada da noite de uma Sexta-feira da Paixão, diante de um breu aterrador, surge uma alma viva saltando sorrateiramente o cercado que delimitava o Campo Santo. A dificuldade de movimentos e os passos diminutos denunciavam que o profanador era um idoso escondido atrás dos grossíssimos óculos de graus, usando um boné a lhe cobrir a careca e um velho saco de estopa na cacunda. O caboclo cumpria a devoção de naquela fatídica noite, trazer de uma cova rasa do cemitério, um osso de braço de um recém-nascido, prematuramente falecido e em um adiantado estado de putrefação. Era o osso do famoso bebê de Alzira de João “Cangaia” que nascera morto e, segundo as más línguas, com cara de bode, duas asinhas nas costas e dois chifrinhos pontudos na cabecinha deformada, sendo enterrado às pressas e às escondidas para fugir da língua do povo.
Até hoje ninguém se arrisca a dizer quem era o pai do feto deformado. Andando sorrateiramente, o “profanador de túmulos” se agachou perante uma cova e após ler o nome escrito na cruz – utilizando pra isso uma lanterna – cavou ofegante a terra preta utilizando as próprias mãos. Após tocar na pequena urna funerária, o idoso quebrou a tampa com uma martelada certeira e arrancou violentamente o braço em decomposição do infeliz. Munido da parte que precisava, jogou terra em cima do que restara e caxingando, saltou o cercado do cemitério levando o bracinho de anjo. Se alguém contemplasse aquela cena não teria dúvidas de que o “ladrão da pata do anjo” era ninguém mais, ninguém menos que o velho “Onofre Vendedor de Loteria”, o comerciante mais sovina (e usurento) deste torrão.
Onofre deu por estas bandas ao lado a sua esposa Luzia e dos três filhos pequenos em 1953. Era um baixinho careca, fala mansa, óculos fundo de garrafa e andava com a calça meio coronha amarrada no meio da barriga chocha e esquálida por um velho currião de sola. Tímido, andava lentamente arrastando a velha alpercata de couro cru. Trabalhava de sol a sol vendendo tudo quanto há. Enquanto dona Luzia suava fazendo no fogão à lenha… buchada, feijoada, sarapatel, tripas de porco, cuscuz, arroz doce e mingau, o velho astuciava um jeito de passar a perna em Gaspar o seu concorrente direto. Após várias noites em claro, o astuto resolveu bater abaixo da linha de cintura do concorrente, na surdina, se propôs a vender a sua alma para o Tinhoso… Alas que em uma noite de chuva o avarento foi subitamente acordado por um bode preto e enorme, com cara de bebê, dentro do seu quarto. O bicho fedia mais que a peste, tinha a cara toda carcomida, os dentes cariados, os chifres retorcidos, uma barba de meter medo e os olhos em formas de brasas. O diabo se equilibrava nas patas traseiras e batia com os cascos dianteiros nas paredes do barraco. Com o coração querendo sair boca afora, o velho Onofre ouviu da boca torta do bode preto uma voz tenebrosa: – Você quer mesmo ter os fregueses de Gaspar? Eu posso lhe dar! – Atônito, Onofre ainda tentou negar quando foi fulminado pelo olhar faiscante do bode preto! – Você quer ou não quer, seu infeliz? Me invocou aqui pra que? Está achando que isso é brincadeira?
– Não, não… quero sim! O que você quer em troca? – Indagou o sovina gaguejando com um fio de voz!
– Quero a sua alma. Vou lhe dar o que quer, porém, quando chegar a sua hora eu venho buscar a sua alma. Combinado? – Com os olhos esbugalhados o velho Onofre ouviu as orientações do bode preto: – Está enterrado neste cemitério um dos meus filhos. Nasceu das entranhas de Alzira de João Cangaia que o matou sufocado. É chegado o tempo da quaresma. Sexta-feira da Paixão, depois do canto do bacurau vá sozinho ao cemitério, arranque o braço do bebê e utilize o osso para mexer o seu mingau. Você vai tomar tudo o que o crente possui. Não se esqueça que agora a sua alma tem dono. Entendeu? – O medo era tanto que o velho só conseguiu acenar com a cabeça, concordando com o bode. – Assim foi e assim será! – Bradou o bicho fedorento furando com o chifre o polegar do avarento e após chupar uma gota de sangue, deu um pipoco e sumiu em meio à fumaça de enxofre.
Atormentado, Onofre olhou para dona Luzia roncando, foi até a sala e constatou os seus filhos dormindo na esteira, todos pareciam bem. Voltou pra cama e passou a noite em claro. Assim que chegou o fatídico dia, o velho coletou o osso do bebê da cara de bode e após aferventá-lo em um caldeirão, descartou a pele e com o osso branquinho passou a mexer o seu mingau.
Onofre não botou muita fé no que ouvira do bode barbudo, porém, em menos de uma semana, enquanto o mingau fervia e ele mexia com a pata de anjo, o cheiro inebriava todo mundo. E assim, entre araras, nativos e até os concorrentes, o mingau não dava para quem queria. Diante do movimento o velho Onofre chegou a contratar às pressas umas duas ou três cozinheiras para ajudar a esposa. No início se fazia um caldeirão – grandão, daqueles vendidos por ciganos –, e sempre acabava logo, depois de duas ou três semanas, a coisa foi duplicado e logo depois teve que treplicar, tão grande era o seu consumo. Quanto mais se fazia, mais se vendia.
De nada adiantou os concorrentes espalharem que o velho usava no mingau a pata de um bebê-defunto coletada no cemitério, os fregueses não estavam nem aí, comiam até se empanzinarem. Depois de um tempo, o coitado do Gaspar, desolado e impotente, mudou-se de “mala e cuia” daqui.
Com a concorrência fora de combate, em pouco tempo o velho construiu o primeiro restaurante de alvenaria do município. Estupefatos, os moradores testemunhavam incrédulos o movimento surreal das centenas de clientes diários. O tempo passou, o velho avarento se esqueceu completamente do pacto que fizera com o Demo e quando já não sabia mais onde colocar tanto dinheiro, foi surpreendido com a chegada do dia da prestação de contas.
Eis que em uma noite fria e chuvosa, quando as mesas se encontravam abarrotadas e com dezenas de carros (e até algumas marinetes) parados na porta, as garçonetes funcionando a todo vapor (já tinha até garçonetes) … – Buchada pra mesa 7. – Dizia uma. – Frango assado para a mesa 2… – Dizia outra, Onofre se desdobrava na máquina registradora, se esbaldando com o tilintar do dinheiro entrando.
De repente, uma rajada fria de vento invade o ambiente e quando o velho levanta a cabeça adivinhe quem se encontrava parado na porta? Sim, ele. O Bode barbudo e mal cheiroso com a sua cara carcomida de bebê. Antes mesmo do velho entrar em pânico, já foi testemunhando a chegada de um furioso redemoinho adentrando o recinto… revirando tudo, levando mesas, jogando os pratos pro ar… e o caos se instalou com fregueses gritando, talheres caindo, a caixa registradora derramando dinheiro para tudo que era lado e o redemoinho girando, destruindo tudo o que tinha pela frente. Prateleiras despedaçadas, móveis amassados, litros de bebidas arremessados contra as paredes e o ambiente tomado por uma gritaria lascada… diante de todo este caos, parado na porta se divertindo, estava o bode preto barbudo zombando da desgraça do avarento. Como tudo o que é ruim, ainda pode piorar… quem aparece furiosamente dentro do redemoinho, berrando feito um aluado? O bebê de Alzira de João “Cangaia”, sem um dos braços e dando o maior calundu, preso no funil do redemoinho, derrubando tudo o que achava pela frente com a sua carinha de bode, suas asinhas amarrotadas e seus chifrinhos pontudos na cabecinha deformada, rouco de tanto gritar com sua vozinha de filhote de bode:
– Devolva meu braço, Onofre avarento! “Miserável véi”! Chegou a hora de pagar o que deve, sovina desgraçado! – Era o feto deformado, sapateando dentro do redemoinho querendo de volta o seu bracinho. Quanto mais sapateava, mais forte o vento ficava. Eu não vi, mas me contaram que quem presenciou o fato arrancaram as pestanas de tanto medo.
Foi uma lambança disgramada… Gente correndo, gente gritando, gente chorando, gente pulando das janelas, gente caindo do telhado e tome caos, e tome vento e tome chuva. O pior foi o estouro! Insatisfeito, o bebezinho soltou um peido tão grande e deixou as paredes tudo pesteadas, enquanto o fedor de enxofre impregnava no ar. Os que estavam dentro do hotel desembestaram porta afora, inclusive dona Luzia e suas crianças. Depois de balançar feito um embriagado, o prédio de alvenaria veio a baixo com tudo o que tinha dentro dele, inclusive, soterrando violentamente o velho avarento que se negou a sair.
Foi uma tragédia! O mais estranho foi que após dias de trabalho retirando os escombros, nenhum corpo foi encontrado.
Até hoje não se sabe onde misteriosamente foi parar o corpo do velho Onofre, o velhinho dos óculos fundo de garrafa que fez um pacto com o Tinhoso materializado de bebê com cara de bode.
FIM
Luiz Carlos Figueiredo
Dos Confins do Sertão da Ressaca
Cândido Sales, Bahia. Quadras de Outubro de 2025.
Crescente de Primavera.